Notícia
"Eles queriam a terra apenas para trabalhar"
António Gervásio entra na fria sala de reuniões com uma resma de fotocópias entre as mãos. Na parede, um quadro de Lenine resume as convicções ideológicas. O centro de trabalho do PCP, em Montemor-o-Novo, é a sua segunda casa.
António Gervásio entra na fria sala de reuniões com uma resma de fotocópias entre as mãos. Na parede, um quadro de Lenine resume as convicções ideológicas. O centro de trabalho do PCP, em Montemor-o-Novo, é a sua segunda casa. O tema da conversa é a reforma agrária e aquele espólio sintetiza esse período da História.
Os donativos da extinta União Soviética, o papel do partido nesta "luta", os lemas das 12 conferências sobre a reforma agrária realizadas entre 1976 e 1989 em Évora e os seus dados biográficos.
Há ainda um conjunto de folhas mais volumoso, presas por um clip e onde sobressai um pequeno papel onde está manuscrita a palavra "A Ofensiva". São reproduções de um livro de fotografias assinado pelo próprio, evocativo dos idos da reforma agrária, que emergiu com a revolução de 25 de Abril de 1974.
A primeira imagem transmite o desatino e a impotência de uma camponesa (operária agrícola, dirá António Gervásio), enquanto no chão jaz o corpo morto de António Casquinha, abatido em Setembro de 1979 por militares da GNR na UCP (Unidade Colectiva de Produção) Bento Gonçalves, no Escoural, concelho de Montemor-o--Novo. Em defesa da Reforma Agrária, que o PCP cataloga como a "mais bela conquista de Abril".
Agora ele tem as folhas seguras entre os dedos e aponta alternadamente para a cara da mulher e o cadáver de Casquinha. Principie-se o diálogo por aqui, procurando reconstruir as suas emoções, mas a tarefa é ingrata. António Gervásio evita falar de si. O que é que sente a olhar para esta fotografia? "Demonstra a brutalidade e o poderoso dispositivo militar que eles [GNR e governos] puseram em campo durante muitos anos", responde. A custo concede uma visão mais pessoal daquela imagem. "A gente sente arrepios. Olhe a expressão desta mulher? O horror... Por esta fotografia a gente vê a luta valente, corajosa...".
António Gervásio fará 83 anos a 25 de Fevereiro e mantém uma lucidez invejável, embora tenha deixado de ser funcionário do PCP em 2006. É um histórico. Foi preso político, esteve na clandestinidade e a sua biografia diz que "participou em todo o processo da reforma agrária e na luta sem tréguas na sua defesa".
Os pedaços da sua vida conferem sentido à militância política. Aos sete anos começou a trabalhar como ajudante de gado e aos 14 labutava na agricultura. "O meu pai não era político mas era um homem do lado da Esquerda. O fascismo nunca teve implantação aqui no Alentejo", resume. Em 1945 começou a participar nas "lutas" e inscreveu-se no PCP. "O ambiente de sofrimento e miséria influenciava a gente". Em 1947 foi preso por causa de uma greve realizada em Montemor-o-Novo, por altura das ceifas, e desde então guiou a vida pela estrada da causa comunista.
O fim da reforma agrária, há 19 anos, não o deixou preso ao passado. Há mágoas, mas assumidas num discurso colectivo. "Hoje não há condições para a reforma agrária. Mas o mundo não está parado. É dialéctico. Está tudo em transformação do inferior para o superior". É com este argumento que António Gervásio acredita que outra reforma agrária virá. Porquê e como? "O que se vê é uma agricultura destruída. Importamos tudo. Não produzimos nada. Instale-se um Governo de Esquerda em Portugal. Faça-se uma lei que assegure a liquidação dos latifúndios e dê-se a terra a quem a trabalha, até a capitalistas, e milhares regressarão das fábricas, do estrangeiro e até agricultores de outras zonas virão para o Alentejo".
Quem viu as suas terras ocupadas, naturalmente, não partilha esta visão política. Os ressentimentos são duradouros e passados de geração em geração. António Gervásio viveu essa experiência há quatro anos, num liceu de Évora, onde foi explicar a sua visão da reforma agrária. Os alunos, filhos e netos de ocupados "não perdoam". E apontaram-lhe o dedo: "vocês roubaram as terras dos meus avós! Era propriedade privada e não tinham nenhum direito. Eu procurava explicar mas eles, neste aspecto, são surdos."
António Gervásio diz que não e interroga: "porque é que os trabalhadores, quando fizeram as ocupações, não ficaram com um bocado de terra para eles?". Pela razão, responde "de que queriam a terra apenas para trabalhar e produzir. Por isso é que a reforma agrária avançou com rapidez, sem encontrar nenhuma resistência das populações e dos outros trabalhadores. A reforma agrária criou a perspectiva de uma vida nova". Isso mudou com o golpe militar de Novembro de 1975, que alterou a correlação das forças políticas e militares. "A partir daí a malta percebeu" que seria difícil continuar o processo. "E mesmo assim aguentámos 14 anos. São as contingências da luta. A reforma agrária não fracassou, foi destruída". O ideal político de António Gervásio, esse, continua a resistir.
