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O paraíso existe e fica em Sintra

Pelo menos foi o que senti numa tarde ventosa de domingo quando provava 12 vinhos do Porto do século XIX – alguns deles pré-filoxéricos. Misteriosos, deslumbrantes, desafiantes e, acima de tudo, cheios de vida. Se não têm dedo divino, parece.

Paulo Cruz é o criador do Porto Estravaganza. É o comerciante ideal para aconselhar a compra de vinhos do Porto raros. João Miguel Rodrigues
18 de Março de 2017 às 13:00
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O Porto Extravaganza é a grande escola de vinho do Porto em Portugal, criada por Paulo Cruz, do Bar do Binho. Sim, sei bem que é em Gaia que estão depositadas as grandes referências desse vinho generoso, mas é em Sintra que qualquer interessado pode inscrever-se em provas sofisticadas, comentadas por especialistas e com as colheitas que se confundem com tesouros. Só em Sintra.

O Porto Extravaganza foi criado no início 2000 e teve várias edições anuais que eram aguardadas como uma festa religiosa. Mas isso foi no tempo em éramos todos mais ou menos ricos, pelo menos em tese. Veio a crise, foram-se os anéis e Paulo Cruz, com falta de apoio das casas de Gaia, suspendeu o evento durante anos, coisa que deixou muita gente infeliz.

Não sabemos se é por uma certa ideia de que as coisas estão a melhorar no país ou se é por outra qualquer razão, mas foi com alegria que os enófilos receberam a notícia do regresso do Porto Extravaganza, ainda por cima com selecção bem feita de vinhos/produtores. Num primeiro dia foram os Portos Garrafeira da Niepoort, a única empresa que leva esta categoria muito a sério. No segundo dia, vinhos do universo Symington e, para fechar em beleza, Paulo Cruz e Bento Amaral (presidente da câmara de provadores do Instituto dos Vinho do Douro e do Porto mas aqui apenas na qualidade de perito e amante destas matérias) apresentaram 12 vinhos raríssimos, alguns dos quais feitos antes da praga da Filoxera.

A ideia não é irritar os leitores, mas, já agora, apresentemos os vinhos em prova. Para começar, o Valriz Branco Seco (um blend dos anos 1900 - 1927 e 1960). Depois, a seguinte ordem: Quinta de Vista Alegre, Tawny Velho, da segunda metade do século XIX; Vieira de Sousa Tawny Velho, do mesmo período; Marta's Colheita 1890; Rozés Colheita 1880; Vasques de Carvalho Colheita 1880; Ferreira Quinta dos Aciprestes Vintage 1872; Vinho Fino Colheita 1871; Vinho Fino Garrafeira de 1870; Niepoort VV 1863; Valriz Colheita 1858 e Vinho Fino Colheita 1850.

Como mais ou menos acidez, com mais ou menos açúcar, com mais ou menos complexidade aromática, eram todos grandes vinhos. Dizer qual era o melhor é tempo perdido. E, mesmo se fosse torturado para o efeito, eu atirava um vinho qualquer e ninguém acharia um disparate. Qualquer um servia.


Aliás, a descrição destes vinhos requer uma considerável memória sensorial, sendo que estamos sempre perante Portos que juntam madeiras exóticas, frutos secos, frutos caramelizados, especiarias variadas, vinagrinhos, com sensações tácteis na boca que têm tanto de força como de elegância. Eram vinhos com 100, 150 ou mais anos, dos quais tanto podem restar meia pipa como dois ou rês garrafões ou, até, duas garrafas.

Porque vivem tanto tempo estes vinhos? Bom, por causa da sua riqueza de açúcar, acidez e álcool. Mas a verdade é que há outros vinhos doces por esse mundo fora com estruturas químicas semelhantes mas que não chegam aos calcanhares do vinho do Porto. A resposta pode estar numa questão muito simples: é que os antigos faziam questão de produzir vinhos destinados a viver décadas sem fim. Todo o homem do Douro que se prezava fazia tudo para deixar uma ou outra pipa especial para as grandes datas da vida dos filhos. Estes, recebendo a herança, faziam o mesmo e conservavam as tais pipas para os seus filhos. A dada altura, os bisnetos do fundador já tudo faziam para manter os tesouros recebidos - nem sempre era de bom beber o vinho todo. E assim se conservava o Porto no tempo. Claro que as partilhas entre gerações, as falências e as vendas de propriedades aconteciam. E, nessas alturas, os novos donos tratavam de vender os "stocks" comprados, quase sempre às empresas de renome, que depois os usavam nos seus lotes especiais de tawnies.

A generalidade dos vinhos provados nessa tarde de domingo não está à venda, mas os leitores interessados devem fixar o nome das marcas em prova porque algumas das casas têm outras colheitas memoráveis mais recentes.

Um tipo sai de uma prova destas com um estado de felicidade facilmente imaginável, que durará semanas. Juro que, volta e meia, e tanto tempo depois, vêm-me à memória certos aromas e sabores deste ou daquele vinho, bem como as explicações eruditas do Bento Amaral ou do entusiasmo contagiante do Paulo Cruz, para quem, de resto, os tipos das Ordens Honoríficas Portuguesas deveriam olhar. Estes, ou - vá lá - o Comité Nobel, que deveria inventar um prémio qualquer para lhe dar. Acham que isso é o vinho a escrever? Sim. Pode ser. Mas uma coisa é certa: Paulo Cruz é o grande educador do vinho do Porto em Portugal. Ponto.


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