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Referendo turco: Observadores falam em “campo inclinado”. Erdogan diz para terem "noção do seu lugar"
Num primeiro relatório preliminar ao referendo realizado este domingo na Turquia, duas organizações independentes sustentam que os padrões mínimos democráticos não foram assegurados. Oposição já avançou com pedido de anulação do referendo.
Às críticas feitas pela generalidade da oposição quanto à legalidade do referendo constitucional que teve lugar este domingo, na Turquia, juntaram-se esta segunda-feira, 17 de Abril, duas organizações que supervisionaram a referida consulta popular.
"Concluímos que [o referendo] ficou aquém da total adesão" às regras internacionais, disse, citada pelo site Politico, Tana de Zulueta, chefe da missão de observação realizada pela Organização para a Cooperação e Segurança na Europa (OSCE) em conjunto com a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE).
No relatório preliminar acerca do referendo constitucional turco, aquelas duas instituições revelam ter identificado alterações às regras feitas à 25.ª hora quanto ao processo de contagem dos votos. Este é um dos argumentos apresentados pela oposição para pedir a anulação do referendo deste domingo.
No relatório da OSCE e da APCE defende-se que a decisão do Comité Eleitoral de, já depois de encerradas as urnas, contabilizar como válidos boletins de voto sem o necessário selo oficial - o que contraria a lei eleitoral turca – porque "alterou significativamente o critério de validade da votação, enfraquecendo uma importante salvaguarda e contrariando a lei".
Estes supervisores eleitorais concluem que o referendo sobre o reforço de poderes na figura presidencial decorreu "em campo inclinado", com a campanha do "sim" a dominar as atenções dos media (num país com uma enorme taxa de jornalistas presos).
"O enquadramento legal foi inadequado para a realização de um genuíno referendo democrático", garantem aqueles observadores que também consideram que os eleitorais não dispunham da informação necessária a uma decisão informada, notando que o lado do "não" foi penalizado pela "difusão de autocensura" que se seguiu ao falhado golpe de Estado do Verão passado e ao qual se seguiu uma purga aos opositores do regime, nomeadamente a centenas de funcionários públicos.
A resposta de Recep Tayyip Erdogan não tardou. A meio da tarde desta segunda-feira, o presidente turco sugere aos observadores para terem "noção do seu lugar" e garante que a Turquia "não vê, ouve ou reconhece" relatórios provenientes da missão da OSCE. Erdogan reiterou ainda que o sistema político ontem favoravelmente votado será implementado desde já para estar pronto para as eleições de 2019.
Numa conferência de imprensa realizada esta tarde em Ancara, Tana de Zulueta especificou que elementos desta monitorização tiveram oportunidade de ver apoiantes da campanha pelo "não" serem submetidos a intervenções policiais.
Os dois maiores partidos da oposição ao partido no poder, o AKP fundado pelo agora presidente Erdogan e também do actual primeiro-ministro, Binali Yildirm, contestam a legalidade da consulta popular.
Um membro dos social-democratas do CHP, o maior partido da oposição, diz que foram registados "actos ilegais" que tornam este referendo "completamente inválido", pelo que já solicitou a anulação do mesmo. Já o partido pró-curdo HDP confirmou que vai tentar anular cerca de dois terços do total de votos contabilizados por suspeitas de "manipulação". Em causa estão em torno de 3 milhões de votos, mais do dobro da margem de vitória do "sim", aponta a agência Reuters.
Vitória apertada aumenta responsabilidade de Erdogan
Os resultados ainda não oficiais - os oficiais demorarão ainda mais de 10 dias até serem conhecidos – mostram que o "sim" às emendas à Constituição turca venceu com 51,4% dos votos. Apesar de ter proferido um discurso em tom conciliatório, Erdogan enfrenta agora não só críticas internas mas também a demonstração de preocupação por parte de várias capitais.
É o caso de Berlim, tendo a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmado que a curta margem do resultado de ontem "mostra como a sociedade turca está profundamente dividida, e isso significa uma grande responsabilidade para o líder e presidente turco, Erdogan".
Também o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, demonstrou apreensão, concretamente em relação à já anunciada intenção de Erdogan promover uma nova consulta, agora sobre a reintrodução da pena de morte no país.
Erdogan prosseguia há largos anos intentos para mudar o regime turco, em especial desde que atingiu o limite de mandatos como chefe de Governo e, em 2014, se tornou presidente da Turquia. Desde então quis reforçar os poderes do presidente, embora seja mais ou menos commumente aceite que Erdogan não se limitou a ser um chefe de Estado "corta-fitas", acreditando-se que, na prática, é ele quem mantém as rédeas do poder. No entanto, o apoio dos ultraconservadores (MHP) à realização do referendo e posterior mobilização a favor do "sim" foi decisivo para que, finalmente, o carismático ex-primeiro-ministro turco possa moldar a política turca.
A vitória do "sim" significa que a Turquia deixa de ser, já a partir de 2019, uma república assente num sistema parlamentarista para passar a ser um regime presidencialista, em que o chefe de Estado vai acumular poderes legislativos e executivos. Estas alterações à Constituição abrem caminho a que Erdogan, no poder desde 2003, permaneça como a figura central do país até 2029.
Isso permitirá a Erdogan continuar a reduzir a capacidade de influência dos secularistas, adeptos do "kemalismo", e reforçar uma progressiva islamização do país, um cenário que poderá colocar em causa os ideais da democracia fundada por Kemal Ataturk.
(Notícia actualizada com reacção de Erdogan)