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Um estaleiro sem mestre-de-obras

Indiferentes à subida das taxas de juro da dívida pública e ao coro de "carpideiras" que todos os dias chora precocemente a morte do euro, as gruas em Frankfurt não param. Trabalham fora de horas, numa corrida contra o tempo para construir a nova "casa" de uma moeda à deriva.

Eva Gaspar egaspar@negocios.pt 13 de Dezembro de 2010 às 11:15
São quase 11 horas da noite. O termómetro marca 12 graus negativos. E elas, indiferentes ao nevão que cobriu a cidade de um denso manto branco, sem perceber que a hora é tardia e que os últimos quiosques do mercado de Natal há muito fecharam portas, continuam a mover-se lentamente pelos céus de Frankfurt, iluminadas lá no topo como faróis a vaguear no meio da escuridão.

Numa aparente corrida contra o tempo, o Banco Central Europeu (BCE) está a construir a sua nova sede debruçada sobre o Main. A imagem dessas gruas apressadas a "fazer" algo pelo euro é reconfortante. Como é a sensação de que sabem o que estão a fazer. Uma imagem singular. Inquietantemente singular.


Tal como a nova "casa", o euro é um estaleiro - possível e até desejavelmente eterno. Mas desesperadamente à procura de um mestre-de-obras. "Procuram-se líderes, visionários de preferência" poderia ser um anúncio justificadamente financiado por fundos comunitários nas páginas de emprego de todos os jornais europeus.

Como se vivem tempos de austeridade, reduza-se a procura à Alemanha. Porquê? Porque ninguém como a Alemanha demonstrou como pode sair vencedora de humilhantes derrotas; porque ninguém como a Alemanha tem lastro político e económico capaz de fazer a diferença; porque ninguém como a Alemanha beneficiou com o euro; e porque ninguém como os alemães detesta o euro...


Foi lá que estivemos. Em Frankfurt e depois em Berlim. Para falar com banqueiros, deputados, governantes, empresários e jornalistas da que é hoje a única economia do euro que já vive e pensa no pós-crise - e que, de resto, saiu dela muito melhor e como há muito não se via, com a mais baixa taxa de desemprego (7,4% em Novembro) e a mais alta de crescimento (3,6% em 2010) desde a reunificação do país, em 1990.


Depois de ter sido durante mais de uma década o "doente da Europa", a Alemanha virou oásis. Quer competir com a China e a Índia - "o nosso ' benchmark' não é mais a França, o Reino Unido nem mesmo os Estados Unidos", lembram-nos à exaustão. Um oásis agora amarrado pela mesma moeda a uma periferia outrora dinâmica, que ainda luta para sair da recessão - ou para não voltar a mergulhar nela.


Mas se parece conhecer bem a receita do seu próprio sucesso - a começar pela "bênção" de ter sindicatos mais preocupados em manter postos de trabalho do que em aumentar salários, o que manteve intacta a vitalidade do " Mittelstand", essa densa rede de pequenas e médias empresas que sempre foi a mais resistente linha de defesa da economia germânica - ninguém na Alemanha sabe como tirar a Zona Euro deste atoleiro que em seis meses fez duas vítimas, a Grécia e a Irlanda, e poderá ainda fazer muitas mais. Quanto muito, são apresentadas várias soluções, com várias variantes, muitas vezes saídas da mesma boca, o que vai dar no mesmo: num ruído ensurdecedor e paralisante.



Mudar de vida

De Frankfurt a Berlim, há uma linha de comboio que nos transporta com atraso e até uma "inversão" de marcha inusitada que fez temer que não se chegasse ao destino (ao contrário do clima económico, o Inverno tem sido neste início de Dezembro excepcionalmente inclemente nestas paragens).

E há também uma linha de pensamento que atravessa o coração financeiro e político da Alemanha directa ao mesmo destino: o euro é para manter, custe o que custar, porque ninguém, a não ser um punhado de especuladores, tem a ganhar com o seu fim - muito menos a própria Alemanha.


Para lá chegar, há outras duas certezas partilhadas por banqueiros e políticos. A de que quem tem de mudar de vida são os países da periferia. É quem comprou com dinheiro que não tinha e fez investimentos de retorno duvidoso, à boleia da descida vertiginosa das taxas de juro que resultou da união monetária. Dito de chofre: portugueses, gregos, irlandeses e espanhóis vão ter de se convencer de que viverão, quanto muito, tão bem quanto a geração anterior, e preparar filhos e netos para a expectativa de que viverão pior do que eles.

Outra certeza é que a banca europeia será varrida por uma nova vaga de reestruturações que obrigará a uma mudança profunda e dolorosa das economias ocidentais: o sector produtivo (fundamentalmente a indústria) terá de reconquistar uma maior fatia da geração do emprego e da riqueza, simplesmente porque não é saudável, nem sustentável que os serviços, em particular os de intermediação financeira, sejam responsáveis por 60% do PIB e por tanto emprego de "colarinho branco". "Temos estado a construir castelos de areia, e o resultado está à vista", dizem-nos em Frankfurt.


No creo en brujas, pero...


O resto é conjectura, palavra diplomática para descrever desorientação. "Toda a situação é muito interessante. Talvez interessante demais", ironiza-se no último andar do BCE. E há especuladores a conspirar contra o euro? "No creo en brujas, pero que las hay, las hay", ouvimos um pouco por todo o lado.

