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A revolução continua nos Açores

Quem quisesse provar um vinho branco com terroir do Pico não encontraria na cooperativa da ilha coisas de encantar. Mas isso acabou com a chegada de Bernardo Cabral. Os três novos varietais da adega são o princípio de uma renovação séria.

11 de Agosto de 2018 às 13:00
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Bernardo Cabral acertou na muche ao usar madeiras usadas e de grande volume, mas os parabéns são extensivos aos pequenos viticultores do Pico que, infelizmente, nunca aparecem nos contra-rótulos. Sem eles o enólogo não brilharia.
O Arinto dos Açores e o Verdelho custam cerca de 16€, o Terrantez, 18€

Quando, há um ano, soube que Bernardo Cabral seria o próximo enólogo da Adega Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico fiz aquele gesto muito português que é coçar a cabeça e erguer os dois sobrolhos. Não por duvidar das suas capacidades, claro, mas pelo facto de se enfiar numa instituição que vivia a ressaca da passagem de um estrangeiro tresloucado como seu director e por ter de fazer vinho num território vitícola em que é preciso rezar a todos os santos para que em Setembro ou Outubro haja uvas sãs.

No meu pensamento a coisa era assim: "Ok, ele vai chegar lá com toda a educação deste mundo, cheio de boas ideias e com espírito de terroir, mas vai esbarrar contra uma cultura organizacional tão complexa que só daqui por dois ou três anos, e com a ajuda de São Pedro, poderá mostrar quanto vale como enólogo na ilha dos currais tramados." Ora, hoje, apetece-me pedir-lhe desculpa. Três varietais já de 2017 com as três castas brancas dos Açores (Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez) são três grandes vinhos e, mais importante, brancos que um enófilo sério identifica de imediato como vinhos que só podiam nascer de vinhas enfiadas em basalto e que fazem estrema com o mar. Se alguém acha que exagero, fica desde já o desafio para um prova cega, com a presença de vinhos das ilhas açorianas e/ou de outros territórios continentais mais atlânticos.

Acompanho o trabalho de Bernardo Cabral desde a Casa Santa Vitória à Companhia das Lezírias, passando pela Herdade da Bombeira, Vicentino Wines e Herdade de Pegos Claros. Cada projecto tem o seu objectivo estratégico definido e Bernardo Cabral dá-lhes o devido seguimento, mas habituei-me a olhar para ele mais como um engenheiro em sentido lacto do que como um simples enólogo. Parece uma contradição, mas não é.

Quando chega a um projecto novo, não se limita a dar o melhor de si em matéria de enologia. Ele interfere na vinha, ele recria e inventa soluções de vinificação, ele anda sempre à pesca de práticas antigas que a modernidade rejeitou, ele cria vinhos só porque se enamorou por uma vinha que é um ecossistema único e que dantes ninguém ligava e ele sabe de ginjeira a quem deve recorrer para vestir uma garrafa bem vestidinha (basta olhar para esta página).

Significa isto que todos os vinhos que faz são fora de série? É claro que não. Mas guardo na memória uns Tourigas Nacionais e um curioso Baga que fez no Alentejo, um espumante e um Alicante Bouschet nas Lezírias e todos os Castelões que recuperou em Pegões - genuínos e sérios.

Ora, é este espírito de genuinidade que está em cada um destes varietais do Pico. O Arinto dos Açores não deixa de revelar aquelas notas alimonadas e tropicais que surgem num Arinto de Bucelas, mas na boca tem volume, acidez que se farta e a mineralidade insular. É poderoso, mas sem excessos.

Agora, entre o Verdelho e o Terrantez, balanço. Este último - e por ter fermentado em balseiro velho (Deus seja louvado) é desafiante e misterioso. É certo que se sente notas ligeiras de toranja, mas é algo que me atira para alguns brancos clássicos da Bairrada ou do Dão fermentados à moda antiga e que a gente nunca sabe bem a que cheiram. É vinho pelo vinho e não vinho que cheira a isto ou aquilo. Cheiram muito bem, pronto. Este, na boca é seríssimo, exigindo prova em silêncio.

Quanto ao Verdelho, é aquele que eu diria ser o mais açoriano de todos. E isto porque, sendo subtil, é capaz de libertar aromas marinhos (cheiro das ondas a bater no musgo das rochas), salinos e, simultaneamente, florais, fazendo por vezes lembrar a flor das conteiras (ou roca de velha, nas "ilhas de baixo").

Se alguns leitores pensam que esta crónica vai muito emotiva, eu não negarei tal coisa. Mas não tenho culpa de ter memória dos vinhos dos Açores antes da chegada do António Maçanita (que é em quem começou a revolução), do Anselmo Mendes e do Diogo Lopes (meteram os Biscoitos no mapa e esperemos que continuem...), do Paulo Laureano e, agora, do Bernardo Cabral. Como açoriano, nunca pensei que seria possível reunir tanta qualidade. E nunca pensei que, um dia, poderia levar vinhos açorianos para mostrar, com orgulho, a amigos em qualquer parte do mundo.

Falta agora resolver a questão dos vinhos da Graciosa. E espero que as instituições oficiais tenham engenho em perceber que é o perfil diferenciado de cada enólogo que dá riqueza aos vinhos açorianos (aqui é que está o ponto), mas isso será tema para outra crónica.


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