Notícia
Uma pedra no estômago
O restaurante do senhor Z é a única garantia de refeição de António e do seu colega Carlos que vivem numa cave em Almada.
Vive numa cave de Almada sem um único fio de luz para a rua. É aqui, neste buraco de betão, que António mora quase há um ano. Ele, o colega Carlos, duas gatas, alguns ratos e baratas, "daquelas grandes de esgotos".
António tem 38 anos de vida. Foi criado pelos avós, no Porto, e aos 17 anos, a gravidez precoce da namorada deixou-o sem rumo. Meteu-se na droga e andou assim até aos 28 anos. Foi nesse período que contraiu o vírus da SIDA. Partilhou seringas e outras coisas que lhe custam lembrar. "Coisas para arranjar dinheiro para a droga".
Há três anos, António conheceu Carlos, o amigo com quem vive agora e que lhe apresentou uma assistente do Centro de Atendimento a Toxicodependentes, em Almada. Desde então, António não bebe uma gota de álcool. Mas também pouco come. Ele e Carlos.
António tem uma reforma por invalidez de 210 euros, mas há despesas certas como a renda de 250 euros. Carlos também tem SIDA, mas só recebe 180 euros da Segurança Social. Nem sempre conseguem pagar a casa e o senhorio já ameaçou com despejo.
António e Carlos são quase pele e osso. Recebem os medicamentos antirretrovirais de graça, do Hospital Garcia de Orta, em Almada, mas evitam tomá-los porque não conseguem alimentar-se devidamente. É uma terapêutica que funciona como uma bomba num estômago vazio. " A gente sente mesmo o ardor", explica António. "As minhas defesas estão em baixo e, se continuar assim, sou capaz de nem durar um ano. Sou capaz de ir desta para melhor se apanhar uma gripe. Tenho de ter a alimentação adequada e tomar os medicamentos logo de manhã, mas não tenho condições". Carlos já pouco fala, apenas confirma tudo com um aceno de cabeça.
Há duas semanas, um restaurante da zona aceitou dar-lhes, regularmente, o jantar. À noite, lá seguem António e Carlos. Muitas vezes aquele prato "do senhor Zé que é um bom homem", chega a ser o único alimento do dia. E, se comerem pouco, ainda conseguem "guardar para o dia seguinte". O pior é à segunda-feira porque o restaurante fecha ao domingo. Quando as portas desta ajuda se fecham, abre-se a porta da fome "que dói".
Na mercearia da rua já devem mais de 200 euros. "A senhora tem pena, mas diz que já não pode mais vender fiado". A crise é de todos.
Na bancada da cozinha, sem vista para a rua, ainda há um prato com restos de peixe cozido. "Peixinho bom", que dará para mais uma refeição até que a noite caia outra vez.
Rita Colaço, Antena 1