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Costa de saída: O que fica da “Agenda para a Década”
A governação de António Costa não fará uma década completa. Do caderno original de encargos, construído com Mário Centeno e mais 11 economistas, várias medidas caíram. Outras entraram. As metas de crescimento foram alcançadas, e as orçamentais excedidas.
As contas eram, à época, vistas como demasiado otimistas, mas acabaram por bater certo. Quando António Costa se lançou para as legislativas de 2015, o plano era fazer o país crescer 2,6% ao ano. A meta foi ligeiramente excedida até 2019. Houve uma pandemia, guerra e inflação. Mas, no fim do atual ciclo, o crescimento também deve ficar em linha com os 2,2% projetados ainda em 2019 para 2023. O emprego, esse, subiu sempre mais do que se previa. Mas a estratégia orçamental recebeu várias críticas por ir sempre mais longe do que era anunciado: na contenção da despesa, no corte de défice e da dívida.
Os fatores que sustentaram o ciclo económico após a saída do programa de resgate da troika – com diferentes cenários de apoio parlamentar ao Governo, e novas políticas pelo meio – continuam a ser tema de debate na discussão política e económica. Há quem veja um “milagre” – como o Nobel Paul Krugman, recentemente -, quem veja o efeito de uma conjuntura de recuperação europeia, e quem credite as políticas levadas a cabo com o sucesso relativo.
Oito anos é muito tempo, mas afinal menos do que a “década” que o primeiro-ministro agora cessante projetava para o país nos anos de 2014 e 2015. Primeiro com a “Agenda para a Década” da moção com que conquistou a liderança socialista. Depois, com a ajuda de 12 economistas ligados ao Partido Socialista: Mário Centeno, a coordenar, e acompanhado de Fernando Rocha Andrade, Sérgio Ávila, Manuel Caldeira Cabral, Vítor Escária, Elisa Ferreira, João Galamba, João Leão, João Nuno Mendes, Francisca Guedes de Oliveira, Paulo Trigo Pereira e José António Vieira da Silva.
Deste grupo saiu o documento “Uma Década para Portugal”, plataforma de medidas para pôr Portugal a crescer, revertendo parte dos chamados cortes da troika, sem virar costas ao euro e a prometer sustentabilidade na despesa pública. No final, o cenário macroeconómico de impacto sustentava que havia “um caminho alternativo” à austeridade.
O cenário confirmou-se nos principais indicadores, mesmo com a transfiguração parcial do programa, onde nem todas as medidas tiveram continuidade, e outras novas haviam de entrar por via das posições comuns na chamada geringonça, com Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes.
Para trás, ficaram ideias como a do “imposto negativo” para quem tem menores rendimentos ou reduções na taxa social única de empregadores e trabalhadores. Houve ainda medidas que avançaram e que até hoje nunca foram regulamentadas: a taxa de rotatividade para empresas que mais contratam a prazo. Entraram outras: o descongelamento das pensões, o desdobramento de escalões de IRS, a reposição de feriados, as 35 horas de trabalho na Função Pública ou as creches gratuitas, por exemplo.
Apesar de todas elas, e das que se seguiram nas legislaturas após 2019, a governação de António Costa fica ainda assim marcada por uma significativa redução do peso da despesa pública. De 2015 a 2019, os gastos recuaram 5,7 pontos percentuais, de 48,2% para 42,5%, indo muito além dos 4 pontos percentuais que eram projetados no cenário inicial coordenado por Mário Centeno.
O peso da receita desceu, mas bastante menos (1,2 pontos percentuais), e garantiu o excedente histórico de 0,1% do PIB àquele que viria a ser o primeiro ministro das Finanças de Costa – hoje governador do Banco de Portugal –, que antes inscrevia um défice de 0,9% do PIB para 2019 na “Agenda para a Década”.
O emagrecimento da despesa foi interrompido com a pandemia, mas retomado logo depois. O peso dos gastos públicos deverá ficar em 42,6% do PIB neste ano, quase em linha com 2019. Já o peso da receita deverá ficar em 43,5% do PIB, segundo os números do último Orçamento aprovado, que projeta um excedente de 0,8% para este ano.
