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Francisco George: “Deputados são permeáveis aos lóbis da indústria tabaqueira”
A cara mais conhecida da saúde pública em Portugal já não está na Direcção-Geral de Saúde. Francisco George celebra amanhã os seus 70 anos e, por lei, não pode continuar nesse cargo. Ao Negócios, relembrou algumas das suas principais conquistas na DGS.
Esta sexta-feira, Francisco George deixa de ser director-geral de Saúde, um cargo que ocupava desde 2005. No final de Setembro, já na recta final do seu mandato, recebeu o Negócios no seu gabinete na DGS, no topo da Alameda D. Afonso Henriques, para uma entrevista sobre o Prémio Personalidade que lhe foi atribuído.
Na primeira parte da entrevista, publicada a 12 de Outubro, George aborda alguns dos principais riscos à saúde publica nos nossos dias. Na segunda parte, que agora se publica, George recorda algumas das suas principais conquistas no cargo, como a regulamentação da lei do aborto, e uma das suas principais lutas – o tabaco, que lhe deixa um amargo de boca. George pede também aos sociólogos para serem mais "audazes" e explicarem fenómenos como o aumento do consumo de tabaco nas mulheres.
Recentemente saíram dados que mostram que as mulheres estão a consumir mais álcool, drogas e a fumar mais. Aliás, o consumo de tabaco tem aumentado em todas as faixas etárias.
Os sociólogos têm de explicar mais este fenómeno. Eu sou daqueles que diz que os sociólogos apontam timidamente rumos, porque os centros das ciências sociais no nosso país têm alguma timidez. São pouco audazes. Devíamos trabalhar mais guiados pelos especialistas em ciências sociais. Aqui na Direcção-Geral da Saúde temos psicólogos, psicólogos sociais e de organização, sociólogos, que são muito úteis, mas devíamos dar mais importância ao mundo das ciências sociais.
Isso contribuiria para reduzir mais o consumo de álcool, tabaco?
[Para] perceber este fenómeno. Quem é que explica, a não ser eles, o facto de o consumo aumentar nas mulheres? E está aí agora um espelho, o resultado desse aumento, que é o aumento do cancro do pulmão em mulheres, como aliás já se verifica. Está a aumentar. O tabaco é um problema. Voltamos à questão do tabaco. O tabaco não é uma questão de moderação. O tabaco é eliminar. Não é aceitável. Vai-me dizer que todos têm direitos. Mas não podem ter o direito de colocar em risco, em espaços fechados, a saúde de outros. Hoje todos reconhecem que é bom entrar numa pastelaria. O espaço livre de fumo é fantástico. É uma outra grande conquista.
É uma das coisas que o orgulham?
Sim, mas teria ido mais longe. Os deputados são tímidos, diria são pouco audazes, não seguem o movimento legislativo europeu, estão ainda à procura. A nossa [actual] lei é melhor que antes da lei, mas era possível ir mais longe. A lei portuguesa tem demasiadas excepções, complicadas.
Isso evidencia permeabilidade aos lobbies da indústria?
Sim, claramente.
Na questão, por exemplo, do tabaco aquecido?
O tabaco aquecido é uma invenção difícil de compreender. As discussões que são intermináveis com representantes… vamos lá ver: faria algum sentido um professor fumar um cigarro electrónico numa escola? Ou um espectador num cinema fumar um cigarro electrónico porque não é cigarro de folha de tabaco? Mas isto fará algum sentido? Há também aqui uma questão de ética e de moral, que é o problema modelo e o exemplo. Sim senhora, admito que possa não ter em termos de fumo as mesmas consequências, mas há a questão do modelo, do exemplo. Portanto, isto tem de ser visto.
O tabaco tem uma área específica. Não é uma questão de ser radical ou não. Eu sou daqueles que digo que os radicais são os fumadores. Esses sim é que praticam hábitos radicais. Nós sabemos confirmadamente por um médico inglês, da minha especialidade, que seguiu durante 50 anos 36 mil ficheiros - por sinal eram todos médicos. Ele pediu à Ordem dos Médicos 36 mil fichas de doentes, ao longo de 50 anos seguiu a saúde deles, os que estavam doentes ou que morriam. Separou os que morriam fumadores e os que morriam não fumadores. E em média os não fumadores vivam mais 10 anos. Os não fumadores. Isto é, aqueles que fumavam viviam em média menos 10 anos. Veja bem. Isto é um hábito radical.
O que a indústria alega é que estas variantes de tabaco são para quem não consegue deixar de fumar.
Mas tem a componente ética. Faz algum sentido estar um professor a fumar um cigarro desses? Alguém me explica se isso é aceitável?
Não lhe parece aceitável que médicos fumem?
