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Rodrigo Martins: A pandemia vai criar avanços civilizacionais imensos

Houve um “salto quântico” a nível tecnológico com a vacina para a covid-19 e os ganhos para as nossas vidas são “infinitos”, garante Rodrigo Martins, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que investiga há mais de 30 anos os materiais funcionais para a eletrónica. É um dos grandes nomes mundiais nessa área.
Filipa Lino e Mariline Alves - Fotografia 22 de Janeiro de 2021 às 11:00

Houve um "salto quântico" a nível tecnológico com a vacina para a covid-19 e os ganhos para as nossas vidas são "infinitos", garante Rodrigo Martins, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que investiga há mais de 30 anos os materiais funcionais para a eletrónica. É um dos grandes nomes mundiais nessa área, ocupando vários cargos internacionais. É presidente da Academia Europeia de Ciência e do International Union of Materials Research. E, no início do ano, integrou a direção do Conselho Europeu de Investigação, que atribui bolsas milionárias a projetos de investigação de ponta. Casado com a cientista Elvira Fortunato, admite que é difícil deixar o trabalho fora de casa.

Temos a ideia de que os cientistas vivem num mundo paralelo. É mesmo assim, ou para se ser um bom cientista tem de se ter os pés bem assentes na terra?

No passado, existia a ideia de que o cientista era uma espécie de um deus na terra e que aquilo que dizia era incontestável. Mas no século XXI as pessoas já não aceitam isso. Cada vez mais há a necessidade de um cientista mostrar a evidência de que aquilo que está a fazer vai impactar de forma positiva o conforto e o bem-estar dos cidadãos. O cientista não pode viver numa redoma, tem de saber comunicar.

 

Para si, a ciência é uma espécie de sacerdócio? Ou ao fim do dia despe a bata, apaga a luz e vai para casa ver uma série?

Não é um sacerdócio no sentido de ser uma obrigação, uma cruz que vou carregar para o resto da vida. Sinto gozo quando estou a trabalhar, mas também gosto de ler um bom livro de História, de ver uma boa série e de ouvir música clássica enquanto trabalho. Adoro! Também sou apaixonado por futebol.

 

É casado com a investigadora Elvira Fortunato. Conseguem separar o trabalho da esfera privada?

Não. Não fechamos portas. Provavelmente quem sofre um pouco mais com isso é a nossa filha. Mas ela já tem 23 anos e acho que sente orgulho em nós.

 

Foi muito envolvida no mundo da ciência desde pequena?

Sim. Somos muito solicitados para dar palestras e fazer conferências fora do país e, sempre que possível, levamos a nossa filha. Isso deu-lhe a outra dimensão da ciência. Ela já conhece os EUA, adora o Japão e até fala japonês, já foi à Coreia do Sul. Nisto tudo também há uma dimensão lúdica que nos permite conhecer outras pessoas e culturas. Isso permitiu-lhe conhecer o mundo e perceber o impacto daquilo que fazemos.

 

Sente que os cientistas estão a ser mais valorizados pela população em geral por causa da pandemia?

Acho que já há algum tempo que as pessoas reconhecem o nosso trabalho, mas a pandemia está a ser a prova dos nove. Os políticos já tinham sentido a necessidade de que as leis que redigem fossem baseadas na evidência científica. Nesse aspeto, tiro o chapéu ao Carlos Moedas que, quando foi comissário europeu para a Investigação, Inovação e Ciência, criou o Scientific Advice Mechanism (SAM), um mecanismo de apoio científico à Comissão Europeia, para que as leis promulgadas pelo Parlamento Europeu tenham base em evidência científica. O facto de termos uma vacina em menos de um ano significa que se conseguiu agregar todo o saber da ciência. A vacina da covid-19 não se descobriu porque houve uns iluminados na Inglaterra ou na Alemanha. Houve um trabalho de equipa, de rede, de informação que foi transmitida.

A nossa prosperidade não é saber gerir o que temos hoje, é pensar em avanço o que podemos gerar no futuro e saber quais são os ativadores das mudanças no mundo.

Ouvimos dizer quando surgiram as primeiras vacinas que "foi a ciência que nos salvou". Isso torna os cientistas os novos heróis?

O investigador faz aquilo que gosta, tem paixão. Pode crer que se não fosse assim não se tinha chegado a estes resultados com a vacina. Espero que, para os desafios de futuro, os responsáveis políticos tenham no seu acervo que é importante apoiar a investigação se queremos ter prosperidade. A nossa prosperidade não é saber gerir o que temos hoje, é pensar em avanço o que podemos gerar no futuro e saber quais são os ativadores das mudanças no mundo. O que é que faz com que possamos dar estes saltos quânticos na ciência? Temos três coisas importantes. Primeiro, a inteligência artificial (IA) e o "machine learning", que nos permite fazer coisas rapidamente, sem ser como no passado, a experimentar e errar, porque assim nunca mais chegávamos lá. Depois, descobrimos que os materiais são os ativadores, ou seja, eu consigo conceber e desenhar fora da estrutura normal coisas que são diferentes daquilo que a natureza é capaz de me fornecer. Mas, obviamente, posso mimetizar a natureza ao fazer esse tipo de processos para serem ecossustentáveis. E o terceiro grande pilar é que a ciência tem influência direta no conforto e bem-estar das pessoas. Isto é relevante para tudo.