As contas das perspetivas orçamentais da governação têm ido sempre um pouco além dos planos, seja no saldo ou na redução da dívida. A aproximação aos 100% do PIB de dívida pública, de resto, surge como o objetivo numérico mais evidente, e quase único, do texto dos dois últimos programas de Governo. Poderá ser concretizado já em 2024, muito mais cedo do que foi sendo previsto ao longo dos anos.
Para tal, tem também contribuído o crescimento económico, que avançou a um ritmo médio anual de 2,8% de 2016 a 2019, acima dos 2,6% prometidos. Já quando nos oito anos de governação de 2016 a 2023 (admitindo a estimativa do Governo para a subida de PIB deste ano), a média anual de crescimento fica em 2,2%, penalizada pela depressão da pandemia.
O nível de emprego, também, tem melhorado mais do que o esperado ao longo dos anos. Desde logo, crescendo acima do planeado originalmente na primeira legislatura: a “Agenda para a Década” previa um ritmo médio anual de subida de 1,6% até 2019, que acabou por ficar em 2%. Já os anos da pandemia até 2022 registam uma média de 0,6%, para mais de cinco milhões no emprego, nos dados das contas nacionais.
TSU, imposto negativo, heranças: as ideias iniciais
O documento "Uma década para Portugal", de abril de 2015, coordenado por Mário Centeno, previa várias medidas emblemáticas. Uma parte avançou, mas algumas não saíram do papel.
Taxa por precariedade
Propunha-se uma maior relação entre a taxa a pagar pela empresa à Segurança Social e o nível de desemprego que gerava. Em 2018, o Governo preparou uma “taxa da rotatividade” a aplicar às empresas com maior peso de contratos a termo face à média do setor. A medida foi legislada, mas nunca foi regulamentada.
Complemento salarial
A ideia era contrariar o fenómeno dos “trabalhadores pobres”, 10,7% do total. Os “peritos do PS” propunham “a criação de um complemento salarial anual” um “imposto negativo” aplicável “a todos os que durante o ano declarem um rendimento do trabalho à Segurança Social inferior à linha de pobreza”. A proposta não avançou. Em 2022, depois de ter baixado três décimas, a taxa de risco de pobreza da população empregada foi de 10%.
Redução da Taxa Social Única
A intenção era reduzir a TSU a cargo dos empregadores (23,75%) em 1,5 pontos percentuais em 2016 e 2017 e 1 ponto em 2018, no caso dos contratos permanentes. Também a TSU a cargo dos trabalhadores (11%) baixaria 4 pontos, com impacto sobre o cálculo das pensões a atribuir de 2021 em diante. A ideia, muito polémica, chegou ao programa eleitoral do PS, mas caiu por exigência de BE e PCP.
Baixa do IVA da restauração
O documento propunha inverter o aumento de 2012, baixando o IVA da restauração de 23% para 13%, uma medida que entrou em vigor logo no ano seguinte, em julho de 2016. Imposto sobre heranças de elevado valor. A ideia era criar um imposto sobre heranças de elevado valor, acima de um milhão de euros, uma medida de justiça e equidade fiscal, tendo em conta a tributação que já recai sobre os rendimentos do trabalho. Chegou a falar-se na aplicação de uma taxa especial de 28% de IRS e a medida foi incluída no programa de Governo. Causou polémica, mas foi sendo sempre adiada e nunca chegou a sair do papel.
Imposto negativo para rendimentos baixos
O PS propunha criar um complemento salarial anual sob a forma de um crédito (um imposto negativo) para quem declarasse rendimentos do trabalho à Segurança Social. Seria um mecanismo adicional de combate à pobreza e à integração no mercado de trabalho, mas não avançou.
Eliminação de cortes salariais
O documento previa a eliminação, até 2017, dos cortes salariais em vigor desde 2011 que Passos Coelho tinha começado a reverter. Acabou por determinar o fim dos cortes em outubro de 2016.
Diversificação do Financiamento do FEFSS
Previa-se o reforço do financiamento da Segurança Social com a consignação de parte da receita do imposto sobre pessoas coletivas (IRC), travando a redução da taxa – o que foi concretizado –, mas também com as receitas do novo imposto sobre heranças e da taxa por rotação excessiva (que não avançaram).