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O valor das almas

Qual é o valor da vida humana ou mesmo da sua alma? Este contundente romance de Gógol, sobre a Rússia czarista, é uma das obras-primas da literatura mundial.

08 de Julho de 2017 às 09:15
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Nikolai Gógol
Almas Mortas
Assírio & Alvim,
452 páginas, 2017


Nikolai Gógol é um dos nomes maiores da literatura russa, apesar da sua origem ucraniana. "Almas Mortas", nesse aspecto, funciona como um dos seus livros determinantes e é um claro influenciador de nomes como Dostoiévski ou Bulgakov. A sua faceta como "artista torturado" ainda perdura nos nossos dias, já que muitos consideram que nos últimos tempos, quando tentava acabar a sua obra-prima, que rivalizaria com "A Divina Comédia" e "Odisseia", estava a resvalar para a loucura. Algo que está muitas vezes ligado ao universo criativo russo.

Nasceu na Ucrânia em 1809, mas foi a sua chegada a São Petersburgo, em 1828, que viria a contribuir para que se libertasse criativamente. As suas viagens pela Suíça, pela Alemanha e pela França, antes de se ter localizado em Itália, contribuíram para que fosse refinando a sua visão da Rússia. "Almas Mortas" funciona como cenário épico deste universo criado por Gógol: é um longo poema em prosa. Está repleto de caricaturas do mundo russo, desde o que está louco pela ganância, pelo sentimentalismo, e pelos esquemas que fazem parte do dia-a-dia russo e contribuem para o súbito enriquecimento de muitos.

Conta-nos a história de Tchitchikov, um vigarista que conseguiu arquitectar um complexo esquema para ganhar poder e riqueza e que a aplica numa cidade ainda regida pelas leis da verdadeira escravidão laboral. Propõe-se comprar aos senhores da terra locais as almas mortas de servos da gleba que já faleceram mas que, nos registos, ainda surgem como vivos. A sátira é, pois, constante. A realidade é, aqui, perfeitamente alucinante, como se estivéssemos num universo psicadélico por antecipação. Só o próprio conceito de, na Rússia czarista, se poder ser proprietário de almas (e de servos), mostra até que ponto Gógol vai na análise do seu país.

Tchitchikov desenvolve o plano de uma forma sublime: ele quer usar a sua lista de escravos fictícios para comprar terra para os recolocar e tornar-se, ele próprio, um senhor da terra. Só que ele próprio é uma verdadeira alma perdida, que faz tudo para agradar, mas que não o consegue. Alguns diálogos são sublimes. Como aquele em que Sobakévitch diz: "O meu preço não é alto! Um vigarista qualquer enganava-o, vendia-lhe uma porcaria de almas, e as minhas são todas de primeira: quando não é mestre de um ofício, é pelo menos um belo e valente mujique. (…) Pois, é claro que estão mortos. (…) De qualquer maneira, francamente: que proveito tiramos dos que estão vivos? Terão algum valor? Não são gente, são moscas."

Um dos momentos mais contundentes do livro é quando o vigarista olha para a lista de almas que comprou e isso, por momentos, traz os falecidos de novo à vida. Afinal eles eram pessoas. E todos tinham histórias de vida. Esta é uma verdadeira obra-prima da literatura mundial. E hoje é talvez ainda mais moderna do que quando foi escrita.



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