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A nave dos novos pobres

À noite, a Gare do Oriente é o porto seguro de mais de 40 sem-abrigos. É lá que vivem Ricardo e Sandra, um casal de namorados com pouas esperanças no futuro

Negócios 30 de Novembro de 2012 às 00:01
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A noite desce e o frio obriga ao refúgio. Os corpos enrolam-se nos sacos-cama e nas mantas velhas. Uns após outros, os corpos de mais de quarenta sem-abrigo perfilam-se quais casulos num ninho. Quando se descem as escadarias da Gare do Oriente, em Lisboa, até ao piso mais baixo, surge-nos uma visão quase ficcionada de um filme apocalíptico: os corpos deitados em fila, perfeitamente arrumados, sob os bancos laterais de uma grande nave. Bancos feitos de pedra da calçada, duros e brancos.

Os corpos descansam neste fundo perdido da noite lisboeta, ao lado de seguranças, de agentes da PSP e da máquina de limpeza que percorre toda a nave, deixando o chão com o brilho possível. Neste desassossego nocturno há quem esconda a cara, apesar de ser habitante há vários meses, ou anos. E há um anónimo, um dos rostos mais jovens que se avistam fora do saco-cama, que não esconde a tristeza de ter que ali estar. Chegou há duas semanas. "Antes de vir para aqui, trabalhei em hotelaria, em armazéns e já fiz voluntariado". Agora, apesar de procurar, a única garantia que tem é que pode dormir nesta estação. Com 22 anos, este jovem de olhos azuis e cabelo louro, sem casa nem família, partilha com um casal uma gigante almofada para repousar a cabeça. Uma saca de cimento cheio de roupas e outros pertences que vão encontrando na rua.

O casal de namorados, também eles recém-chegados à nave dos aflitos, dorme todas as noites na Gare do Oriente já lá vão quatro semanas. "Conhecemo-nos há três meses e começámos a namorar", lembra Ricardo. Em Junho terminou o contrato de trabalho, como segurança, no Brasil. O regresso foi difícil. "Cheguei cá e não consegui arranjar grande coisa. Apenas uns biscates, na construção civil e na área da electricidade, mas de resto mais nada" e com 25 anos olha para o tecto, como quem vê estrelas ofuscadas e faz uma cara de tristeza.

A família de Setúbal não tem condições para o sustentar. Tal como a namorada, originária do norte do país. Sandra acabou há poucos dias um contrato de trabalho, atrás de um balcão de pastelaria e agora sem dinheiro para ter uma casa, só lhe resta agarrar-se ao calor do namorado e das mantas que encobrem mais do que o frio. "Já trabalhei em restaurantes, em bombas de gasolina ou nas confecções. Tenho procurado e as respostas são sempre não, não e não. Só querem que a gente faça cursos, mas os cursos não servem de nada. Tirei um curso de Ambiente, Segurança e Higiene no trabalho, mas nem isso vale de nada."

Além desta espécie de nave de abrigo, há os pisos superiores e as escadarias da Gare do Oriente que escondem outros corpos e outras estórias. Quando forem seis da manhã, serão acordados pelos seguranças. Usam as casas de banho e sobem para o nível da Gare em que se apanham autocarros, comboios, táxis. Mas, os novos habitantes nocturnos da Gare do Oriente não vão para lado nenhum. Talvez só pedir uma esmola, bater mais uma vez à porta da segurança social ou arrumar uns carros e conseguir uns trocos. Outros aproveitam para tomar um banho nos balneários públicos de Moscavide. Aqui não se paga.

Com sorte, apanham-se uns alimentos na porta das traseiras de cafés e restaurantes das redondezas e aproveitam-se uns electrodomésticos velhos nos depósitos e lixos de grandes lojas e armazéns. O cobre sempre dá para vender.

 

Mário Gallego, Antena 1

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