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Quando a América perdeu a inocência

Truman Capote investigou um múltiplo assassinato que mudou a noção que os Estados Unidos tinham de si próprios. O livro, agora reeditado, tornou-se um sucesso interminável.

03 de Setembro de 2016 às 12:30
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Truman capote, "A Sangue Frio" D. Quixote, 396 páginas, 2016


Recentemente, foi colocado em causa o relato de Truman Capote do assassinato da família Clutter na sua casa no Kansas, que alimentou um dos mais persuasivos livros do autor, "A Sangue Frio", agora reeditado em Portugal.

Depois de estarem perdidos na investigação, os detectives do Kansas Bureau of Investigation receberam uma denúncia de um prisioneiro que dizia que o assassino poderia ter sido o seu antigo colega de cela, Richard Hickock, possivelmente em conluio com um cúmplice, Perry Smith.

Capote definiu o ambiente: Alvin Dewey, o detective sisudo encarregado do caso (e o herói do livro), sente que finalmente encontrou alguma luz na escuridão. Dewey enviara então um agente, Harold Nye, para o último endereço conhecido de Hickock, onde é recebido pelos pais deste. Capote consegue descrever tudo isso, tal como o ambiente na casa de Dewey, com a mulher Marie, com detalhes e ambiência fílmica, que tornam o relato impossível de ser posto em causa (mesmo se, há alguns anos, Tom Wolfe tivesse sovado o livro). Tudo decorre como uma obra de arte.

Algumas coisas que Capote escreveu podem não se coadunar com a realidade, mas isso não invalida a beleza daquilo que inventou com este livro, a "nonfiction novel", e ele tornou-se um verdadeiro ícone da literatura do século XX. Lendo-o novamente, compreende-se que assim seja: Capote domina o ambiente tétrico com a sua qualidade de escrita.

Capote compreendeu, na altura, que estas mortes selvagens de uma família de agricultores no interior dos Estados Unidos tinham uma qualidade quase mística. Afinal, estávamos a entrar na década de 60, quando os EUA já começavam a esquecer a Segunda Guerra Mundial e o lado negro do país mostrava a sua face. Porque não havia motivo aparente para o crime, algo que começava então a despontar era a violência pela violência. Alvin Dewey nunca tinha visto um crime tão sem sentido. Rapidamente, Capote, acompanhado da escritora Harper Lee, foi até ao local. Lee seria crucial: seria ele que permitiria a Capote penetrar no cordão silencioso que rodeava o caso. Foi assim que ele conseguiu acompanhar a caça aos criminosos que culminaria com o seu julgamento e condenação à morte.

A tensão emocional que Capote empresta à sua descrição desses tempos de busca dos assassinos e da acção de Dewey acabaram por tornar esta obra perfeitamente incontornável. Porque ela abria as portas para um mundo que poucas vezes tinha sido tratado de forma tão realista na literatura: o da violência crua. A técnica usada por Capote não era nova: de Daniel Defoe a John Steinbeck, alguns já tinham utilizado as vozes de personagens reais para descrever os acontecimentos. Mas Capote deu-lhe o seu toque muito pessoal, como é visível nesta obra. Disse, na altura, que mais do que descrever um crime queria mostrar a vida de uma cidade. Focando-se nos assassinos e nas vítimas, construiu uma teia tentadora que não deixou ninguém indiferente, até porque o autor tinha estabelecido uma relação especial com um dos assassinos, Perry Smith. Tal como sucede hoje, quando lemos com emoção aquilo que ele vai descrevendo como se fosse um filme.

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