Os donativos da extinta União Soviética, o papel do partido nesta "luta", os lemas das 12 conferências sobre a reforma agrária realizadas entre 1976 e 1989 em Évora e os seus dados biográficos.
Há ainda um conjunto de folhas mais volumoso, presas por um clip e onde sobressai um pequeno papel onde está manuscrita a palavra "A Ofensiva". São reproduções de um livro de fotografias assinado pelo próprio, evocativo dos idos da reforma agrária, que emergiu com a revolução de 25 de Abril de 1974.
A primeira imagem transmite o desatino e a impotência de uma camponesa (operária agrícola, dirá António Gervásio), enquanto no chão jaz o corpo morto de António Casquinha, abatido em Setembro de 1979 por militares da GNR na UCP (Unidade Colectiva de Produção) Bento Gonçalves, no Escoural, concelho de Montemor-o--Novo. Em defesa da Reforma Agrária, que o PCP cataloga como a "mais bela conquista de Abril".
Agora ele tem as folhas seguras entre os dedos e aponta alternadamente para a cara da mulher e o cadáver de Casquinha. Principie-se o diálogo por aqui, procurando reconstruir as suas emoções, mas a tarefa é ingrata. António Gervásio evita falar de si. O que é que sente a olhar para esta fotografia? "Demonstra a brutalidade e o poderoso dispositivo militar que eles [GNR e governos] puseram em campo durante muitos anos", responde. A custo concede uma visão mais pessoal daquela imagem. "A gente sente arrepios. Olhe a expressão desta mulher? O horror... Por esta fotografia a gente vê a luta valente, corajosa...".
António Gervásio fará 83 anos a 25 de Fevereiro e mantém uma lucidez invejável, embora tenha deixado de ser funcionário do PCP em 2006. É um histórico. Foi preso político, esteve na clandestinidade e a sua biografia diz que "participou em todo o processo da reforma agrária e na luta sem tréguas na sua defesa".
Os pedaços da sua vida conferem sentido à militância política. Aos sete anos começou a trabalhar como ajudante de gado e aos 14 labutava na agricultura. "O meu pai não era político mas era um homem do lado da Esquerda. O fascismo nunca teve implantação aqui no Alentejo", resume. Em 1945 começou a participar nas "lutas" e inscreveu-se no PCP. "O ambiente de sofrimento e miséria influenciava a gente". Em 1947 foi preso por causa de uma greve realizada em Montemor-o-Novo, por altura das ceifas, e desde então guiou a vida pela estrada da causa comunista.
O fim da reforma agrária, há 19 anos, não o deixou preso ao passado. Há mágoas, mas assumidas num discurso colectivo. "Hoje não há condições para a reforma agrária. Mas o mundo não está parado. É dialéctico. Está tudo em transformação do inferior para o superior". É com este argumento que António Gervásio acredita que outra reforma agrária virá. Porquê e como? "O que se vê é uma agricultura destruída. Importamos tudo. Não produzimos nada. Instale-se um Governo de Esquerda em Portugal. Faça-se uma lei que assegure a liquidação dos latifúndios e dê-se a terra a quem a trabalha, até a capitalistas, e milhares regressarão das fábricas, do estrangeiro e até agricultores de outras zonas virão para o Alentejo".
Quem viu as suas terras ocupadas, naturalmente, não partilha esta visão política. Os ressentimentos são duradouros e passados de geração em geração. António Gervásio viveu essa experiência há quatro anos, num liceu de Évora, onde foi explicar a sua visão da reforma agrária. Os alunos, filhos e netos de ocupados "não perdoam". E apontaram-lhe o dedo: "vocês roubaram as terras dos meus avós! Era propriedade privada e não tinham nenhum direito. Eu procurava explicar mas eles, neste aspecto, são surdos."
António Gervásio diz que não e interroga: "porque é que os trabalhadores, quando fizeram as ocupações, não ficaram com um bocado de terra para eles?". Pela razão, responde "de que queriam a terra apenas para trabalhar e produzir. Por isso é que a reforma agrária avançou com rapidez, sem encontrar nenhuma resistência das populações e dos outros trabalhadores. A reforma agrária criou a perspectiva de uma vida nova". Isso mudou com o golpe militar de Novembro de 1975, que alterou a correlação das forças políticas e militares. "A partir daí a malta percebeu" que seria difícil continuar o processo. "E mesmo assim aguentámos 14 anos. São as contingências da luta. A reforma agrária não fracassou, foi destruída". O ideal político de António Gervásio, esse, continua a resistir.