Não posso aplaudir. Ninguém pode.
Pela questão do exemplo?
É a questão do exemplo e é a questão de saberem bem pelos doentes que seguem que têm problemas pelo fumo do tabaco. Há sempre um que me diz assim: alguém, aqui ou ali, na Rússia ou na China, viveu até aos 110 anos e fumava. Isso acontece sempre. São casos pontuais que estão fora das grandes médias. Todos nós sabemos que isso pode acontecer. Nós temos aí, aliás, cartazes do início do século que era exemplos de fumadores aconselhados por médicos. Isso foi o passado. Hoje sabemos [que é prejudicial], sobretudo das investigações daquele médico que lhe disse, chamado Richard Doll.
Para o lado do Estado também é problemático acabar com o tabaco, porque dá muitas receitas.
Bem, isso é um engano dos "economistas". Dá receitas ao Estado pelo lado do consumo do tabaco. Mas depois dá despesas do lado do tratamento e da falta de produção das vidas que são interrompidas. Temos mais de 10 mil portugueses que morrem todos os anos devido ao fumo do tabaco. O país precisa de produção e a produção são os adultos que produzem. Os economistas...seguramente não é o ministro Centeno que diz isso. Não pode ser. Pelas contas que ele apresenta não pode dizer uma coisa dessas.
Diria que é o maior problema de saúde pública actualmente em Portugal?
O maior risco de saúde pública é. O maior problema não é. É indirectamente. O segundo maior problema que nós temos é com as doenças crónicas. 86% das doenças que matam, antes dos 70 anos, são doenças crónicas. Em cada 100 doentes que morrem antes dos 70 anos, 86 morrem devido a doenças crónicas. E as doenças crónicas têm como denominador comum o problema do tabaco, da alimentação e do exercício físico.
"Lei do aborto foi exemplar"
Na altura em que se torna subdirector-geral, a questão do aborto estava na ordem do dia. A lei foi uma forma exemplar de abordar a questão?
Foi exemplar. Porque repararemos: o aborto e a necessidade que as mulheres sentem para interromper uma gravidez é seguramente tão antiga como a própria humanidade. Na Antiguidade, temos informações que permitem compreender que esta questão da interrupção da gravidez… pode ser uma necessidade desde sempre. Sempre existiu, escondida mas existiu. Houve uma época em que era reprimida. Olhe, um dos contos de José Rodrigues Miguéis fala nas mulheres que tinham praticado abordo, que estavam no Aljube, ou nas Mónicas. Mulheres que eram identificadas pela polícia como tendo praticado aborto eram presas e eram enviadas para um estabelecimento prisional. Ao longo da história da humanidade, notamos sempre a necessidade ou uma opção ou uma vontade de a mulher interromper a sua gravidez quando ela não é desejada. Porque as gravidezes só são interrompidas quando não são desejadas. Quando é desejada nunca é interrompida. Este é um assunto que sempre fez parte… é um assunto que a história não pode ignorar, não pode apagar. Antes de 2007, o que sabemos é que a prática do aborto era frequente, era muitas vezes feita em condições de clandestinidade com falta de higiene e de cuidados médicos, algumas vezes eram as chamadas parteiras que exerciam essa actividade, sublinho, em segredo, em regime de ilegalidade. Algumas vezes até essa ilegalidade na província era consentida, porque a própria população sabe bem ou reconhecia que por vezes era inevitável interromper a gravidez. Os pobres assim faziam, os ricos iam ao estrangeiro, isto mais recentemente. A lei de 2007 teve uma regulamentação muito cuidada, foi aqui na DGS, foi um trabalho que se desenvolveu em duas câmaras. Uma câmara alta era formada por professores catedráticos das diferentes universidades portuguesas, presidida pelo dr. Albino Aroso, que apreciava a documentação que era enviada pelos especialistas que a DGS designou para o trabalho de regulamentação. Viemos depois a perceber que a regulamentação foi perfeita, no sentido de não ter falhado, não foi contestada passadas as primeiras dúvidas. Uma delas era a contagem das 10 semanas, que se mostrou a principal dificuldade, isto porque as semanas contadas no tempo de Hipócrates não são iguais às semanas ecográficas.
Como assim?
