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Manifesto dos 50 exige fim do poder sem controlo do Ministério Público

Cinquenta personalidades dos mais variados quadrantes criticam o atual estado do sistema da justiça e apelam à iniciativa política para que faça uma reforma do setor

Bruno Simão
Celso Filipe cfilipe@negocios.pt 03 de Maio de 2024 às 00:00

Uma "reforma da justiça" em "defesa do Estado de direito democrático". Esta é a exigência de um manifesto subscrito por 50 personalidades divulgado esta sexta-feira, 3 de maio, no qual se desafia o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, assim como os partidos políticos, a avançarem com iniciativas que materializem uma reforma neste setor.

O manifesto apela a uma "atitude pró-ativa" do poder político "na definição e execução da política de justiça" e, sem prejuízo da sua autonomia, exige a recondução do Ministério Público ao funcionamento hierárquico e o fim do exercício por parte dos seus magistrados de "um poder sem controlo" interno ou externo.  Os 50 subscritores pedem igualmente um "escrutínio externo" e "avaliação democrática independente" do sistema judicial.

Entre os 50 signatários do documento encontram-se personalidades como Leonor Beleza, Ferro Rodrigues, Rui Rio, Augusto Santos Silva, Pacheco Pereira, Diogo Feio, António Vitorino e Paulo Mota Pinto.

O manifesto, que se estrutura em 10 pontos, defendo a necessidade urgente de uma reforma da justiça que, "respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública".

Sem fazer uma referência concreta ao últimos casos mediáticos, nomeadamente à Operação Influencer que conduziu à demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro, o manifesto sublinha as "recorrentes quebras do segredo de justiça" que "boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos".

O Manifesto dos 50 apela a que a reforma pedida "não seja desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do sistema", mas que, pelo contrário, tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático como eixos centrais das suas preocupações.

Nesta medida, exigem também "ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação, quer na abertura da investigação penal, quer no uso dos meios de investigação especialmente intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias", fazendo "prevalecer desde o início o princípio constitucional da presunção de inocência".

 

 

 
Leia na íntegra o manifesto e conheça a identidade dos 40 subscritores

 

 

 

 

POR UMA REFORMA DA JUSTIÇA

EM DEFESA DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

1 ­- Ao cabo de 50 anos de percurso, o nosso regime democrático carece de intervenções de caráter estrutural que lhe possam devolver a plena capacidade para responder aos múltiplos desafios da atualidade. Nesse âmbito, a reforma da Justiça aparece como prioritária, por ser o setor do poder público que mais problemas tem vindo a evidenciar.

Além de ter de respeitar a Constituição, a ação da Justiça tem de ser entendida pelo Povo e, quando assim não é, é a própria Justiça que falha. Essa incompreensão tem vindo a acentuar-se ao longo dos últimos anos e tem minado a tão necessária confiança no sistema judicial, como revelam os estudos de opinião que têm sido realizados.

2 - Se a morosidade, designadamente na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal, é o fenómeno mais persistente - e inadmissível numa sociedade democrática, uma vez que na prática acaba por pôr em causa a própria realização da justiça -, existem muitas outras falhas que em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático, nem com a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos (que comparam bem com outros países europeus), nem com o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça, que não é menos importante para eles do que o sistema de ensino ou o sistema de saúde para os respetivos utentes.

3 – Apesar de constitucionalmente protegido, as recorrentes quebras do segredo de justiça, com a participação ativa de grande parte da comunicação social, dão azo a julgamentos populares, boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos, penalizando-os cruelmente para o resto das suas vidas, mesmo quando acabam judicialmente inocentados.

Um regime que aceita essa forma de proceder perde uma parte significativa da sua autoridade moral perante aqueles de quem se quer distinguir em termos éticos e de respeito pelos Direitos Humanos. A violação das regras constitucionais da investigação penal é realmente um problema de regime.

4 - A juntar a esta perturbante realidade, tem-se também assistido na investigação penal a graves abusos na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente com a proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias injustificadas e, mesmo, de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade.

As montagens do já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso, têm confundido intencionalmente a árvore com a floresta, formatando a opinião pública para a ideia de que todos os titulares de cargos públicos são iguais e que todos são corruptos até prova em contrário. Esta forma perversa de atuar, com contornos mais políticos do que judiciários, tem produzido um óbvio desgaste no regime e, por consequência, reforça o descontentamento popular e abre as portas ao populismo e à demagogia, tanto mais que muitos processos se eternizam sem conclusão ou acabam sem acusação ou sem condenação judicial.

Este procedimento torna-se ainda mais crítico, quando os resultados práticos do combate à corrupção em Portugal se reduzem normalmente a um preocupante insucesso e a uma manifesta incapacidade de combater tão grave fenómeno, por quem tem a especial responsabilidade de o fazer.

5 - A prolongada passividade perante esta iníqua realidade permitiu que tivéssemos atingido o penoso limite de ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os Tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador. A agravar a situação, o País continuou a assistir ao inconcebível, quando, tendo decorrido longos cinco meses entre o Primeiro Ministro se ter demitido, na sequência do comunicado da PGR, e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se dignou informá-lo sobre o objeto do inquérito nem o convocou para qualquer diligência processual.

Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de Direito Democrático.

