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O outro lado do espelho

Há muitas formas de ver a evolução da Rússia soviética. Amor Towles criou uma ficção a partir de um selecto hotel de Moscovo que parece imune às transformações à sua volta.

17 de Fevereiro de 2018 às 18:00
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Amor Towles
Um Gentleman em Moscovo
D. Quixote, 542 páginas,
2018


A Rússia é um enigma escondido numa boneca matriosca. Talvez por isso a vida do conde Alexander Rostov acabe por ser o retrato desse país dividido entre o Ocidente e o Oriente. Nesta ficção, "Um Gentleman em Moscovo", de Amor Towles, os novos mestres do Kremlin colocaram-no em domicílio forçado num local improvável: o luxuoso hotel Metropol de Moscovo. Ali, ele passa os dias decorando a sua sala de jantar.

Tudo tem uma dose quase letal de charme e parece que todos os acontecimentos que afligem a Rússia não têm eco ali, num local privilegiado, num clima imune às tempestades, ao frio ou ao sofrimento que acontece nas ruas. Estamos, claro, num período que não é o actual. O ponto de partida é 1922, tempos ainda gloriosos da revolução bolchevique. Talvez por isso o Metropol parece um oásis no meio de tudo o que se passa à volta, permitindo ao conde fazer pequenas conspirações para conseguir certos ingredientes para uma refeição extraordinária.

É um mundo paralelo: o seu florista sabe os códigos da sociedade e sabe que flor enviar quando se chega tarde, ou quando alguém falou na altura indevida. A barbearia é um território do optimismo ("uma espécie de Suíça"), neutra em termos políticos. No bar, há velas que iluminam os que frequentam. Nos cantos mais escuros, os dançarinos do Bolshoi podem beber às escondidas. A vida corre calmamente. Nenhum burocrata bolchevique parece capaz de pôr em causa aquela melancolia. Nem mesmo a II Guerra Mundial, mais tarde, consegue isso: no máximo, impõe uma pausa. Afinal, um grande hotel como aquele é eterno, indiferente ao que se passa à sua volta.

Rostov, antes de ir à noite para o seu quarto no sexto andar, que quase não tem espaço para a sua mesa Luís XVI, vive de rotinas. E elas estabelecem o padrão da vida ali. Rostov pagou caro ter escrito um poema em 1922: foi condenado à prisão domiciliária. Salvou-se de ser fuzilado ou de ir parar à Sibéria porque fora um herói na Rússia pré-revolucionária. Foi instalado num quarto. Rostov é um optimista. Um intelectual que, a pouco e pouco, vai sendo traído pela fadiga e pelo fastio daquela vida sempre igual.

Que resta então a um homem repleto de cultura? Numa tradição muito russa, poderia suicidar-se, mas isso é complicado de fazer no Metropol. E, assim, Rostov acaba por ser, ali dentro, a testemunha de uma era. Um aristocrata perdido num mundo que desconhece e para o qual não estaria preparado, mesmo com os seus ideais vanguardistas. O seu amigo, um poeta muito nervoso de nome Mishka, diz que a sua reclusão é feita pelas melhores razões e acrescenta que a grande contribuição do seu país para o mundo é a destruição: destruímos o que criamos, diz ele. Outra personagem interessante é a jovem Nina, que é a curiosidade em pessoa e tem uma chave que lhe permite entrar em qualquer quarto. Na década de 30, Rostov assiste ao reforçar das perseguições e isso é-lhe muitas vezes transmitido por Nina. Torna-se um guardião de alguns segredos.

Esta é uma viagem pelo mundo soviético a partir de um hotel. É uma visão fascinante do que pode nunca mudar quando tudo à volta está em transformação acelerada e radical.

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