Devo dizer-lhe que há mesmo uma diferença de duas semanas, porque a data da última menstruação não coincide com a ovulação, há aqui uma separação em termos de semanas. Foi preciso encontrar consensos, que não foram difíceis porque todos aqueles que estavam envolvidos, uma vez o referendo e a lei aprovadas… porque a lei não promove o aborto. O que é que a lei faz? A lei deixa de considerar um crime o que era dantes crime. A lei despenaliza, descrimina. E é necessário perceber que a lei não promove. A lei regulamenta no sentido de garantir condições de saúde à mulher que assim o deseja, isso aconteceu. Por um lado acabaram os problemas de chegadas aos serviços de urgência com interrupção da gravidez mal executada. As urgências com perfurações de órgãos, da vagina, do útero, da vulva, de infecção, de hemorragias… acabaram. E por outro lado sabemos que tem descido: todos os anos há menos interrupções que no ano anterior. E isso tem sido bom de ver. Muitas vezes recebo aqui os representantes das associações ligadas aos movimentos contra o aborto e pergunto a todos se estão convencidos, caso a lei acabasse, que o aborto acabaria em Portugal. E não há um único que diga isso. Porque a lei não promove, a lei impõe medidas de higiene às mulheres que optam por interromper a sua gravidez.
O acesso dos portugueses à saúde está mais facilitado agora do que quando chegou à DGS?
Sim. Não é inteiramente democrático ainda. Há caminho a percorrer até ser inteiramente democrático.
"ADSE continua a ser um problema discutível"
Essa questão da democracia tem a ver com a oferta dos privados?
Não. Tem a ver mais com o acesso. Tem a ver com o acesso, que tem de ser igual para todos. Costumo dizer que um motorista de um ministro tem de ter facilidade igual a qualquer cidadão pastor de um rebanho em Vila Ruiva, onde fui delegado de saúde.
Do ponto de vista do exemplo, é sustentável que os próprios funcionários públicos que beneficiam de um sub-sistema como a ADSE sejam os últimos a utilizar o sistema público de saúde porque têm acesso privilegiado ao sistema privado?
A questão da ADSE continua a ser um problema discutível. Agora vai ser ampliada, mas tem razão na questão que coloca, levanta dúvidas.
O que dá a entender é que se toda a gente pudesse, toda a gente iria aos privados, não é?
Depois chegaria a altura em que depois se repetiria o cenário, mas essa é uma questão que tem de ser agora equacionada.
Para combater isso tem de se reforçar, diminuir os tempos de espera?
Sim. Uma palavra: democratizar. Estou convencido que é essa a preocupação do ministro Adalberto Campos Fernandes. Sim porque não há nenhum ministro que goste de lidar com listas de espera. Não há nenhum. Todos caminham no sentido oposto. Portanto, esse assunto tem de ser resolvido rapidamente.
Quando precisa de utilizar serviços de saúde...
Serviço público, sempre.
Médico de família, centro de saúde?
Vou ao médico de família, vou a serviços públicos. Já tive acidentes domésticos tratados sempre em serviços públicos. E quando preciso vou ao serviço público. Bem sei que sou eu... cá está a tal questão. No meu caso pode não haver inteiramente observação das regras democráticas. Enfim, mas reconheço: a perfeição, o mundo ideal, seria que todo o cidadão, incluindo o tal pastor de Vila Ruiva do concelho de Cuba do Alentejo, tivesse o acesso igual àquele que eu tenho nos serviços públicos. Esse seria o mundo perfeito.
Gostaria de manter alguma ligação ao sector público?
Não poderei manter porque a lei não o permite, uma vez que se faz 70 anos tem que se abandonar a Administração Pública, uma lei antiga que conhecia quando entrei há 44 anos. Já sabia que isso iria acontecer se fosse o caso de atingir os 70 anos de idade, tudo indica que isso acontecerá. E não é uma surpresa, devo dizer-lhe que concordo com esta regra, que penso que é sábia, porque não podemos confundir a AP com uma empresa privada. O meu avô tinha uma empresa e esteve à frente dela aos 70 anos, aos 80 e até aos 90. Não pode ser. Nós aqui na Administração Pública, os sócios são 10 milhões de portugueses, e naturalmente temos que renovar, inovar, dar o lugar aos mais novos e não somos nós que podemos permanecer nos cargos por decisão própria. Esta decisão da lei que acaba com lugares vitalícios é oportuna e não pode ser comparada ao sector privado.
Perguntava-lhe porque o seu nome foi citado para gerir os fundos dos incêndios.
Isso foi um exemplo, aliás simpático, manifestado num programa conhecido pelo dr. Jorge Coelho, que disse que uma pessoa com o meu perfil podia ficar com essa competência, no sentido de ser um comissário, uma pessoa designada para esse fim. Isso foi um exemplo mas ninguém falou comigo sobre esse assunto, nem o dr. Jorge Coelho nem ninguém, tratou-se de um exemplo em termos de ficção, de uma hipótese, a título de modelo político, mas sem qualquer consequência. Mas posso-lhe dizer: a título particular, sim [gostava]. Mas não aconteceu nem vai acontecer.