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2003: No pós-tanga, a economia também ia nua

Um ano depois de Durão Barroso ter dito que o país estava “de tanga”, a economia portuguesa caiu em recessão. 2003 marcaria o fim da trajectória de aproximação à média da União Europeia.

Um ano depois de Durão Barroso ter dito que o país estava 'de tanga', a economia portuguesa caiu em recessão. 2003 marcaria o fim da trajectória de aproximação à média da União Europeia.
Correio da Manhã
30 de Maio de 2017 às 20:06
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"Tudo aquilo que podia correr mal correu." Era assim que o editorial do Negócios resumia os acontecimentos de 2003. Dez anos depois, o país tinha voltado a provar o sabor amargo da recessão, o desemprego subia, faltava confiança ao ambiente de negócios, ao mesmo tempo que o crescimento na Europa tropeçava e os mísseis regressavam aos céus do MédioOriente. A edição especial que o Negócios dedicou a 2003 trazia na capa um autocarro, que tinha caído num buraco gigante em pleno bairro de Campolide. "Bateu no fundo", lia-se em baixo. Auto-explicativo.

O ano ainda nem tinha começado e as expectativas já estavam a cair a pique. Em Outubro do ano anterior, o Governo tinha inscrito noOrçamento doEstado uma previsão de crescimento de 1,75% (ponto médio de um intervalo de 1,25% a 2,25%). Dois meses depois, o Programa de Estabilidade e Crescimento já revia em baixa essa estimativa para 1,3%. A meio do ano, a recessão tornou-se o cenário mais provável. Foi a primeira contracção da economia desde 1993 e acabaria por ser a recessão mais grave desde 1984, ano da intervenção do FMI no país.

Em Janeiro, quando crescer ainda era uma possibilidade realista, o Negócios não esperava facilidades: "2003 promete ser um ano globalmente menos simpático do que foi o de 2002." E foi. Mas simpático talvez se tenha revelado um eufemismo. O ano constituiu o culminar de uma desaceleração que começou em 2001, depois da entrada do país na Zona Euro. A economia, que cresceu a uma média de 3% na década anterior, viu o PIB passar de um crescimento 3,8% em 2000 para 1,9% em 2001, 0,8% em 2002 e, por fim, uma contracção de -0,9% em 2003.

O Governo era liderado por Durão Barroso, que escolheu Manuela Ferreira Leite para a pasta das Finanças. Um ano antes, o primeiro-ministro tinha dito que o país estava "de tanga" e Ferreira Leite tinha-se comprometido a dar-lhe umas roupinhas. Esse objectivo foi cumprido graças a receitas extraordinárias, que permitiram colocar o défice ligeiramente abaixo do limiar dos 3% (2,94%, para ser preciso).

A opção por consolidar as contas foi defendida mesmo com um ciclo de conjuntura desfavorável, o que motivou até algum "fogo amigo". Miguel Cadilhe, antigo ministro das Finanças e presidente da Agência Portuguesa para o Investimento (API), pedia políticas que suportassem a actividade económica. "É um erro travar a fundo, ainda por cima se as coisas estão a arrefecer por si próprias", afirmou em Maio desse ano.

Quem parecia apoiar a estratégia era Vítor Constâncio. O actual vice-presidente do BCE era, à data, governador do Banco de Portugal. Constâncio argumentava que Portugal tinha acabado de sair de uma década de 90 repleta de excessos e que o ajustamento era natural. Numa entrevista ao Negócios dada a meio do ano, explicou que havia três efeitos a actuar ao mesmo tempo: "a desaceleração internacional, o ajustamento da despesa dos agentes privados, após um período de forte expansão e crescimento; e, em terceiro lugar, os efeitos da consolidação orçamental."

Para Constâncio, os dois movimentos eram inevitáveis: a aceleração antes da entrada no euro, aproveitando a descida dos juros; e o ajustamento nos anos seguintes. 2003 estaria no centro da tempestade. "2003 será o pior ano desta fase da evolução da economia portuguesa. 2004 será um ano difícil, mas estamos este ano atravessar o ponto mais baixo deste ciclo", acrescentou. O governador seria escolhido pelo Negócios como a principal figura económica do ano por enfrentar "as dificuldades na sua dimensão real, apontar caminhos e balizar o debate sobre política económica, prevenindo a demagogia".

Mas afinal o que aconteceu à economia em 2003? Nesse ano, as importações caíram 0,4%, o que, na óptica da despesa, até ajudou o PIB, mas reflectiu uma queda de 7,3% do investimento e quebras fortes na compra de automóveis. Os gastos das famílias recuaram 0,2%, enquanto o sector público aumentou a despesa, mas a um ritmo bastante inferior ao do passado recente.

 

Mísseis no Golfo e lentidão na Alemanha

A 20 de Março de 2003, pelas 02h30, Bagdade começa a ser bombardeada pelas forças militares norte-americanas, dando início à Segunda Guerra do Golfo. A decisão dos EUA (e Reino Unido) teve consequências bem mais abrangentes e que se sentem até hoje na região, mas contribuiu também para penalizar a actividade portuguesa. Ferreira Leite reconheceu na altura que a guerra afectava o crescimento desse ano. Outro factor citado pela ministra como travão ao crescimento era a recuperação mais lenta da Alemanha. Depois de ter estagnado em 2002, a economia germânica também entrou em recessão em 2003, o que arrastou a economia da UniãoEuropeia para um crescimento débil de apenas 0,6%.

 

Expectativas por cumprir

 

De certa forma, 2003 simbolizou um ponto final na convergência da economia portuguesa com a europeia. Nos oito anos anteriores, o crescimento nacional tinha acompanhado ou superado a média da UniãoEuropeia. Desse ano para a frente, a economia deixou de conseguir acompanhar o comboio europeu. Tirando a recessão de 2009 – que em Portugal foi mais leve do que na UE – o crescimento tem sido mais baixo e as contracções mais profundas.  Desde então, só por uma vez cresceu acima de 2%. Se as previsões se confirmarem, 2017 deverá ser o primeiro ano desde 1999 em que Portugal cresce mais do que a média da UE (12 países).

Muitas das expectativas que ainda existiam nesta altura sobre a melhoria do bem-estar em Portugal não se concretizaram. Por exemplo, em 2003, o Governo esperava que em 2017 a economia tivesse atingido o mesmo nível de prosperidade do que a média da UE. Chegados a esse ano, conclui-se que Portugal não se aproximou. Pelo contrário. O PIB per capita português estava em 2003 nos 16,3 mil euros, o que comparava com 28 mil na média da UE (12 países). Hoje, essa distância é ainda maior: 17,2 vs. 30,7 mil euros.

No que diz respeito às contas públicas, o Governo colocou o défice em 2,94% (4,4% à luz das regras actuais), mas os desequilíbrios não desapareceram. O choque da crise financeira de 2008 acabaria por trazê-los definitivamente à tona da água, atirando o défice para valores superiores a 10%. Uma dívida pública controlada e inferior a 60% do PIB – valor de 2003 – está hoje num nível mais de duas vezes superior, com constantes dúvidas sobre a sua sustentabilidade.

Se em 2003 tudo o que podia correr mal correu, os anos seguintes não seriam muito melhores. Sabendo o que aconteceu às contas e à economia, o autocarro cairia ainda mais fundo no buraco.

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