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Selma Uamusse: Não preciso de ter uma etiqueta

Selma Uamusse procurou a sua sonoridade entre as raízes em Moçambique e a sua aprendizagem em Portugal. No Outono, lançará um disco a solo.

Bruno Simão
12 de Agosto de 2016 às 15:00
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Cantou com Rodrigo Leão, Samuel Úria, WrayGunn, ou os congoleses Konono. Começou com gospel, estudou jazz, colaborou com grupos de hip-hop e afrobeat. Cantou com músicos de orquestra e fez peças de teatro. Balançando música com engenharia inicialmente, decidiu que iria cantar a tempo inteiro quando teve a primeira filha. Depois do nascimento da segunda, decidiu que estava na hora de mais um parto e fazer um disco dela, a solo. Sai no Outono. Depois de ter interpretado tantos géneros e tantos autores, Selma Uamusse procurou a sua sonoridade entre as raízes em Moçambique e a sua aprendizagem em Portugal. Tanto na sua vida do dia-a-dia como na sua vida musical, descobriu que é mais feliz sem passaporte e que dispensa ser catalogada.

1. Este álbum teve uma gestação muito longa. Eu sabia que tinha alguma coisa para dizer, mas tinha uma bagagem tão diversificada, tão tresmalhada, às tantas parecia que tinha muitas vozes e foi difícil perceber por onde é que iria. Iria para o que era mais evidente, por onde tinha começado: o gospel? Ou pela soul? Tinha cantado com os WrayGunn tanto tempo - experimentava fazer uma coisa na área do indie rock? Tinha cantado tanto Nina Simone, fazia um disco de tributo à Nina Simone e ficava-me pelo jazz? Aonde é que eu me encontrava?
Até que uma vez, o Alcides Nascimento, filho do Bana, que trabalha no clube B.Leza e me tinha convidado a fazer lá uma programação, à medida que me foi observando em palco - só pelo que via, porque ele perdeu a audição -, disse-me que lhe parecia muito evidente que eu tinha um lado africano muito proeminente: "Já que estás à procura de fazer um disco teu, porque é que não tentas fazer um encontro entre aquilo que és tu, Selma, aqui em Portugal, e aquilo que te vem de Moçambique?" E eu pensei que era mesmo isso.
O meu receio em fazer algo mais africano era não passar algo que fosse falso. Eu vivo em Portugal desde 1988. E não queria passar uma falsa Selma: olha agora, de repente, era muito africana...
Eu não me identificava completamente com o lado do afrobeat e dos novos géneros musicais africanos; também não iria fazer música tradicional africana porque não sabia, mas também não queria fazer música pop africana, kizombas ou kuduros, que não tinham que ver comigo. Pensei que ia ter de, não inventar, porque acho que nós nunca construímos nada de novo, mas reinventar. Comecei a estudar ritmos e instrumentos tradicionais moçambicanos. E começou a surgir uma sonoridade que era eu.

2. Nunca sonhei em ser uma estrela da música ou sequer ser cantora. Para mim, cantar era uma coisa natural, como dançar. Era uma coisa que eu via pessoas na família e amigos fazerem e nem por isso eram músicos ou cantores profissionais.
Um dia, na festa de anos de uma prima minha, conheço um maestro de gospel. No final, ele decide dedicar uma espécie de oração à minha prima e começa a cantar. E eu começo a cantar com ele. Senti-me envolvida por aquele momento um bocadinho mais especial em que ele, no fundo, estava a agradecer a Deus pela vida dela. E ele disse-me: "Cantas tão bem, estou a fazer um grupo de gospel, não gostavas de aparecer nos ensaios?" E eu disse: "Mas eu nem sequer sei cantar." "Não te preocupes, é um grupo de amadores, estou a juntar pessoas que eu sinto que têm potencial para ser trabalhado." Não estava muito convencida, mas fui a um ensaio, fui a dois, e às tantas fazia parte do grupo. Isto foi em Setembro de 1999. Foi uma altura em que os grupos de gospel começaram a ficar na moda e tínhamos muitos convites. Íamos muito à televisão. As pessoas queriam gospel em todo o lado: em casamentos, em campanhas políticas. Desde a campanha do António Costa para presidente da Câmara [de Lisboa] à campanha do Cavaco Silva, até cantar na Festa do Avante, fomos a todos os partidos.
Era um grupo grande com muita malta da minha idade; eu tinha 18 ou 19 anos. E acabo por ficar muito envolvida: pelo lado espiritual, que era um pouco mágico, pelo lado da alegria de cantar e dançar e puxar pelas pessoas.

3. A música que estou a fazer não tem ambição de mostrar virtuosismo ou de mostrar os registos musicais em que sou capaz de cantar, ou que canto muito bem. Estou concentrada na mensagem e no som.
O melhor que podemos tirar da música, pelo menos para mim, é como ela nos emociona: pode ser por causa da letra, pode ser pela maneira como é transmitida, pode ser pela musicalidade, pode ser pelo movimento, pelos lugares por onde nos faz viajar.
Este primeiro disco está muito preso a um som que me leva a Moçambique, mas que me leva também a todos os lugares onde já estive, onde viajei. É um disco muito sobre a minha identidade. Quem sou eu? Não enquanto mulher, não há aqui canções feministas nem canções sobre paixões ou sobre o amor. É um disco que fala sobre quem sou eu no mundo, quem sou eu enquanto pessoa, quem sou eu enquanto cidadã do mundo.

4. Eu tenho uma música no disco que se chama "Song of Africa" e que tem uma pergunta que é: "Does Africa know a song of me?" Digo isto muitas vezes nos concertos, quanto estou a explicar às pessoas a importância desta canção: durante muito tempo, questionei-me se, vivendo cá em Portugal há tanto tempo, as pessoas em África, especificamente em Moçambique, saberiam que uma grande parte do meu coração está lá. E se a música que eu faço chega a elas.
Quando chegava a Moçambique, as pessoas diziam: ah, tem este sotaque, fala desta maneira, ouve determinadas coisas, ah, não é muito moçambicana... E eu tinha esse complexo. Não queria deixar de ser eu própria, mas ao mesmo tempo queria ser aceite. Durante muito tempo, sobretudo na adolescência, debati-me com isto: quão moçambicana é que eu sou? E quão portuguesa? Fiquei muito contente quando, mais recentemente, percebi que não preciso de ter uma etiqueta, tal como não preciso de ter uma etiqueta de género musical. Não preciso de um passaporte. O meu coração pertence tanto a Moçambique como a Portugal e, na realidade, sou muito mais rica por poder ter os dois mundos presentes em mim e de os poder articular.
As minhas filhas falam fluentemente português, francês e flamengo, porque têm um pai belga. Elas viajam muito, conhecem melhor os aviões do que o metro. Elas, estando tripartidas, ainda serão mais ricas. Têm uma avó, directora de um museu [em Moçambique] de um lado do mundo, tem outros avós, também interessantíssimos, do outro lado do mundo [na Bélgica], e no meio desse triângulo - gosto muito de triângulos - ainda têm Portugal, onde vivem e têm muitos amigos. Este é o lado mais bonito da mestiçagem. 

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