Notícia
Cabernets cá da terra que parecem de Bordéus
As castas são estrangeiras e os vinhos nacionais. Se o Palácio da Bacalhôa ou o Escondido fossem levados a um concurso em França, alguns diriam que têm sotaque carregado de Bordéus.
09 de Dezembro de 2017 às 11:00

Se andamos por aqui a pregar há anos as virtudes das castas autóctones nacionais, pode parecer estranho que hoje se fale de vinhos nacionais feitos com Cabernet Sauvignon.
Ou seja, lá pelo facto de a casta ser rainha no mundo, isto não quer dizer que dê sempre vinhos de renome em qualquer parte. Pelo contrário. Um vinho Cabernet Sauvigon de excepção é coisa que, por regra, só se consegue em Bordéus, onde a casta surge nas garrafas com a ajuda de Merlot e uns pós de Cabernet Franc ou Petit Verdot.
Em determinados territórios aproximados do mar (mas não em cima do mar), um enólogo competente consegue fazer um bom Cabernet Sauvigon. O problema é quando nos calha, em dias de muita sorte, provar numa mesma noite coisas como Château Margot, Lafite, Haut-Brion, Mouton-Rothschild ou Pétrus. Um tipo sai do jantar (no Eleven) com um daqueles sorrisos que demora dias a passar.
Dito isto, há um Cabernet em Portugal que sempre me encheu as medidas e outro que é uma fantástica descoberta recente. O primeiro - Quinta da Bacalhôa - até dá jeito para me vangloriar; o segundo - O Escondido - serve para demonstrar que o preconceito (o meu) é mesmo uma coisa muito feia.
O Palácio da Bacalhôa é um projecto histórico e arquitectónico que nos desafia sempre que passamos os portões da quinta situada na serra da Arrábida. Nasce no século XV, passa por diferentes famílias nobres e, em 1936, é comprado pela americana Orlena Scoville. Em 1974, o neto Thomas Scoville instala uma vinha de Cabernet Sauvignon na quinta e, a partir de 1979, cria-se um tinto com uma nobreza pouco comum à época. Misterioso, inigualável e desafiante. E isto porque, segundo Vasco Penha Garcia e Filipa Tomaz da Costa (os dois enólogos da Bacalhôa Vinhos), a natureza dos solos, o clima ameno e a relativa proximidade do mar dão condições excepcionais para a produção de uvas desta casta. Até ao ano 2000 só havia Quinta da Bacalhôa. De então para cá, produz-se o Quinta e o Palácio da Bacalhôa - uma espécie de Cabernet mais refinado, em homenagem a Joe Berardo, o dono do projecto. O Palácio é mais finório, com um trabalho de madeira mais requintado. O Quinta será, a meu ver, mais puro na expressão da casta. É uma questão de gosto.
A questão de glória pessoal têm que ver com o facto de, em duas ocasiões diferentes e em sistema de prova cega (num jantar em Campo de Ourique e num concurso de vinhos só com jornalistas), ter assinalado nas minhas notas que as mostras tal e tal seriam Quinta da Bacalhôa. Isto não revela nenhum faro especial - até porque com uma carreira já considerável acertar duas vezes até é pouca coisa. Revela apenas que um Quinta da Bacalhôa é um Cabernet absolutamente distinto de todos os outros Cabernets da nação. Quando memorizamos a sua finura e elegância, sempre que ele passa pelo nariz, as campainhas tocam: alto lá que é Bacalhôa.
No capítulo da vergonha pessoal, temos este Escondido, da autoria de Aníbal José Coutinho. Homem de muitos ofícios (organizador de concursos, consultor de uma cadeia de distribuição, produtor cá dentro e lá fora, professor e tenor no Coro Gulbenkian), Aníbal é aquele "outsider" que um jornalista muito cioso dos pergaminhos de casta (vulgo, snob) não gosta de dar atenção. Ainda por cima, há meia dúzia de anos, decidiu lançar um tinto - o tal Escondido -, pelo qual pedia €100 a garrafa. Estão a ver o falatório.
De maneira que, um destes dias, à mesa do restaurante O Jacinto, em Lisboa, fiquei várias vezes em silêncio sempre que provava os vinhos Escondido (quer o branco quer o tinto), resultantes de produções muito pequenas da região de Lisboa, numa quinta familiar em Negrais. Para o que hoje nos interessa, o tinto Escondido é profundo, mas fresco, com a matriz do Cabernet, mas cheio de personalidade. Fino que se farta. Se às cegas me dissessem que estava a provar um premier cru, eu não levantaria dúvidas.
Donde, caro leitor, se por estes dias quiser provar três grandes Cabernet Sauvignon feitos por cá, já sabe: Quinta da Bacalhôa 2014, Palácio da Bacalhôa 2014 ou Escondido 2012.