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Sistema de Crédito Social: na China hoje, num lugar perto de nós amanhã?

Sob o seu habitual signo da transparência, o governo chinês informou o seu povo, em 2014, do seu plano de implementar uma “tabela de desempenho” individual que estará em pleno funcionamento em 2020 e para os seus 1,3 mil milhões de habitantes. Com a carinhosa ajuda das autoridades e com base num algoritmo pré-programado, todos os indivíduos serão avaliados, pontuados e divididos entre bons e maus cidadãos. Os bons terão privilégios, os maus sofrerão sanções. Tudo em prol de uma sociedade harmoniosamente assente em critérios de confiança

DR

"[Desejamos] permitir aos cidadãos de confiança que passeiem livremente sob o céu e dificultar aos desacreditados darem um único passo", Esboço de Planeamento para a Construção de um Sistema de Crédito Social (2014-2020)

O Sistema de Crédito Social, a ser implementado na China em 2020, parece um argumento futurista para cinema. E se não é para o grande ecrã, já o foi para a série televisiva Black Mirror, que retrata um futuro distópico, mas que afinal está muito mais próximo do presente. Na verdade, e no 1º episódio da temporada 3, intitulado "Nosedive", a trama passa-se num mundo em que as pessoas se podem avaliar umas às outras – entre 1 a 5 estrelas – por cada interacção que tiverem, o que irá determinar o seu status socioeconómico. E, de acordo com a pontuação que tiverem, poderão ser beneficiadas ou prejudicadas num conjunto de diversos domínios.

Agora imagine um mundo onde as suas acções são continuamente monitorizadas e avaliadas: o que compra online, onde jantou no último fim-de-semana, com que tipo de amigos saiu para beber um copo, quantos copos bebeu, que livros comprou na Amazon, quantas horas do seu dia passa a jogar na playstation, que conteúdos televisivos são da sua preferência, se os seus impostos são pagos a horas, quanto e em que é que gasta no seu cartão crédito, entre um conjunto alargado de acções que, todos nós, fazemos todos os dias. Na verdade, não é preciso nenhum esforço para imaginar este cenário, pois a maioria destas acções já acontece na realidade, graças à recolha de inúmeros dados que todos nós sabemos existir (apesar de não termos a ideia da sua total magnitude).

Mas agora imagine um sistema no qual todas estas acções e comportamentos são pontuados e avaliados, positiva ou negativamente, o que se traduzirá num único número (ou classificação), de acordo com regras estabelecidas pelo governo e através de um algoritmo complexo, sobre o qual pouco ou nada se sabe e em que o adjectivo "transparente" não pode ser utilizado.

O governo chinês irá inaugurar uma "avaliação do desempenho pessoal" pontuando critérios como a confiança e a credibilidade

Por último, imagine que da sua pontuação depende a velocidade da sua Internet, a escola onde vai matricular o seu filho, a concessão ou rejeição de um empréstimo para comprar a sua casa, a possibilidade de viajar de avião para fora do país, entre um conjunto de benesses – se o seu scorefor elevado – ou de punições – se existirem maus comportamentos e a pontuação for baixa. E, como não poderia faltar, uma lista negra também.

E agora pode parar de imaginar porque é, em termos básicos, o que a China vai fazer, tendo iniciado os "testes" em 2014 e garantindo que um sistema com estas características estará pronto a ser aplicado aos seus 1,3 mil milhões de cidadãos em 2020. Em Junho de 2014, o Conselho de Estado chinês publicou um relatório denominado Esboço de Planeamento para a Construção de um Sistema de Crédito Social (2014-2020), no qual alerta os cidadãos chineses para o seu plano de inaugurar (e tornar pública) uma "avaliação do desempenho pessoal" para qualquer individuo ou entidade legal [todas as empresas serão igualmente cotadas], com base no seu nível de confiança/credibilidade, sendo que a participação será obrigatória a partir de 2020. Os indivíduos serão avaliados por um scoreque varia entre os 350 e os 950 pontos.
© DR
"Um método eficaz de fortalecer a sinceridade social, estimular a confiança mútua e reduzir as contradições sociais"

Nas diversas fontes consultadas para este artigo, todas elas garantem que são muitos os cidadãos chineses que ainda não perceberam o que é, como funciona e de que forma é que este ranking social irá afectar as suas vidas. Mas dos vários testes-piloto que estão a ser realizados – cerca de uma dúzia de acordo com a revista ForeignPolicy que visitou Rongcheng, uma pequena cidade onde 740 mil cidadãos estão já a ser "pontuados – os que estão no interior deste "laboratório" têm também opiniões distintas, sendo que, na sua maioria, estas são favoráveis. Aliás, as pontuações mais elevadas já se tornaram num símbolo de status, com cerca de 100 mil pessoas a gabarem-se do seu scoreno Weibo (o equivalente chinês do Twitter).

