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A deusa da grande escrita

Arundhati Roy regressa, muitos anos depois de “O Deus das Pequenas Coisas”, com uma grande obra sobre a sociedade indiana no geral e a de Caxemira em particular.

10 de Junho de 2017 às 09:15
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Arundhati Roy
O Ministério da Felicidade Suprema
Asa, 463 paginas, 2017

Alguns livros são, para os leitores, uma espécie de fruto de uma longa espera. E é isso que acontece com este "O Ministério da Felicidade Suprema", que surge duas décadas depois do primeiro e único romance de Arundhati Roy, "O Deus das Pequenas Coisas". Na altura, esta obra foi um sucesso global. Este livro tornou-se uma lenda. Mas depois Roy decidiu virar-se antes para a escrita de não-ficção e tornou-se uma das mais audíveis vozes na Índia no protesto contra o omnipotente Estado. Ao mesmo tempo, envolveu-se militantemente em actividades políticas, desde marchar ao lado dos que protestavam contra barragens gigantescas até a acompanhar guerrilheiros maoistas nas florestas indianas. Esteve brevemente presa. Mas valeu o tempo da espera.

Esta ambiciosa novela mostra a claridade da escrita de Roy. É um postal ilustrado (embora com diferentes tonalidades de cinzento) da sociedade indiana, reflectindo sobre temas como os desafios transexuais dos "hijra", a ascensão do nacionalismo hindu, o legado do desastre ambiental de 1984 em Bhopal e também sobre a luta pela independência de Caxemira. No meio, quase como fantasma, surge Narendra Modi, o actual primeiro-ministro indiano, um sinal eloquente do nacionalismo hindu. Não admira: o livro está repleto de problemáticas políticas.

Aqui, Roy, apesar da capacidade com que nos evoca diferentes personagens, mostra que o seu foco é mais a sociedade e as consequências que ela sofre com actos políticos e não as personagens que por aqui surgem. Há quem possa dizer que Roy é mais Dickens do que Tolstoi. E será. No centro emerge uma mulher de classe média, chamada S. Tilottama, que leva um bebé abandonado para casa. É ela que faz a conexão entre todas as personagens que aqui descobrimos, incluindo um Saddam Hussein, um antigo trabalhador mortuário, que se passou a designar assim porque ficou obcecado com a coragem e dignidade do antigo ditador iraquiano em face da morte. Tilottama, quando estava na universidade na década de 1980, era próxima de três homens: todos eles acabam envolvidos no conflito de Caxemira, um como oficial dos serviços de informação, outro como jornalista e o terceiro como um guerrilheiro de um movimento de libertação de Caxemira.

Caxemira é uma ferida que divide comunidades religiosas e étnicas neste território entre a Índia e o Paquistão. Caxemira é hoje um território militarizado e um foco de insegurança. Mas simboliza também, aos olhos de Roy, as rupturas na sociedade indiana, algo que está sempre presente ao longo das páginas deste empolgante livro. A obra está cheia de detalhes próprios de quem conhece profundamente a questão e isso acaba por nos empolgar.

Há, claro, mesmo no meio da densamente misteriosa Tilottama, espaço para o amor. Dos três homens ligados à história de Caxemira, ela ama Musa Yeswi, o guerrilheiro conhecido como comandante Gulrez. Mas acaba por casar com Naga Hariharan, um jornalista de extrema-esquerda, membro de uma família de diplomatas. Muita da sua história é contada por Biplab Dasgupta, o oficial dos serviços secretos indianos. A história dos três acaba por ser trágica. Roy descreve cenas de violência e de tortura policial feitas no Cinema Sharaz de Srinagar, enquanto no bar continua a publicitar-se coisas que já não estão disponíveis como gelados. Há ali um filme violento que não é publicitado. É tudo isto que faz deste livro uma grande obra.

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