 

Nunca se investiu tanto dinheiro no combate a uma doença. Além do fim da pandemia, que esperamos que seja em breve, que mais o mundo ganha com as tecnologias desenvolvidas neste período?

Um dos grandes ganhos tecnológicos foi o poder dos modelos matemáticos e da inteligência artificial na prossecução de objetivos. Podemos dar passos quânticos, fazer avanços brutais, firmados em conceitos e modelos da ciência. Esses modelos da ciência são aplicáveis não só na síntese desses materiais [utilizados nas vacinas], como também vão ser utilizados noutras dimensões, como a energia, a segurança, a proteção florestal, o ambiente..., têm aplicações múltiplas. Criou-se uma espécie de conceito disruptivo com ganhos infinitos.

Vai haver um salto brutal na ciência a partir daqui?

Sim. A vida não vai ser igual. Isso vai repercutir-se em tudo. As máquinas vão ajudar-nos a prosperar e a nossa longevidade vai aumentar. Estou convicto de que, depois desta vacina, se vai criar um conjunto de elementos na biomedicina, que vão impactar de forma positiva a nossa vida. Acredito que a pandemia não vai fazer com que haja um retrocesso. Vai antes criar avanços civilizacionais imensos, que vão dar muito mais conforto às pessoas no futuro.

 

A falta de financiamento para bolsas de investigação é sempre uma crítica feita aos sucessivos governos. Como avalia a situação atual?

É necessário haver bolsas de dois tipos. Umas para criadores, inovadores, pessoas que têm paixão pela ciência e que são imprescindíveis, quer na academia, quer nos institutos de investigação. E outras para os seguidores, aqueles que são capazes de aplicar o que os outros criam. Estes dois grupos de investigadores têm de fazer o caminho juntos. Penso que se têm dado alguns avanços, talvez de uma forma incremental, mas sustentada. Depois é necessário que se crie um estatuto de investigador, que não existe. O atual ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, lançou as raízes para que as universidades possam começar a criar quadros de investigação. Mas nada está regulamentado. Ainda existe um grande vazio. E não é só preciso investir nas pessoas, porque para investigarem elas precisam de ter equipamentos, locais de trabalho, e isso é uma falta grave. Não há investimentos nas infraestruturas de investigação há quase 25 anos, desde o ministro Mariano Gago.

Temos de criar pontos de atratividade para os grandes cérebros.

No tempo da troika, tivemos uma fuga de cérebros. Portugal já consegue ser atrativo para os investigadores científicos?

O problema não é as pessoas saírem, é saírem porque não há uma carreira, porque não há perspetiva de futuro. Sou a favor de que recebamos cientistas de fora e que "exportemos" os nossos. Tenho muito orgulho em formar pessoas que estão, por exemplo, no Collège de France, em Paris. Mas também temos algumas pessoas que estiveram lá fora e regressaram ao abrigo do "emprego científico". Acima de tudo, temos de criar em Portugal pontos de atratividade para os grandes cérebros. Estamos no mundo global, queremos não só os melhores portugueses, mas também queremos que os melhores do mundo venham trabalhar para Portugal. E, para atrair essas pessoas, elas precisam de ter as condições para poderem trabalhar.

 

Em que áreas é que Portugal se está a distinguir neste momento?

Os indicadores mostram que temos sido mais notáveis na área dos materiais. Outra área é a inteligência artificial e também na área dos biomateriais e materiais para medicina. Temos institutos de primeira linha em qualquer parte do mundo, a investigar nesses domínios, que são pontos de atração e que impactam positivamente na estratégia e nas metodologias globais. Isso deve deixar-nos a todos orgulhosos.

O que é que está atualmente a investigar?

Continuo a trabalhar nos materiais funcionais, na eletrónica do papel. Mas hoje em dia o grande desafio que tenho, junto com mais 16 investigadores europeus – físicos, biólogos, médicos, pessoas da área dos materiais, da eletrónica, da física e da química –, é tentar desenvolver, desenhar e fazer a arquitetura de um novo material, capaz de "per si" englobar as funções de sensor, atuador e que seja ainda capaz de responder a um estímulo. Esse material não existe. Estamos a chamar-lhe "Steam", para fazer a analogia com as células estaminais. Se me perguntar: mas isso tem aplicação? Não, não tem. Mas quando conseguirmos agregar átomos que, à nanoescala, nos permitam criar novos materiais, estruturas com novas funcionalidades, vai ser espetacular.

 

Foi nomeado para a direção do Conselho Europeu de Investigação, que é considerada a organização, que atribui bolsas milionárias aos investigadores, com o objetivo de apoiar projetos de "investigação de ponta". Qual será a sua função no conselho científico?