Mas há uma pergunta continua a impor-se, tal como questiona a revista Wired, num excelente artigo que publicou sobre a temática: por que motivo é que milhões de pessoas já se "inscreveram", tecnicamente em regime "voluntário" , para fazerem parte do período experimental num sistema de vigilância governamental tão intrusivo? De acordo com a Wired e sem ser surpreendente, podem existir muitas razões "negras" e não declaradas – como o medo de represálias para os que não quiserem participar no teste – mas existe também um bom chamariz para o fazerem, sob a forma de recompensas ou de "privilégios especiais" para os cidadãos que demonstrarem ser "de confiança". Mas já lá iremos.

Em primeiro lugar, há que perceber como o Conselho de Estado explica os principais factores que são levados em consideração para distinguir entre um bom e um mau cidadão, a implementação deste sistema, e como é feita a "avaliação" e consequente pontuação individual.

As pontuações mais elevadas já se tornaram num símbolo de status, com cerca de 100 mil pessoas a gabarem-se do seu score no Weibo

De acordo com o Conselho de Estado chinês e citado em um artigo publicado pela medium, todos os indivíduos serão avaliados com base em big data recolhidos a partir dos seguintes critérios para ser possível alcançar o que as autoridades chinesas entendem como "harmonia social": saúde, higiene e planeamento familiar; segurança social, cuidados com os mais velhos e caridade; trabalho e emprego; educação e investigação científica; cultura, desporto e turismo; protecção ambiental e poupança energética; aplicações e serviços de Internet; vida económica e social.

Esta multiplicidade de critérios (que e obviamente, consiste só uma parte do total) será ainda agregada em cinco categorias.

A primeira, explica a revista Wired, diz respeito ao historial de crédito de cada cidadão, ou seja, será que X paga as suas contas, de electricidade e telefone atempadamente? A segunda pode ser traduzida como "aptidão para o cumprimento", sendo definida nas normas do Sistema como "o nível de capacidade do cidadão para cumprir as suas obrigações contratuais". O terceiro factor diz respeito às características pessoais, como a verificação do número de telemóvel, endereço e outro tipo de informação básica. Já as duas últimas categorias são as que mais inacreditáveis se assumem.

Chamada de "comportamentos de consumo", a quarta categoria do Sistema de Crédito Social transforma meros hábitos de compras dos indivíduos numa avaliação de carácter. Uma das oito empresas que está a trabalhar directamente como governo chinês, a Sesame Credit, uma afiliada da gigantesca Alibaba, já admitiu que as pessoas serão julgadas pelo tipo de produtos que adquirirem. "Alguém que jogue video games dez horas por dia, por exemplo, será considerada como inactiva ou preguiçosa", afirma à Wired Li Yingyun, Directo de Tecnologia da Sesame – e perderá pontos. "Alguém que compre frequentemente fraldas será considerado um pai ou mãe e, comparativamente, com maiores probabilidades de expressar sentimentos de responsabilidade, ganhando pontos. Desta forma, o sistema não só rastreia e investiga o comportamento, como o molda. Ou seja, isola os cidadãos – porque os sanciona – de compras e comportamentos que não são bem vistos aos olhos do governo.

Como cereja no topo do bolo, eis o quinto critério: atitudes online e relacionamentos interpessoais. Basicamente, e como tão bem explica o artigo na medium, tudo o que for publicado online será rastreado e incluído na pontuação de cada cidadão, o que significa que quem postarmensagens positivas sobre o país, o governo, o sistema social, a economia, etc., terá um scoremais elevado (e vice-versa, é claro). Mas o que é ainda mais surpreendente é o facto de os cidadãos não terem um controlo total sobre a sua própria pontuação, pois a mesma depende também do que amigos e familiares disserem e fizerem online. Ou seja, se o cidadão X tiver o azar de ser amigo ou familiar de alguém que faça um comentário negativo online, ou que incorra em algum tipo de comportamento "desadequado", o resultado é que o mesmo terá consequências negativas no seu score, baixando-o e mesmo que X não tenha absolutamente nada a ver com o assunto.

"Alguém que jogue video games dez horas por dia, por exemplo, será considerada como inactiva ou preguiçosa, perdendo pontos – e "ganhando" uma Internet mais lenta

Em Rongcheng, onde o sistema está a ser testado com sucesso – "a vida na nossa região já era boa, mas depois de introduzido o sistema, ficou muito melhor", como afirma um residente aos jornalistas da ForeignPolicy – os créditos funcionam de maneira algo diferente.

O sistema ali introduzido confere 1000 pontos iniciais a qualquer cidadão. E, a partir daí, o jogo começa. Como exemplifica a reportagem da ForeignPolicy: apanhe uma multa de trânsito e perde cinco pontos; ganhe um prémio municipal, por ter cometido um acto heróico, por ter feito um bom negócio ou por ter ajudado a sua família em circunstâncias invulgarmente difíceis e ganha 30 pontos. Pode-se ganhar pontos também devido a donativos oferecidos a alguma caridade ou por participar num programa de voluntariado da cidade. E, dependendo do número de pontos, aos residentes são atribuídas notas que variam entre um A+++ (a melhor) e um D (a pior).


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