Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Covid-19: Marta Temido enfrentou pressão e críticas mas deixou Governo por outras razões

“Também estava cansada, mas sobretudo as pessoas estavam cansadas. Estavam cansadas da pessoa que lhes tinha pedido sacrifícios”, disse a antiga ministra da Saúde.

Marta Temido, ministra da Saúde desde final de 2018, não terá substituição rápida, segundo o primeiro-ministro.
António Cotrim/Lusa
09:40
  • ...

Marta Temido enfrentou desafios, críticas e pressão na pandemia, mas acabou por deixar o Governo mais tarde devido ao desgaste da relação com os profissionais de saúde e por sentir que os portugueses estavam cansados da ministra que lhes pediu sacrifícios.

 

Em entrevista à agência Lusa, a propósito da passagem de cinco anos sobre o aparecimento dos dois primeiros casos de covid-19 em Portugal, em 2 de março de 2020, e questionada sobre se a saída do Governo foi o culminar de muita pressão e de cansaço, a antiga ministra da Saúde disse que "também estava cansada, mas sobretudo as pessoas estavam cansadas. Estavam cansadas da pessoa que lhes tinha pedido sacrifícios".

 

"Acho que precisavam de uma mudança de atores e, sobretudo, a minha relação com os profissionais de saúde estava muito desgastada e, portanto, o melhor é ser capaz de sair. E acho que, durante algum tempo, foi possível criar ali uma lufada de ar fresco", salientou.

 

Marta Temido disse nunca se ter sentido injustiçada. "Sei que fiz o melhor que sabia. Sei que tive comigo, e tive essa sorte, pessoas que fizeram muito melhor do que eu e que me ajudaram a vencer todos os dias (...) e que me deram força em muitos momentos e isso ajudou-me a estar focada na resposta a cada momento. Quando saí, saí com tranquilidade", em setembro de 2022.

 

O dia 2 de março "ficará para sempre na memória" porque é o dia do seu aniversário. "É daquelas pequenas ironias do destino", disse Marta Temido, com um sorriso, recordando o que aconteceu antes da chegada da pandemia a Portugal.

 

"Começámos por ver imagens no final de dezembro, início de janeiro, que vinham da China e mais adiante de Itália e de outros países europeus onde a Covid-19 chegou primeiro (...).

Lembro-me de ver as zonas próximas de Bérgamo a serem interditadas ao trânsito e pensar o que é que estão a fazer, o que é isto? E depois aconteceu-nos também a nós", relatou.

 

Marta Temido contou que as primeiras horas foram de perplexidade, mas também de necessidade de reação, nunca imaginando que Portugal iria ter uma "avalanche de casos" e acreditando que "o fim poderia ser rápido, coisa que depois se veio a comprovar ser um erro".

 

Foi preciso preparar o SNS para garantir prontidão na resposta à pandemia, o que disse ter sido "muito difícil", porque foi preciso suspender a atividade programada e depois garantir que havia os materiais de consumo clínico, ventiladores e gás medicinal.

 

"Todos os dias o cenário foi ficando um bocadinho mais complexo até ao momento em que a vacinação, mas isso já é outra fase, começou a permitir ganhar à doença", comentou a ex-ministra e atual eurodeputada.  

 

Em 18 de março de 2020 foi decretado o primeiro confinamento obrigatório, uma medida acatada ordeiramente. "Mais do que aquilo que tínhamos a certeza de ser o melhor caminho, as pessoas queriam ir para casa, os pais queriam tirar os meninos da escola, etc., mas na perspetiva de que tudo fosse rápido. E não foi".

 

Marta Temido salientou que as decisões foram sempre baseadas nas orientações de peritos de várias instituições científicas nas reuniões do Infarmed, "num processo único de formação de decisão e de partilha de decisão".

 

"Acho que isso foi a grande mais-valia desse processo e do qual, se calhar, não aprendemos tantas lições quantas deveríamos", comentou.

 

Para Marta Temido, "o relativo sucesso" de Portugal na resposta à Covid-19 também se deveu aos atores políticos que, "desde o partido do governo [PS] até aos partidos da oposição, todos dividiam aquele espaço e aquela angústia".

 

"Isso tornou possível fazer um caminho em conjunto. Claro que houve momentos de deslaçamento, não foram tudo rosas, nunca poderia ser, houve também muitos espinhos, mas conseguimos chegar até aqui", declarou.

 

A ex-ministra também enalteceu o comportamento dos portugueses. "Se há alguém que mereça um agradecimento e uma palavra de gratidão pela forma como a resposta à pandemia foi dada é a população, porque soube ser muito disciplinada, muito cumpridora, muito responsável, muito solidária".

 

"Houve uma fase em que o Ministério da Saúde estava inundado de contactos de pessoas que queriam ajudar", disse, considerando que esta atitude da população foi "muito importante para os profissionais de saúde superarem os seus medos, as suas dificuldades, os seus cansaços e a sensação de que não podiam falhar a uma população que tinha tanta confiança em si".

Como medida mais difícil de comunicar, Marta Temido apontou o segundo confinamento, em janeiro de 2021.

 

"Foi o mais dramático, porque não pensei que voltasse a ser necessário. Estávamos todos já muito cansados e era uma espécie de uma nova condenação a uma situação que sabíamos que tinha efeitos psicológicos, económicos e sociais, muito complexos", vincou.

