Notícia
2019, o ano em que Berardo foi figura pelos piores motivos
Declarações polémicas no Parlamento, um pedido de “decoro” pelo Presidente da República, outro de desculpa pelo comendador, algumas penhoras à mistura e uma condecoração que poderá ser retirada. Berardo ficou no centro da polémica no âmbito de um inquérito à Caixa Geral de Depósitos. Fica como figura ilustrativa de todos os casos que a banca financiou e com perdas elevadas. Só Berardo deve perto de mil milhões de euros.
* - Notícia originalmente publicada a 31 de dezembro de 2019, ano em que Joe Berardo foi escolhido como figura nacional do ano pelo Negócios
Nasceu na Madeira, mas foi na África do Sul que fez fortuna, na indústria do ouro. Foi com este dinheiro que José Manuel Rodrigues Berardo deu azo à sua veia de colecionador. De postais, em pequeno, passou para as obras de arte, já feito adulto, ao mesmo tempo que mantinha o gosto pela alta finança. De presidente do Bank of Lisbon – que, anos mais tarde, foi incorporado no Mercantile Bank Holding, que a Caixa Geral de Depósitos (CGD) vendeu este ano –, passou a acionista de referência do BCP, protagonizando uma forte oposição a Jardim Gonçalves no "verão quente" da instituição financeira. Foi esta guerra pelo poder no maior banco privado português que, para o bem ou para o mal, o elevou a personalidade do ano de 2007, no Negócios.
Agora, é mais uma vez a banca – não o clube do seu coração, o Benfica, a quem lançou uma OPA que fracassou – que o volta a pôr na ribalta, repetindo 12 anos mais tarde a distinção, mas pelos piores motivos. Berardo, que diz que tentou "ajudar os bancos", teve no BCP o "maior desastre" da sua vida. Foi com o banco que perdeu boa parte da fortuna, passando de grande investidor a grande devedor. Acumula, junto dos "três grandes" do setor financeiro português (CGD, BCP e Novo Banco), dívidas de quase mil milhões de euros. Mas diz que não deve nada.
Presidente da República sobre Berardo, citado pela Lusa
"Pessoalmente, não tenho dívidas". Foi esta a frase proferida pelo madeirense, empresário e comendador que marcou a audição da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à CGD. E o "ah, ah, ah...", o riso maléfico, com um recostar na cadeira, que fez Joe passar a Joker, no ano de estreia do filme de Hollywood baseado na mítica personagem da DC Comics. Um vilão sádico, mas sem superpoderes. Apenas com muita imaginação, a mesma que se reconhece a Berardo na tentativa de ludibriar os bancos que andam atrás da Associação Coleção Berardo, dona das obras expostas no CCB, avaliadas em centenas de milhões. Deu títulos representativos de uma grande parte da dona dos Miró, Dalí e Picasso, entre outros artistas de renome, para colmatar a perda de valor das ações do BCP que tinha dado como garantia. De seguida, arranjou forma de diluir esta posição dos bancos, blindando o acesso às obras. Uma cartada de Joker, da qual o próprio se vangloriou, mas que caiu mal junto dos bancos, mas também dos políticos, que o levaram até ao Ministério Público. E também de Marcelo Rebelo de Sousa, que pediu "decoro" ao empresário. O Presidente da República "ajudou", assim, Berardo a deixar de ser apenas inimigo da banca. Passou a inimigo público.
"Portuguese dream" a RDT
A aparição de Berardo na CPI da CGD foi, no mínimo, polémica. A postura altiva do empresário e as respostas irónicas num português sarapintado por termos em inglês dos tempos de África do Sul acabaram por fazer com que fosse alvo de duras críticas dos mais variados quadrantes da sociedade. Um ataque que o levou a pedir desculpa. Desculpou-se dos excessos verbais, mas recusou ser "o bode expiatório" de "todos os males do sistema financeiro português". A sua ida ao Parlamento tornou mais e mais visível aqueles anos de dinheiro fácil na banca nacional.
O "portuguese dream [sonho português]", como se autoproclamou em entrevista a Anabela Mota Ribeiro para o Negócios, em 2007, passou a pesadelo. Ou a RDT – Responsável Disto Tudo, como o próprio referiu, numa alusão ao DDT – Dono Disto Tudo, como era conhecido Ricardo Salgado. Um título que rejeita e do qual tem tentado fugir, mas sem sucesso, sofrendo derrota atrás de derrota na Justiça, para gáudio da banca. O empresário, que apenas tem em seu nome uma garagem no Funchal, viu este ano os agentes de execução catalogarem as obras de arte para, de seguida, as arrestarem. E depois dos Picasso, foram os bens imobiliários. Um apartamento na Infante Santo, conhecido pela sua polémica casa-de-banho com vista para o Palácio das Necessidades, e outro na Lapa. Além de um hotel no Funchal.
Perder muito. Até a honra
As derrotas na Justiça têm sido duros golpes para o empresário. Conhecido por jogar Pedro, uma espécie de jogo da bisca criado na África do Sul, Berardo sempre foi a jogo para ganhar. "Ganhar não é tudo. Mas para mim, o segundo, o terceiro, o quarto ‘means nothing’", disse, em 2007. Ganhou muito, mas tem perdido muito mais. E além do dinheiro, poderá perder a honra conquistada há décadas. A honra das condecorações que recebeu por Eanes e Sampaio.
O comportamento de Berardo na CPI gerou outra discussão sobre as comendas, com o Conselho das Ordens Nacionais a abrir um processo de análise. A entidade mantém o "tabu" sobre se retira os títulos ao empresário que, com ironia, já disse que os podem levar. Marcelo Rebelo de Sousa, que em 2007 o elegeu como empresário do ano, não se opôs à avaliação, mas recusou intervir num processo que deverá chegar ao fim sem grandes consequências para o comendador.
Empresário madeirense em declarações ao jornal Sol