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Tanto mistério que vai à vida

Sempre que há uma colheita nova de Pintas ou do Quinta da Manoella, é a mesma história. Provamos vinhos acabados de nascer e choramos pelos aromas e sabores que só o tempo revelaria.

12 de Agosto de 2017 às 13:00
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Primeira parte. Uma das obsessões intrigantes da humanidade é a procura do "melhor". Amigos, conhecidos e desconhecidos acham que a circunstância de alguém se dedicar à escrita dessas matérias lhe dá o direito de ajuizar com a venda nos olhos e espada na mão. Um tipo bem pode repetir à náusea que não é possível garantir qual é o melhor vinho, o melhor chefe, o melhor azeite ou o melhor restaurante que isso não demove quem faz as perguntas. Um tipo bem pode dizer que o resultado de um concurso é apenas uma escolha momentânea de um grupo de cidadãos e que qualquer alteração de um ou outro jurado poderia ditar sortes diferentes, mas isso não perturba os "amantes do melhor".

Às vezes penso que nem faz sentido ocupar o juízo com estas matérias, mas outras vezes convenço-me de que as coisas são mesmo assim e que é da natureza humana confiar nos tais especialistas. A mim, por exemplo, uma ligeira dor de cabeça é coisa suficiente para chatear meio mundo à procura do médico micro-especializado na parte cerebral que supostamente me dói, sendo certo que tudo se resolve com o mais elementar analgésico. Cada um com as suas moléstias.

Há, contudo, perguntas recorrentes que acho desafiantes. Estas: Por que razão, com tantas décadas de modernização enológica e vitícola, o Barca Velha continua a ser o mais emblemático tinto português? Por que razão não nasceu outro vinho para lhe retirar a coroa? E por que razão não se descobre e não se reproduz a receita do sucesso do mítico vinho criado em 1952?

Se, em perfeito juízo, não posso dizer que o Barca Velha é o melhor vinho tinto da nação (isso é irrelevante), posso, todavia, concordar que este é o mais romântico dos vinhos portugueses. Nenhum outro vinho criou - como agora se diz - uma narrativa tão brilhante. E nenhum outro vinho é tão desejado como o Barca Velha.

Segunda parte. Se destaco hoje o Pintas e o Quinta da Manoella VV, da Wine & Soul, por que raio estou para aqui a falar do Barca Velha? É porque um dos trunfos do vinho criado por Fernando Nicolau de Almeida é o tempo que o vinho estagia em garrafa antes de chegar ao mercado - cerca de oito anos. E se esse tempo faz uma diferença tremenda e se toda a gente sabe isso, por que razão não há mais produtores e imitar a Casa Ferreirinha? Sim, as questões financeiras determinam tudo, mas, caramba, a Sogrape será a única empresa com arcaboiço financeiro para suportar tal estratégia? Não acredito.

Quando me calha provar um Pintas ou um Quinta da Manoella Vinhas Velhas novos, fico sempre meio angustiado. Meto as garrafas em cima de mesa ao final da tarde e, depois, é como a passagem do tempo num filme. Sento-me, levanto-me, vou para o sofá. Regresso e cruzo os braços, debruçado na mesa a olhar para as garrafas. Rodo-as. Levanto-me de novo. E quando chego à janela já está noite serrada. Afinal, abro ou não abro as garrafas?

Se o leitor acha isso uma chinesice, é porque não lhe calhou, há uns anos, sentar-se num restaurante lisboeta - Horta dos Brunos - ao lado de uma mesa com uns cavalheiros que tiveram a amabilidade de me fazer chegar um copo de Pintas de - não vou jurar mas quase garanto - 2001. Conservado, ainda por cima, em garrafa magnum. A última à guarda dos tais fulanos generosos. E, claro, não foi só um copo. Foram os necessários para esquecer o vinho que estava a provar com um amigo. E olhem que era um tinto de grande fama. Tudo isso porque, lá está, é o tempo que introduz mistério na garrafa. É o tempo que desenvolve aromas e sabores únicos, por vezes difíceis de descrever, mas sempre desafiantes. Sempre.

Se acabei por abrir as duas garrafas de 2014? Pois, que remédio. São grandes vinhos? Ora, que pergunta. O Pintas é mais concentrado a todos os níveis; o Quinta da Manoella VV é mais vegetal. No Pintas, sentimos mirtilos, casca de ameixa e alguma caruma, com as notas de madeira bem presentes; no Manoella VV temos aromas delicados da Touriga Nacional, mineralidade e tudo o mais que uma vinha velha com castas que não acabam dá: riqueza, complexidade e sabores prolongados na boca. A mim encanta-me mais o Quinta da Manoella VV, mas, interiorizemos isso, eles vinhos nasceram ontem. Daqui por quatro, sete ou 10 anos, tudo pode mudar, sendo certo que revelarão outra nobreza.

Quem for mesmo muito fã dos vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio Borges, faça o seguinte: consuma as colheitas mais recuadas que apanhar (2009, por exemplo), mas não se esqueça de comprar umas garrafinhas todos os anos porque as despesas e os investimentos deles são permanentes.

Moral da história, nós, em matéria de Porto ou Madeira, adoramos guardar garrafas para o dia que nunca chega, mas, em matéria de tintos, somos uns vinicidas patológicos. É ver quem primeiro deita abaixo a garrafa da última colheita. E é pena.


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