6 - Apesar da gravidade do sucedido e da crítica pública generalizada, todas estas falhas, com fortes repercussões na nossa vida democrática e na confiança no sistema de justiça, não tiveram qualquer consequência interna na condução destas investigações e dos atos processuais que delas decorrem, por força de um funcionamento e de uma cultura de perfil corporativo, que manifestamente predomina no Ministério Público.

Ao contrário de todos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo.

O sentimento de impunidade que a ineficácia do sistema, por si só, já transmite para a sociedade, é, assim, agravado pelo défice dos mecanismos de avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo descomprometido com o próprio aparelho judiciário. Ora, numa democracia constitucional, como a nossa, nenhum titular de cargo público é irresponsável pelas suas decisões e pelas suas falhas perante a coletividade.

7 - O poder que, através de sufrágio livre e democrático, os cidadãos delegam nos seus representantes diretos para, em seu nome, definirem e executarem as diversas políticas setoriais, não encontra, em Portugal, expressão efetiva no caso da política criminal. A definição desta cabe constitucionalmente ao poder político, mas na sua execução magistrados do Ministério Público, sem qualquer mandato constitucional, têm, na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da Procuradora-Geral da República pelas investigações.

Apesar desta perigosa realidade, nem qualquer órgão de soberania, nem qualquer partido político relevante têm mostrado a necessária vontade e coragem políticas para encetar uma verdadeira reforma da Justiça.

Aliás, nesta matéria, tem prevalecido a busca do pequeno ganho partidário imediato em detrimento do interesse público, variando as posições em função da filiação partidária dos atingidos, como revelam as posições partidárias contraditórias assumidas nos referidos casos que afetaram os governos da República e da Região Autónoma da Madeira.

8 - Perante esta preocupante inércia, e quando a democracia portuguesa acaba de celebrar os seus 50 anos, compete à sociedade portuguesa um sobressalto cívico que leve os responsáveis políticos a assumirem as suas responsabilidades e a elegerem a reforma da Justiça como inequívoca prioridade na defesa do Estado de Direito Democrático.

Por isso, os signatários instam o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, bem como todos os partidos políticos nacionais a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de uma reforma no setor da Justiça, que, respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública.

9 - Concretamente, é necessária uma reforma que, embora não desconsiderando as legítimas aspirações dos agentes de Justiça, não seja desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do sistema, mas que tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático como eixo central das suas preocupações, não ignorando prioridades evidentes, tais como:

Garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça;

Combater a opacidade, reforçando a transparência no funcionamento das instituições da justiça;

Respeitar o poder da coletividade, através dos seus legítimos representantes, de definição da política criminal e de controlo da sua execução, nos termos constitucionais;

Reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o/a Procurador/a-Geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas;

Reforçar os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e implementar mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares competentes;

Instituir e fazer aplicar exigências de ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação, quer na abertura da investigação penal, quer no uso dos meios de investigação especialmente intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias, bem como na sua revisão periódica, fazendo prevalecer desde o início o princípio constitucional da presunção de inocência;

Fazer cumprir efetivamente o segredo de justiça, constitucionalmente protegido, aplicando a lei penal e as normas disciplinares contra a sua violação;

Reduzir drasticamente a morosidade dos processos judiciais, cumprindo o requisito da decisão "em prazo razoável", nos termos da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos;


Melhorar a efetivação do direito de acesso dos cidadãos à justiça.

10 - Corretamente entendida, a máxima "à política o que é da política e à justiça o que é da justiça" proíbe a interferência de uma esfera na outra, mas não subtrai ao poder político democrático a sua responsabilidade na definição e execução da política de justiça. Pelo contrário, exige-se uma atitude pró-ativa a quem, em última instância, cabe sempre a responsabilidade pelo regular funcionamento das instituições.

A melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir nos 50 anos da democracia portuguesa é reconhecer de forma digna e leal o que a está a fragilizar e, honrando o nome dos que por ela lutaram, ter a coragem e a vontade de mudar.

 

Os 50 signatários do Manifesto

 

Agostinho Abade

Alberto Costa

Álvaro Beleza

André Coelho Lima

António Barbas Homem

António Barreto

António Correia de Campos

António Monteiro

António Vitorino

Augusto Santos Silva

Carla Castro

Daniel Oliveira

Daniel Proença de Carvalho

David Justino

Diogo Feio

Eduardo Ferro Rodrigues

Fernando Melo Gomes

Fernando Negrão

Francisco Porto Fernandes

Francisco Rodrigues dos Santos

Germano Marques da Silva

Isabel Soares

João Bosco Mota Amaral

João Caupers

Jorge Marrão

José António Pinto Ribeiro

José Francisco de Faria Costa

José Luís Pinto Ramalho

José Mário Ferreira de Almeida

José Pacheco Pereira

José Vieira da Silva

Karin Wall

Leonor Beleza

Lucinda Dâmaso

Luísa Meireles

Manuel Sobrinho Simões

Maria de Lurdes Rodrigues

Maria Elisa Domingues

Maria João Antunes

Maria Manuel Leitão Marques

Miguel Sousa Tavares

Mónica Quintela

Paulo Mota Pinto

Renato Daniel

Rui Rio

Sónia Fertuzinhos

Teresa Pizarro Beleza

Teresa de Sousa

Vital Moreira

Vítor Constâncio

 

 

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