Este é o melhor conselho de investigação do mundo, porque não está restrito às fronteiras da Europa. Estão no Conselho Europeu de Investigação pessoas de todo o mundo. É a Europa a pensar no mundo. As ditas bolsas milionárias são atribuídas a grandes talentos, sejam europeus, chineses ou americanos. Aquilo que se pede é que 50% da sua atividade se realize em território europeu. O conselho científico tem de promover junto da academia, essencialmente na Europa, mas com impacto no mundo, que estratégias de investigação devem ser criadas. Nós não intervimos na política científica. Quem intervém na política científica é o Scientific Advice Mechanism (SAM), criado pelo Carlos Moedas. O ERC [sigla em inglês de Conselho Europeu de Investigação] é autónomo. Podemos obviamente influenciar os membros do Parlamento Europeu, em conversas com eles, no sentido de discutirmos uma estratégia científica que tenha impacto. Mas, acima de tudo, são 22 pessoas que fomentam a investigação de centenas de milhares de talentos do mundo.

 

Essa comissão, no fundo, faz uma triagem desses projetos de ponta?

Primeiro faz uma triagem das ideias e depois dos projetos. A nossa intervenção é na definição das comissões que vão fazer esse processo de seleção e na definição das estratégias que consideramos mais relevantes e que devem nortear uma política de investigação com impacto na Europa, mas também no mundo, onde as universidades e os centros de investigação são os interlocutores privilegiados.

A ciência tem influência direta no conforto e bem-estar das pessoas.

Quais são os projetos prioritários?

Os que impactem no bem-estar e conforto das pessoas e que criem conceitos disruptivos. Isto é, que tenham um fator multiplicador nos ganhos esperados e não incrementais. Aprovamos a ideia, o conceito, mas depois é preciso saber como é que essa ideia pode ser convertida em objetos no mercado. A ERC tem as Synergy Grant (SyG), bolsas multimilionárias para equipas. Portugal recebeu no ano passado a primeira bolsa SyG, no valor de 10,5 milhões de euros, com o projeto 4-Oceans, na área das ciências sociais e humanas. É um projeto da investigadora Cristina Brito, professora do departamento de História e investigadora do Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que está a trabalhar com cientistas da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e do Trinity College (Irlanda). A ideia é pura e simplesmente humanista. Não tem nada que ver com engenharia. Tentamos que todas as áreas sejam cobertas de forma igualitária pelas bolsas.

 

O Brexit vai prejudicar a investigação científica?

A médio e longo prazo, sim. O Reino Unido tem uma tradição muito grande na investigação e criou amarras de sustentação da investigação de grande qualidade. É difícil não encontrar nas grandes equipas pessoas ligadas ao Reino Unido. Elas concorrem e ganham, em termos percentuais, um elevado número das tais bolsas milionárias. Penso que a curto prazo o Reino Unido vai querer obviamente continuar a absorver estas verbas e a ter este tipo de parcerias. Independentemente dos conflitos que isso vai criar. É inevitável. Vai haver pessoas na Europa a defender que o bolo deve ser dividido só entre aqueles que fazem parte do "clube". Mas a Europa já o faz com a Suíça e com Israel. A médio prazo, se não houver um sistema de comunicação adequado, vai criar-se uma espécie de antagonismo entre o continente e a ilha. Penso que o grande perdedor vai ser o Reino Unido, mas nós também vamos perder, e de que maneira.

A Nature publicou um artigo no qual afirmava que, no programa de investigação da União Europeia para 2014-2020 [Horizonte 2020], houve diferenças regionais marcantes. As três maiores economias da UE – Alemanha, França e Reino Unido – receberam quase 40% dos fundos. Como se explica esta disparidade?

Existe o "inner ring": esses países, como têm uma visão diferente sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e como têm os tais meios excecionais, quando vão a um processo de avaliação, estão vários degraus acima da média. Portanto, é natural que o impacto da investigação dessas pessoas seja superior ao das que estão no "outer ring". Em Portugal, de alguma forma, estamos nesse "outer ring", porque não temos as grandes infraestruturas e, portanto, o impacto da investigação que fazemos é menor. Fiz um documento e um abaixo-assinado que entreguei no Parlamento Europeu exatamente sobre isso. Defendo que temos de ter o princípio de subsidiariedade, em que o cidadão veja que o dinheiro que estamos a utilizar na investigação tem proveito para todos. Claro que temos de aprovar os melhores projetos. Mas, quando vamos avaliar as pessoas, é necessário ter a dimensão da subsidiariedade, da sua localização.

 

Acredita que a "bazuca" pode ser estruturante para a ciência?

Será um erro sem retorno se não utilizarmos essas verbas para consolidar de forma definitiva a qualidade da investigação de excelência que se faz na Europa. Espero, como disse, que no caso particular do Governo português, haja um investimento na modernização das infraestruturas e na criação de quadros sustentados de investigadores. Devemos apostar em áreas nas quais temos demonstrado que somos bons, porque esses vão ser os motores que nos vão fazer caminhar, conseguir atrair talentos e sermos cada vez melhores. Isso vai ter um efeito de bola de neve, que se vai estender a outras áreas da ciência.

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