Ainda assim, ninguém quer pôr muitas fichas nesse tabuleiro. "Os investidores estão a traçar novas linhas entre o que é bom e mau crédito e a Europa não lhes está a dar motivos para que a considerem um bom investimento", diz um responsável de um dos maiores bancos de investimento do mundo, conselheiro regular de muitos governos. Também ele acha que os mercados estão a "exagerar", mas menos do que nos dizem em Berlim: "Histéricos. Como é possível que se atribua maior risco a Espanha do que ao Paquistão?!"

Já na torre do BCE que se ergue no centro de Frankfurt prefere falar-se de "comportamento pró-ciclo". "Os mercados estão a exagerar porque exageram sempre, na alta e na baixa". E se estão a "disparar contra a Europa", fazendo subir os juros associados à dívida pública portuguesa ou espanhola, é porque querem "testar" a capacidade destes países fazerem o trabalho de casa e pôr em contas em ordem - em suma, se podem confiar na probabilidade de recuperar o capital emprestado e os juros prometidos. Nessa medida, estão a ser tão racionais como sempre - e úteis. "Alguns governos só vão fazer o que têm de fazer se a isso forem forçados".



"Do you like us?"

O governo alemão é o que melhor compreende o BCE e também o que mais se queixa de ser mal compreendido, não só pelos mercados, mas sobretudo pelos governos europeus - em particular os da periferia.

É bem verdade que Angela Merkel não nasceu com o dom da comunicação (nunca ganhará esse "Prémio Nobel", disse-o, preto no branco, Otmar Issing, o velho "falcão" da ortodoxia alemã). E anunciar o novo mecanismo de resolução de crises, em que os privados poderão sofrer perdas de capital, sem fornecer detalhes, em França e num "intervalo" de uma cimeira com a Rússia, não foi propriamente uma ideia genial. "Mas não exagerem!"


O apelo é-nos feito à mesa do "Internationaler Club", no 7º andar do Ministério dos Negócios Estrangeiros, enquanto nos servem sabores do Sul, com pão para molhar no azeite para saciar o primeiro apetite. Um pedido seguido de uma pergunta de uma sinceridade infantil: "Acha que em Portugal gostam de nós?"

E de um desabafo desprotegido: "Temos neste momento a impressão de que ninguém gosta da Alemanha. Mas ninguém parece fazer um esforço para nos compreender. Estamos a tentar salvar o euro, sem que ninguém saiba muito bem o que fazer, porque não há manuais de instruções e toda a situação é nova, volúvel e complexa. Mas, ao mesmo tempo, tudo o que fazemos é entendido pelos alemães na rua, e pela generalidade da imprensa, como um atentado à sua inteligência e bem-estar".


A mesma constatação faz Eckart Stratenschulte, director da Academia Europeia de Berlim, um "think-tank" europeísta. "O fosso entre a elite política alemã e a rua é tremendo: 95% da classe política apoia o euro e está disposta a fazer o que for necessário para o preservar, mas só 15% dos alemães concordam".

Ajudar gregos que se reformavam aos 55 anos, quando os alemães têm de trabalhar até aos 65 (em vias de passar para 67), ou irlandeses que têm um IRC de 12,5%, quando na Alemanha as empresas pagam pelo menos mais 10 pontos percentuais de imposto, são ossos entalados na garganta dos que trocaram a contragosto o velho marco pela promessa de uma moeda tão ou mais estável.

"As pessoas estão fartas de dar dinheiro à Europa", avisa Ralph Brinkhaus, deputado da CDU de Merkel e membro da comissão de Finanças do Bundestag. Também ele insiste que é preciso que se compreenda a "situação extremamente delicada" em que está o Governo, que vai a votos em 2013 com um eleitorado cada vez mais eurocéptico.


O marco e a loura sem rugas


Heike Gobel, editora de Finanças do "Frankfurter Allgemeine Zeitung", um dos maiores jornais, detecta, porém, outras falhas de comunicação no governo de Merkel.

"É muito mais fácil simplificar as coisas e dizer que o fim do euro é o fim da União Europeia, e logo uma escolha entre a paz que ela trouxe e a guerra que a antecedeu, do que explicar o que se está a passar. Estes programas de ajuda à Grécia, à Irlanda e eventualmente a outros países, são para salvar os bancos dos grandes países, designadamente alemães. E esse é um jogo perigoso". Ainda assim, Gobel não acredita que os alemães queiram abandonar o euro. "Se houvesse um referendo vinculativo teria muitas dúvidas sobre o seu resultado".


O director da Academia Europeia de Berlim é muito crítico da imprensa alemã - "falam em resgate quando estamos a pedir dinheiro a 2% para o emprestarmos à Grécia a 5%" - mas também acredita que o euro tem raízes mais profundas do que possa parecer .

"Quando os alemães pensam no marco, pensam naquela namorada que deixaram há vinte anos, linda, loura, exuberante. Se ainda estivéssemos casados com o marco, veríamos como ficou cheio de rugas e cabelos brancos. Se fossemos confrontados com a troca, acho que não mudaríamos de mulher". Será?


*A jornalista viajou à Alemanha a convite do Ministério alemão dos Negócios Estrangeiros

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