Sobre como lidou com a pressão e as críticas neste período, Marta Temido disse que foi com "algum distanciamento", apesar de por vezes magoarem.

 

"Não é ficar surdos, nem não refletir. É criar um tampão protetor em relação a algumas coisas, sobretudo saber distinguir a crítica construtiva, que nos ajuda a corrigir caminho, a fazer melhor para a próxima vez, porque erramos todos e erramos muito. E se alguém pensa que não erra, desengane-se. A questão é o que é que se faz com o erro", salientou.

 

Lamenta "oportunidade perdida" com retirada de poderes à Direção Executiva

 

Marta Temido lamenta a retirada de poderes à Direção Executiva do SNS por ser uma "oportunidade perdida" de melhorar a máquina dos cuidados de saúde, realçando que todos os grupos privados têm uma coordenação.

"Não há nenhum grupo privado de saúde que não tenha uma coordenação. Como é que o SNS pode dar-se ao luxo de dizer que não precisa de uma coordenação ou que a coordenação é feita a partir do Ministério da Saúde", questionou Marta Temido em entrevista à agência Lusa, a propósito dos cinco anos, que se assinalam no domingo, do aparecimento dos primeiros casos de covid-19 em Portugal.

 

Marta Temido, que apresentou o diploma que criou a Direção Executiva do SNS no último Conselho de Ministros em que participou, em 08 de setembro de 2022, antes de sair do Governo liderado por António Costa, defendeu que o Ministério da Saúde "deve definir políticas e alinhá-las com as melhores práticas que estão a ser feitas noutros países, e não propriamente estar a controlar o dia-a-dia da operação".

 "A quantidade de vezes que o ministro da Saúde, e penso que terá acontecido com todos, é confrontado, designadamente, na Assembleia da República com perguntas de natureza operacional e não de natureza política, mostra que andamos todos a fazer uma função que não é nossa", comentou.

"A Direção Executiva não caiu do céu, nem foi uma ideia importada de um qualquer país (...). Nasceu de uma compreensão clara, espoletada por uma realidade, de que o sistema precisa de ser mais organizado, mais articulado, mais cooperante".

Mas, ressalvou, "o objetivo não era ter um grande chefe ou uma estrutura pesada, complexa, ou de mando", mas sim um diretor de operações, porque a prestação de cuidados do SNS "é uma máquina e está dividida em muitos bocados", que não comunicam.

"Se calhar comunicam melhor agora do que comunicavam antes, fico contente por isso, mas as sinergias ainda são poucas para aquilo que era a sua possibilidade. A ideia da direção operacional era essa", lamentou.

 

Marta Temido disse assistir à retirada de poderes à Direção Executiva com "a compreensão de que a realidade é evolutiva".

"Nós achávamos que era o melhor caminho, outros têm um entendimento diferente. Com alguma pena, a pena de uma oportunidade perdida de fazer uma máquina mais funcionante", sublinhou.

 

Questionada se a resposta do SNS a uma nova pandemia seria igual, num cenário em que muitos profissionais têm deixado o SNS, a antiga governante mostrou confiança em que "as pessoas se superariam mais uma vez", mas disse que "o preocupante é o sistema de saúde".

 

"O sistema evoluiu pouco, adaptou-se pouco, retirou poucas lições, até em termos daquilo que, na altura, percebemos da necessidade de uma coordenação forte da prestação de cuidados de saúde e que hoje, na política diária, tantas vezes criticamos que não é necessária", frisou.

Comentando as críticas ao atual Governo de estar a entregar cuidados de saúde aos setores privado e social, Marta Temido afirmou que "os privados são importantes, e na pandemia foram fundamentais, mas são complementares".

"Posso repetir 20 vezes, são complementares. Não podemos é deixar o SNS ser secado, porque não pode ficar, naturalmente, só com o que não é lucrativo, porque isso também não lhe permite subsistir. É uma questão de racionalidade, de lucidez", alertou.

A agora eurodeputada sublinhou que as características do SNS estão constitucionalmente consagradas, embora reconheça que "a realidade é dinâmica e exige adaptações para responder melhor a um perfil muito diferente de necessidades".

Mas, alertou, "a sua fragilização é a fragilização da política e da democracia. Portanto, é com muita preocupação que vejo essa erosão diária do nosso SNS".

"Quero acreditar que até o Governo perceberá isso e será coerente, mais tarde ou mais cedo, naquilo que é a necessidade de infletir um determinado caminho", sustentou.

Marta Temido reforçou que "os sistemas de saúde fortes ajudam as democracias a serem mais fortes" e afirmou que "não vê nada de bom a vir do desmantelamento das respostas públicas".

 

"As respostas públicas são melhores que as privadas? São aquelas que temos em Portugal e não há nenhum sistema de saúde que faça uma mudança de público para privado ou de privado para público subitamente", salientou.

Marta Temido lembrou a antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher que, nos anos 80, foi obrigada a vir a público a dizer: "o NHS connosco está em boas mãos", perante o receio da população de que o sistema nacional de saúde pudesse ser posto em causa.

Ver comentários
Saber mais marta temido ministra da saúde covid-19 sns
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio