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Medina Carreira: “Patrões estão tão falidos como os empregados”

Releia a entrevista que Medina Carreira deu ao Negócios em 2012, altura em que Portugal estava sob resgate financeiro.

Miguel Baltazar/Negócios
Anabela Mota Ribeiro 03 de Julho de 2017 às 21:30
Medina Carreira, 81 anos. Houve um tempo, não muito longínquo, em que era apontado como um arauto da desgraça. O seu discurso continua a ser negro. Ainda que globalmente, nesta entrevista, pareça comedido. Ou nos habituámos a esperar dele o negrume, ou nos capacitámos do buraco 
em que estamos metidos.

De que fala o fiscalista Medina Carreira? De um país em frangalhos. De por onde ele começava se fosse ele a arregaçar as mangas. De uma conjuntura mundial que nos aperta ainda mais a corda na garganta. De desencanto? De o português ser, individualmente, muito, muito bom. De Cavaco e de Passos e de Sócrates. Ele poderia dizer, mas não diz: "Depois não digam que não os avisei". Terá razão? 

Então, se olharmos para o país, quem é que se safa?
Quem se safa? Quem se safa é o Ronaldo! 

Políticos, decisores, figuras que nos marcam… Antes de começar a zurzir, detenhamo-nos nalguns percursos inspiradores. 
Desde há uma vintena de anos afastei-me desses meios, e não há notabilidades dignas de registo. Começando pela política: temos um sistema político defeituoso de raiz. O nosso sistema eleitoral, atribuindo o monopólio da escolha dos candidatos a deputados [aos partidos], marca profundamente a vida política portuguesa. Não há uma verdadeira disputa qualitativa, porque é deputado quem o chefe do partido escolheu. Como Salazar e aqueles pseudo-deputados que havia. Também agora há muitos pseudo-deputados, que têm de obedecer a uma disciplina partidária (que não é visível, mas é sensível).

Uma reforma eleitoral e a criação de círculos uninominais mudaria substancialmente o nosso espectro político?
Muito, muito. Se os partidos tivessem de escolher quem fosse para o terreno disputar o voto, isso seria muito diferente de ser nomeado na secretaria do partido.

Isso abre espaço para casos de populismo - uma das principais acusações dos que se opõem a um sistema uninominal. 
Você tem que ter deputados que não olham para o lado quando dizem e agem. Se notar, quase todos gaguejam. Medem as palavras. Agora no PS há uma revolta qualquer, resultante da escolha daquele pessoal que foi para a Assembleia por um chefe que saiu... 

Por outro lado, acabamos por ter dirigentes políticos que são escolhidos por 20 mil filiados no partido (e, dizem, com umas chapeladas à maneira do Estado Novo). Que depois escolhem os deputados, que depois escolhem os administradores das empresas onde o Estado tem dinheiro, que telefonam para os bancos a sugerir crédito ou não-crédito… O país não se apercebe que no chefe do Governo e nos seus apaniguados se concentra um poder espantoso. Isto aliado à deficiente qualidade das escolhas; porque eles querem bem comportados, não querem ter maçadas internas. 

Defende a criminalização dos políticos?
Este pessoal político sai dali, pega na mala, vai para casa, e não lhe acontece nada. A responsabilidade política é perder eleições.

Quando Salazar veio de Coimbra, o Estado pesava 5% no Produto [Interno Bruto], e tinha 30 mil funcionários. O Estado hoje pesa 50% no Produto e tem dependentes funcionários, pensionistas, cinco a seis milhões de pessoas. Se houver uma crise financeira mais grave do que esta - quero dizer: não nos emprestarem dinheiro lá de fora - ninguém imagina o cataclismo que será. Por isso defendo que haja incriminação dos actos políticos. Acho que os governos devem poder ser julgados criminalmente. 

Apesar de uma grossa parte das famílias portuguesas ser afectada, por viver na órbita do Estado, paradoxalmente nunca assistimos a um divórcio tão fundo entre o eleitorado e o político. Como se dependessem e ao mesmo tempo virassem as costas. 
Há dias foi publicado um trabalho que revelava que 56% da população apoiava este regime [democrático], mas que os outros 44% ou eram indiferentes ou não apoiavam. É significativo. Por outro lado, as populações não entendem este fenómeno devastador em que estão envolvidas. 

A não ser no dia-a-dia, quando o dinheiro escasseia.
Exactamente. A maior parte dos deputados não vale nada, ou nem sequer se sabe se valem, porque ninguém os vê, ninguém sabe de onde vierem nem para onde vão. Isto é uma derrota da democracia em Portugal. Esta democracia está amarfanhada. 

Se voltarmos a quem se safa, nestes quase 40 anos de democracia, que políticos é que fizeram a diferença?
Concordando ou discordando, políticos que tiveram de facto impacto: o Mário Soares, o Álvaro Cunhal, o Salgado Zenha. [Ramalho] Eanes, porque conseguiu fazer um apaziguamento, uma conexão entre o poder político e o militar. O Sá Carneiro, mas teve um consulado escasso. Depois disso, que se destacasse significativamente, não vejo ninguém. Você acha que sim?

A democracia tem uma condicionante: só escolhemos os que aparecem. Nos Estados Unidos aparecem 20 sujeitos nas primárias. 

Nos EUA, mais do que em Portugal, a campanha eleitoral é uma corrida à qual só tem acesso quem tem dinheiro ou consegue angariar dinheiro. Muito dinheiro. 
Mas as pessoas dão dinheiro para pessoas em quem acreditam. O Obama: dir-se-ia à partida que não tinha apoios nenhuns, e conseguiu-os. Aqui não. Candidatos presidenciais: há cinco azelhas, um é menos azelha, é nesse que votamos. A escolha é mínima. Nos partidos é a mesma coisa. 

Por causa disso, quem está no Parlamento, é subserviente?
Não lhes chamo subserviente. Dependentes. Porque querem ser reeleitos. É uma carreira. 

O que marca a subserviência é o respeitinho (que é muito bonito) e a dependência?
É visível. E temos caras, no mínimo, rejeitáveis. 

Lemos declarações suas dizendo que tinha pensado candidatar-se à presidência da República; mas não avançou. Por alguma razão foi. As pessoas não dão o passo.
Porque é que pensei candidatar-me? Para levar à discussão os temas que entendo que andam fora de circulação, e que são os grandes temas. Por exemplo, nestas duas últimas eleições para a presidência, o tema que se devia ter discutido era a crise que nos levou à bancarrota, ou quase à bancarrota. O próprio presidente não discutiu isso na campanha nem nos três ou quatro anos do primeiro mandato. Só no fim, em 2009, quando toda a gente já sabia que isto estava no charco, é que disse que não era sustentável. Fez um mandato sem ondas, a reservar para o fim, quando já não tinha grande importância, o grande problema do país.

Surpreendeu-o num economista como Cavaco?
Surpreendeu-me exactamente por ser um economista. Ele via melhor do que eu, e eu, ao longo de toda a década, escrevi a dizer que caminhávamos para a desgraça. Em 2005, ele sabia. Em 2007, 2008, sabia, e não disse nunca isto. 

Impôs-se o político ao economista?
Impôs-se o político ao chefe de Estado. O chefe de Estado tinha o estrito dever de alertar o país, e, se fosse caso disso, dissolver a assembleia e escolher um outro governo para governar. 

Se falamos de assacar culpas e responsabilidades, elas são também do presidente Cavaco?
São de vários políticos. 

Ninguém se safa? Quis começar pela esperança, e rapidamente estamos aqui…
[riso] Eu não sou economista, sei a tabuada, tenho uma máquina de calcular. Mas era evidente! Quem é que falou disto?

Como muito gente dizia, os Medinas Carreiras desta vida.
Essa gente devia vir à praça pública, depois de ter estado a falar depreciativamente, reconhecer a sua derrota! Não perceberam nada de nada, e continuam a não perceber. O grande problema é o Euro? O grande problema é o Ocidente estar a perder as indústrias e ter dependência energética. Os profissionais da política só referem as coisas quando toda a gente já viu. As pessoas têm medo de dizer o que pensam.

Medo de quê? Medo porquê?
Porque pode não acontecer. Estão sempre à espera que seja certo para dizer. Eu faço as contas, e não tenho medo de não ter razão. Nem tenho medo que as pessoas não concordem. Não lhes devo dinheiro, não devo a ninguém coisa nenhuma, e por isso tenho a liberdade de dizer o que penso. Um sujeito, que quer ser um cidadão de corpo inteiro, se percebe que aquilo vai acontecer, tem o dever de alertar. Se há seis ou sete ou oito anos tivéssemos feito uma inflexão, isto não teria chegado ao que chegou. Esta nossa desgraça não é um problema do Euro. É um problema de três ou quatro países indisciplinados e mal governados. 

Isto começa quando?
Muito cedo. Há 15 anos, 20 anos. É muito simples: em sua casa, se tiver um rendimento que cresce a 1% e uma despesa que cresce a 3%, vai dar asneira.

Gastámos a 3% porque o dinheiro era muito barato. 
O "subprime" foi isso e não aconteceu só em Portugal. O problema da crise da dívida pública (gosto de lhe chamar pública e não soberana) também foi por isso. Para suprir as deficiências da economia, arranjou-se crédito de qualquer maneira. Se a população legitimamente compra porque o crédito é barato, o dirigente político não pode permitir que o Estado esteja cinco, dez, 15 anos a crescer a 1% e a despesa a 3%.

Mas foi toda a gente a endividar-se. E todos os bancos centrais o permitiram.
A seguir à Segunda Guerra, a Europa viveu um tempo de enorme prosperidade económica. Grosso modo, cresceu 5 a 6% ao ano durante 30 anos. E adoptou um modelo, um estilo de vida, um bem-estar que só poderia ser mantido com aquela economia. O sindicalismo em Portugal, por exemplo, ainda não percebeu que a reivindicação deu resultado porque havia economia. 

A partir de 1975, com a crise do petróleo, a economia começou a declinar, até rastejar, como agora está. Como é que se sustentou a democracia, o pleno emprego, a paz social? Através da inflação. Pôs-se moeda a circular, que dava para manter as classes trabalhadoras com um padrão de vida similar ao que tinha. Isto beneficiou os trabalhadores, prejudicou os detentores de dinheiro. Uma pessoa que detivesse dez, daí a cinco anos tinha um. O capital financeiro foi-se desvalorizando e o trabalho manteve-se à tona da água. Arranjou-se mais dez ou quinze anos de bem-estar à custa da moeda. A partir dos anos 90, os estados começaram a endividar-se para manter isto. Começámos a gastar com o dinheiro do futuro.

A hipoteca das gerações vindouras, de que tanto se fala.
Há 15, 20 anos que andamos a viver à custa dos nossos filhos e dos nossos netos. A partir de certa altura, foi-se para o endividamento dos privados. [Deflagrou a crise do] "subprime" na América e noutros países (nalguns foi mais controlado, noutros menos). Ou seja, mantivemos este modelo, direitos sociais, direitos adquiridos, à custa da economia no primeiro tempo, da inflação no segundo, da dívida pública no terceiro e da dívida privada no quarto. Chegámos ao fim da linha. 

Se estamos num momento agónico em que este modelo falha, em que direcção é que vamos?
Este modelo esgotou-se. E vai esgotar-se cada vez mais na medida em que as indústrias se deslocaram para oriente, basicamente por questões de mão de obra. Ficamos com desempregados e temos de comprar lá fora. 

Tudo isto nos torna dependentes.
Dependentes e vítimas de uma globalização que foi consentida pelo ocidente. O que é que se fez a estes desempregados? Uns mantêm-se aí, num cortejo trágico. Outros, arranjam emprego servindo à mesa ou nas bombas de gasolina.

Abaixo das suas qualificações.
Por conseguinte, a produtividade é baixa e a riqueza é baixa. Os salários estão a cair porque a economia industrial, que era produtiva, foi substituída por uma economia de serviços, que não é. 

O "El País" de domingo passado trazia um artigo sobre os níveis de produtividade europeus. Portugal tem por hora metade da produtividade registada em França.
Como é que os salários podem ser maiores com esta produtividade? O marxismo, o sindicalismo fizeram com que a reivindicação fosse para repartir riqueza; e felizmente que foi assim. O que se pretende agora é repartir o que não existe.

Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.
As nossas empresas estão todas a cair aos bocados. Galp, PT, EDP vivem muito bem, o resto vive muito mal. 

Alguma vez, desde a revolução, tivemos uma democracia mais substancial e menos formal?
O mecanismo da democracia é igual. Simplesmente, o pessoal político do pós 25 de Abril, e durante uns 15 anos, tinha profissão. Íamos para a vida política como quem vai para o serviço militar. 

Éramos incorporados por 18 meses e vínhamos embora, ou porque nos mandavam embora ou porque não queríamos lá estar. Não havia dependência. Tínhamos uma capacidade de afirmação e de decisão que hoje quase nenhum político tem. Saíamos dali para ir para a nossa vida. Hoje, um sujeito chega a ministro, está no topo e não quer sair de lá. Aquilo tem uma importância que não é fácil conquistar na sua profissão, na vida normal. 

A falta de qualidade dos políticos, outra coisa de que tanto se fala, tem que ver com a dependência destes em relação à importância social que a carreira tem?
Sim. Muitas vezes não têm profissão, ou têm um percurso apagado. Chegam a São Bento e passam a andar atrás no automóvel, com vidro fosco. Aquilo é o máximo! 

Como se diz em bom português, dá um certo sainete… Mas está a ser irónico.
É evidente que sim, isto comporta muitas excepções. O que estou a dizer é que tendencialmente o que marca a diferença não é o regime constitucional. Era o pessoal da época que era assim. Não havia instalados, partidos com a sua clientela. 

Se olharmos para os políticos no tempo em que você foi político, existem na sociedade e têm um percurso próprio. Como Medeiros Ferreira ou António Barreto. Mas uma boa parte dos ministros dos últimos anos, uma vez que abandonaram o Governo, foram alocados em empresas. 
Engrossaram a clientela. Esta época é marcada por duas circunstâncias: o pessoal político é menos independente e a decadência económica da Europa é pronunciadíssima. 

Não apontou o dedo a Merkel e a Sarkozy. Pensa que, enquanto líderes do processo europeu, têm uma grande parte da responsabilidade? 
O problema não é a Merkel. A Merkel é uma política que depende do eleitorado. E não foi a Merkel que arranjou as dívidas dos portugueses. Temos a mania de alijar culpas. Os responsáveis em Portugal? Os que dirigiram politicamente o país. Podiam ter evitado esta catástrofe. 

Voltamos ao mesmo: quando é que isto começou?, e quem é responsável?
Isto começou com a decadência económica. O poder político não é responsável maximamente por esta decadência; podia ter feito um pouco melhor, mas o problema está, como disse, na fuga das indústrias e na dependência energética. Onde é que começa a responsabilidade do poder político? 
Quando não gradua a despesa do Estado em função da economia que tem. 

Estamos a falar dos anos 90?
Basicamente. Caíram as taxas de juro na Europa por causa do aparecimento do Euro e ninguém tentou corrigir o tiro. Os privados começaram a ir para Cancún, vende automóvel, compra apartamento, etc. O Estado não travou a despesa pública. 

Pouco antes, chegou dinheiro a rodos da CEE. Acreditou então que Portugal podia mudar?
Os primeiros dez anos depois do 25 de Abril foram para arrumar a casa, compor os estragos naturais que a revolução trouxe. A partir de 85 passámos de uma economia fechada para uma economia relativamente aberta. Desde o primeiro governo de Cavaco Silva devíamos ter encetado uma nova fase e criado condições de competitividade. O que quero dizer com isto: ter um sistema de justiça que funcionasse, um sistema de ensino adequado às nossas necessidades, um combate eficaz à corrupção, leis laborais que compitam com as do centro Europa. 

Um regime laboral liberal?
Chame-lhe o que quiser. Ou morremos aqui, firmes nas conquistas revolucionárias, ou então temos de competir com eles. 

Esse falhanço, não se terem feito reformas de fundo…
… é decisivo.

Tão decisivo quanto a forma como foram usados os fundos europeus (e apontar isto faz parte de uma narrativa constante)?
Tivemos um período muito próspero de 85 a 90. Os fundos chegaram. A crise do petróleo, que tinha marcado o período anterior, desapareceu. As privatizações: ninguém se lembra que este dinheiro serviu para eliminar dívida do Estado. Os juros caíram. Nada disto foi virtude nossa. Entrámos e beneficiámos.

A prosperidade terminou com aquela feijoada do Guterres na ponte Vasco da Gama. Aquilo, a feira [Expo 98] marcou a ostentação [desse período]. Perdemos indústria, agricultura, pesca. Como não tínhamos a casa arrumada, perdemos aparelho produtivo e não conquistámos investimento. 

A história não é nova. Se olharmos para a expansão portuguesa, vivemos da pimenta da Índia, do ouro do Brasil, dos escravos de África. Na metrópole, na sede, cá em casa, nunca se trabalhou a questão da produtividade e da auto-suficiência. É a nossa sina?
Tem sido. E temos tido sucessivas clientelas - agora são as partidárias. 

Somos por acaso uma gente ignara que não consegue discernir um palmo à frente do nariz e faz sempre as escolhas erradas? Porque é que somos assim?
Ah, não sei. Creio que nem o Afonso Henriques saberia [riso]. Na época actual, é por todas as coisas que venho dizendo. Quando um Estado mantém uma clientela, essa clientela não pensa em nada: trata da sua vida. No tempo do salazarismo também havia uma clique que não queria que se mudasse nada. Essa gente domina. Se se salvar e morrer o resto, tudo está bem. 

E não se podem extirpar os "boys"?
O chefe deste Governo disse: "Comigo não vai haver essa gente dos partidos [nomeada para as empresas]". Por A ou por B, nada mudou. Na Caixa Geral de Depósitos, na EDP, nas Águas de Portugal. Claro que ele dá uma explicação, coitado. Os privados disseram que queriam aqueles. Os privados descobriram logo aquela gente que, por acaso, era próxima do partido e do Governo. Não acha isto esquisito? 

É evidente que não o surpreendeu.
Surpreendeu! Conheço o Passos Coelho há um par de anos, embora com contactos longínquos e agora com nenhum contacto. É um homem frio, distante, respeitador, dialogante. Pensei que fosse capaz de atenuar isso - não é de evitar isso. Não atenuou coisa nenhuma. 

Alguns municípios estavam para ser extintos; não vão ser extintos. Algumas fundações e institutos iam ser eliminados; já ouviu falar em alguma eliminação? Porquê? Porque sempre que penetra nestas áreas encontra lá gente dos partidos. 

A malha de que sempre fala é da política. E não se rompe.
Exactamente. Umas vezes a gente vê, outras vezes não vê. Provavelmente o que não vê são os piores; manobram na sombra. Estamos outra vez com um Governo dominado pela partidarite. É gente incompetente? Muitas vezes, não. É gente não-séria? Não. Tenho amigos em todos esses sítios, na Caixa, na EDP. Mas por acaso, têm todos cartão partidário. 

São todos Ronaldos e ninguém contratou Messis.
Ah, Ronaldos, não exagere… Nem Messis. Haverá um ou outro, mas nem tanto… O Ronaldo está no Real Madrid por razões comerciais, não é por amor. No dia em que o Manchester lhe der mais, vai embora. Nos partidos, não vão. São Ronaldos fixos. E não pode convencer o trabalhador baixo, médio, alto a aplicar-se na construção de uma sociedade que não é para ele. 

D. José tinha um Sebastião José de Carvalho e Melo como primeiro-ministro… Nós não temos um ponta de lança assim. Ou temos alguém que nos salve?
Nem sapatos de Marquês de Pombal. 

Volto ao ponto da partida: quem é se safa? Há pessoas que fazem a diferença. Não pode ser uma coisa tão tremenda.
Mas não é tremendo. Isto é tudo natural. Há povos com mais prosperidade e há povos com menos. Por razões relativas a esses povos e por razões circunstanciais. Ter petróleo é um acaso. Ter o D. João II? Um acaso. Fogachos no meio da história.

Não temos procedimentos, regras, um ecossistema que permita a criação de mais Infantes D. Henrique. Ínclita Geração, só tivemos uma.
E não haverá segunda, pelo menos tão cedo. Podemos divagar e dizer que os países do norte enveredaram pelo protestantismo, e como era preciso, para contactar com Deus, saber ler a Bíblia, tiveram que aprender a ler e a escrever. Nós contactamos com o padre e não aprendemos coisa nenhuma. Tudo isto marcou a evolução deste país. Não somos muito maus. Somos razoáveis. Em muitos casos, o que não temos é organização. E educação. Eu, por exemplo, tenho embirração às pessoas que falam demais - que são quase todas. Quando você ouve uma pessoa a precisar de três quartos de hora para dizer uma coisa que se diz em cinco minutos, isto é um problema de escola. Fomos educados assim: palavrosos, e normalmente com pouco conteúdo. A nossa impontualidade é um problema de educação. Precisávamos de ter uma escola de grande exigência. Exigência disciplinar, de estudo, de prestação de provas; professores que prestassem provas, que fossem avaliados rigorosamente. 

Quando houve uma tentativa de os avaliar, 200 mil manifestaram-se na Avenida da Liberdade. 
Estou para ver se encontro o Nuno Crato para lhe perguntar: "Como é que você meteu a avaliação, está a mudar os "curricula", etc, sem manifs na Avenida da Liberdade?". Com as duas ministras anteriores, a educação era todos os dias um pé de guerra. Os sindicalistas estão mais mansos? O ministro sabe lidar melhor com eles? As soluções são mais aceitáveis? Não sei. Temos mais licenciados do que nunca; mas aquilo que aprenderam serve para a nossa sociedade? Não temos gente que trate de esquentadores, canalizações…

Acabaram os cursos técnico-profissionais e toda a gente tem, legitimamente, a ambição de ser doutor ou engenheiro. Em especial os pais destes, que se esforçaram para que os filhos tivessem uma vida melhor. 
Exacto. 

Olhe para a Geração à Rasca. Foi-lhes vendida a ideia de que o seu futuro seria radioso. Sentem que isto é um engodo. 
Perguntei-me, quando vi aquela massa de pessoas na televisão, se tinham a noção de que vão ter empregos modestos, precários, salários baixos, direitos adquiridos riscados. Fui procurado por jovens dessa manifestação que me perguntaram se eu não achava que era bom fazer uma revolução. "Se eu fosse jovem, não faria. As revoluções valem a pena quando há alguma coisa para distribuir. Num país que só tem dívidas para distribuir, as revoluções não vão longe". Os patrões estão agora tão falidos como os empregados.

Para onde é que foi o dinheiro?
O dinheiro não foi. O dinheiro deixou de ser produzido. Estas alterações na [CGTP]-Inter-Sindical: a esquerda e os sindicatos deviam ter como prioridade recriar uma economia, para depois protestar e pedir redistribuição. No estado em que este país e a Europa estão, nada daquilo [que reivindicam] se consegue. 

O Euro vai acabar?
Penso que não. Ainda é um instrumento de coesão na Europa. Mas o Euro, mesmo resolvido [o problema], não vai fazer o petróleo tornar-se barato, por si mesmo. Nem vai evitar que os chineses vendam para cá tudo o que fazem.

Mesmo que o euro se mantenha, nós e Grécia, somos chutados?
A Grécia não é comparável connosco. Na Grécia ninguém manda, há greves gerais todas as semanas, ninguém obedece. É um caso perdido. Mandar dinheiro para lá não resolve. Enquanto não quiserem organizar-se, não há dinheiro que valha. Nenhum país está disposto a sustentar os gregos sem contrapartidas. 

Merkel sugeriu esta semana uma espécie de tutela da Grécia.
O que a Merkel quer é uma evidência. Se você mandar dinheiro para um sítio, não quer saber o que se passa nesse sítio? Não é a questão de ser um estrangeiro [a fiscalizar e a tutelar]. O Dr. Silva Lopes, se fosse o comissário da UE cá, sentava-se no Terreiro do Paço, tomava um café, mandava buscar uns papéis e uns relatórios, e resolvia isto. A soberania? Mas a gente tem alguma soberania? Um país falido não tem soberania nenhuma. Temos bandeira, hino, GNR. 

Temos uma identidade, não é coisa pouca. 
Isso ninguém nos tira. Temos uma identidade, uma língua, uma tradição, uma história. Mas a Merkel vai dizer aos seus eleitores que mantém Portugal e a Grécia por causa da história notável dos dois países? Isto não é do século XXI.

Ontem, [na TVI] falei do caso da Madeira. É uma caso lastimável do qual é preciso extrair uma lição. O que aconteceu na Madeira aconteceu aqui nos municípios - devem oito mil milhões! Nunca ninguém viu, nunca ninguém controlou? As empresas públicas devem 15 ou 20 mil milhões; como é que chegaram lá? 

Quem é que devia ter visto?
Isso é o que eu pergunto. Temos de ter uma instituição que controle isto. Acho é que não podemos ter um país próspero se cada um se endivida como quer. Este país não precisa de uma tutela financeira? Alguém está disposto a investir e ajudar um país neste estado? 

Há uma tutela económica de Angola e da China? Basta pensar que banca, petróleo e telecomunicações têm uma forte presença destes países.
É evidente. É evidente que os chineses não compram a EDP para terem lucro. A EDP vende menos do que Xangai. Não há sequer um secretário de Estado que siga isto na China. Compram por duas razões: a tecnológica, que se relaciona com as renováveis, e uma razão política. Países com tendência expansionista precisam de pontos de apoio. O porto de Sines provavelmente está na mira deles. Estar perto de Gibraltar, estar no extremo da Europa, a América do outro lado, são vantagens. Com dez réis de mel coado os chineses instalam-se aqui a olhar. 

Entretanto temos contas de luz exorbitantes e pessoas a morrer ao frio.
Ontem mandaram-me a conta da electricidade, 116 euros. Sabe quanto é que era de luz? 42 euros. O resto é para aqui e para ali. A EDP não é a EDP. É uma tesouraria que recebe dinheiro para depois espalhar. 

Esta série de entrevistas chama-se, a partir de um título de Alexandre O'Neill, Ampola Miraculosa. Temos alguma para acabar com este ciclo que tem descrito?
A maior urgência é rever o sistema político. Só vejo uma maneira de libertar o sistema desta tutela dos partidos: um presidencialismo, à americana. Porque o presidente é melhor do que o chefe de governo? Não. Porque é mais independente dos partidos. 

Esteve na comissão de honra da candidatura de Cavaco, no primeiro mandato. 
Estive. Na segunda não estive. Não estou a falar deste presidente. Estou a falar do regime.

Acha isso fazível num país como Portugal? Basta olhar para as nomeações para perceber que não há almoços grátis. Há um jogo a que os políticos não se podem subtrair de um momento para o outro. Ou podem?
Não estou a dizer que é fazível. Mas a primeira coisa é ter uma ideia do que é necessário fazer. Com os partidos como estão e a arquitectura constitucional que nós temos este país está votado ao insucesso. Não é que este regime tivesse impedido o dinamismo do país. Mas não controlou aquilo que era essencial - a despesa pública. Isto é responsabilidade do poder político e sobretudo de José Sócrates. Qualquer pessoa que fizesse duas continhas percebia que isto estava a caminho do estoiro.

Havia uma esperança, com a vinda da troika, que algumas medidas de fundo, à força, fossem implementadas.
Nunca tive esperança. O que a troika vem fazer, em linguagem muito chã, é pôr-nos a viver com o que temos. Temos 100 e gastamos 110: a troika desbasta esses dez. A isto chama-se austeridade.

Como é que nos safamos amanhã? Porque temos de comer amanhã.
No curto prazo precisamos de alargar o prazo de validade com a troika. Em seis anos era mais exequível do que em três. Vai exigir mais dinheiro? Seguramente. Mas se formos entalados de tal maneira, podemos colapsar perdendo aquilo que já se gastou. 

Lagarde dizia isso ainda esta semana.
Temos a mania de ouvir a Christine Lagarde e o Krugman e o Stieglitz. Não é preciso ir tão longe. Na Avenida Almirante Reis pode encontrar pessoas que dizem coisas com o mesmo acerto. Eles não conhecem Portugal. 

A diferença é que são ouvidos. E Lagarde tem o dinheiro do FMI.
Eu nem sempre os ouço. Estão a falar para o mundo, e o nosso é um problema específico. Ao mesmo tempo, temos de ter uma noção das reformas essenciais de que precisamos para cativar investimento. Simplificar o sistema fiscal (combater a economia subterrânea é por simplificação do sistema, e não o contrário), pôr os tribunais fiscais a funcionar (tenho processos com 20 anos!, pendentes), pôr os tribunais em geral a funcionar. Despejos rápidos. Não alterar as leis dos impostos cada três meses. Precisamos de pôr alguns corruptos na cadeia. Em Espanha, há alguns.

Mário Conde foi para a cadeia. Em Portugal, seria impensável que um banqueiro com o estofo de Conde fosse para a cadeia.
Quando me pergunta: porque é que estamos atrasados? É por isto, também. Se metesse na cadeia seis pessoas que dirigem e têm importância social, o país começava a mexer. Sem estes mínimos, que devíamos ter começado em 86 a fazer, vamos de mal a pior. 

O que é que lhe dá gosto em Portugal e nos portugueses?
Aprecio muito o português que é vivaço, desenrascado. Sabe que nos anos 50 trabalhei na indústria, numa metalúrgica do Barreiro; numa fábrica uma pessoa percebe que o português individualmente é muito, muito bom. O português, colectivamente, falha. Dois portugueses produzem menos do que um português e meio.
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