Notícia
2004: Barroso saiu e Sampaio fartou-se de Santana
Era Verão, mas politicamente ninguém diria. A saída do primeiro-ministro para o mais alto cargo europeu abriu uma crise em Lisboa, que levou à primeira maioria absoluta do PS.
Junho de 2004. Os termómetros marcavam a temperatura mais alta desde 1931, antecipando um Verão quente. Em Lisboa, o mercúrio da política portuguesa também estava prestes a disparar. Pela primeira vez na história do país, um primeiro-ministro abandonava o cargo para presidir à Comissão Europeia. A renúncia de Durão Barroso abriu uma crise política que durou até ao final desse ano e que culminou em 2005 com a primeira maioria absoluta do PS e com o PSD a perder 34 deputados no Parlamento.
As primeiras notícias de que Durão Barroso poderia suceder a Romano Prodi quase passaram despercebidas em Portugal. Falava-se do apoio do Governo português a António Vitorino. Mas a vitória do Partido Popular Europeu nas europeias e o alargamento da União Europeia impôs novos equilíbrios. O próprio Barroso desmentiu que estivesse na corrida, mas a 27 de Junho foi convidado para presidir à Comissão.
O chefe do Governo saiu de Portugal depois de dois anos de austeridade justificados com o facto de ter encontrado o país "de tanga". Mas antes deixou avisos. A Jorge Sampaio, Barroso lembrou que havia uma maioria estável no Parlamento - uma coligação PSD/CDS - que permitia a formação de um novo Governo. Para dentro do partido, disse que qualquer erro do PSD "pode contribuir para pôr o PS no poder".
Sai Barroso, entra Santana
Sampaio precisou de tempo para decidir - ouviu o governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, João Salgueiro e o ex-primeiro-ministro, Cavaco Silva - para sinalizar preocupação com a estabilidade da política económica. A correria para Belém continuou e, enquanto os jornais especulavam sobre o que podia acontecer, o PSD entrava em convulsão: "golpe de Estado", disse Ferreira Leite. Santana, vice de Barroso, é eleito presidente do PSD e fica na linha da frente.
A 11 de Julho, Sampaio decidiu. Ignorando os apelos da esquerda para a marcação de eleições antecipadas, deu "oportunidade à actual maioria de formar um novo Governo" e pediu continuidade de políticas. Santana Lopes prometeu apresentar o mesmo Programa de Governo que servia de guião a Durão e Portas, chega a primeiro-ministro e o PS perde o líder. Contra a opção de Sampaio, Ferro Rodrigues demite-se e abre caminho para Sócrates lhe suceder no PS.
Pedro Santana Lopes toma posse a 17 de Julho a dizer que o rigor é "o único caminho possível". Mas desde a primeira hora, as contradições são mais que muitas. Santana tem o segundo maior Governo de sempre, troca pastas na hora da posse, deslocaliza secretarias de Estado para fora de Lisboa. Atira o défice para segundo plano, entra em contradição com o ministro das Finanças sobre a descida do IRS, vê-se envolvido em polémicas nas revistas cor-de-rosa.
Santana não tem descanso. Mas também não dá descanso. A ‘silly season’ já era. Os zigue-zagues eram diários. O Presidente vetava leis - fazia críticas em público. Marcelo sai da TVI depois do Governo o ter acusado de "destilar ódio ao primeiro-ministro". Fica no ar a palavra censura.
O Governo apresenta o Orçamento para 2005 ferido de credibilidade, dizem os analistas. Poucos dias depois, Santana dá a consolidação orçamental por terminada e Cavaco publica um artigo no Expresso onde defende que os políticos competentes expulsem os políticos incompetentes.
O final de Novembro é marcado por uma remodelação surpresa e a saída do ministro Henrique Chaves do Governo a acusar Santana Lopes de falta de "lealdade e verdade". No último dia do mês, a ruptura: Sampaio informa Santana de que vai convocar eleições.
Memória colectiva
O ano de 2004 trouxe para os portugueses uma lição. "O Presidente tem mais poderes do que aqueles que existiam até aí na memória", explica o politólogo António Costa Pinto. E não só porque pode dissolver o Parlamento. "Também tem o poder de escrutinar o dia-a-dia do Governo" e a "grande autonomia para decidir contra os partidos de origem", explica o professor do Instituto de Ciências Sociais, lembrando que Ferro se demitiu quando Sampaio deu a vez a Santana.
Nas vidas dos protagonistas, as coisas também mudaram. Santana ficou para a história como o chefe de um dos Governos mais curtos e as más relações com Sampaio são evidentes até hoje. Em Março deste ano, o antigo chefe de Estado explicou as razões da decisão de 2004: "Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva". O ex-primeiro-ministro desafiou Sampaio para um debate televisivo e acusou o antigo Presidente de viver em "tormento" por ter aberto a porta a Sócrates. Santana é hoje provedor da Santa Casa da Misericórdia e o seu nome chegou a ser falado para ser candidato a Lisboa pelo PSD este ano.
Já Barroso esteve 10 anos em Bruxelas. Os dois mandatos foram marcados por fases conturbadas, entre elas a crise do euro com o resgate de quatro países. Nem na saída Barroso foi consensual. Em 2016, entrou para o poderoso banco de investimento Goldman Sachs como presidente não executivo, uma nomeação que lhe tira o tapete vermelho sempre que for a Bruxelas - onde será tratado como lobista - e que lhe valeu uma queixa junto da Provedoria de Justiça Europeia que juntou mais de 150 mil assinaturas de ex e actuais funcionários da Comissão.