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Pedro Cabeleira: Faço cinema porque quero que as pessoas fiquem com pele de galinha

Pedro Cabeleira tem 25 anos e realizou a longa-metragem “Verão Danado”, um filme que recebeu uma menção especial na secção “Cineasti del Presenti” do Festival de Cinema de Locarno. Tem andado um pouco por todo o mundo e este mês vai estar nas salas de cinema da Madeira, Tomar, Vila do Conde e Almada.

Alexandre Azevedo
05 de Janeiro de 2018 às 15:00
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Pedro Cabeleira tem 25 anos e viveu um "Verão danado" em Lisboa depois de terminar o curso na Escola Superior de Cinema e de Teatro. Ele e os amigos viviam dias vadios. Eram então jovens recém-licenciados sem emprego, mas ainda sem grandes preocupações com o futuro. Os dias eram sobre nada e sobre tudo. Ora não acontecia nada, ora acontecia tudo. Noites de satisfação, alguns dias de frustração. A partir desta montanha-russa de emoções, Pedro teve a ideia para a sua primeira longa-metragem. Chama-se mesmo "Verão Danado", é uma ficção, como sublinha, criada por alguém que cresceu fora de Lisboa e que por ela se deslumbrou a determinado momento. O filme, que arrancou com uma ajuda de mil euros dos pais do jovem cineasta e com câmaras emprestadas por amigos, recebeu uma menção especial na secção "Cineasti del Presenti" do Festival de Cinema de Locarno. Tem andado um pouco por todo o mundo e este mês vai andar pelas salas de cinema da Madeira, Tomar, Vila do Conde e Almada.  


Cresci no Entroncamento e, quando o meu irmão nasceu, mudei-me para uma freguesia mesmo ao lado, a Meia Via. Os meus pais queriam ter a sua própria casa e ali era mais fácil - o sonho da maior parte das pessoas do interior é ter uma casa que sintam que é mesmo sua. Mas a minha vida continuou a ser feita no Entroncamento, na escola e nos treinos de futebol no CADE, o Clube Amador de Desportos do Entroncamento. Na altura, eu não era cinéfilo, mas já gostava muito de cinema, e o filme que mais me marcou foi "O Senhor dos Anéis". Fiquei com pele de galinha ao ver aquelas imagens. Estava completamente arrepiado.

Mais tarde, ao visitar uns primos em França, comecei a descobrir um cinema um bocadinho diferente daquele que eu conhecia até então. O namorado da minha prima tinha vários CD com filmes do Tarantino, do Stanley Kubrick, e foi nessa altura que despertei para outros realizadores. Gostava tanto de ver filmes que os meus pais sugeriram que estudasse cinema. Agradeço-lhes por isso.

Fui estudar para a Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora. Estava deserto para viver em Lisboa, queria muito morar sozinho, gostei do ambiente da escola, travei muitas amizades, arranjei logo uma namorada, e no início até me desliguei um bocadinho do Entroncamento. Nunca na vida tinha tido conversas a sério sobre cinema, e ali passava os dias a discutir sobre filmes. E aquela é também a escola dos actores, com pessoal bem-disposto. É de facto uma escola alegre.

Depois de acabar o curso, andei de um lado para outro à procura de um empregozito, acabei por fazer apenas um ou dois trabalhos - trabalhei como chefe de produção num filme de animação do José Manuel Ribeiro e trabalhei no Teatro Turim, a organizar ciclos de cinema. Entretanto, fundei a produtora Videolotion, mas era uma coisa pequena e sobrava-me tempo. Era Verão, estava calor, eu passava a vida na rua, conheci muita gente. Andava de grupo em grupo, de festa em festa, o pessoal estava todo mais ou menos na mesma onda, ninguém tinha propriamente uma grande preocupação com o futuro. Nunca havia planos para o dia seguinte, mas estavam sempre a acontecer coisas. Encontrava-me com amigos no Príncipe Real e de repente o dia era um dia sobre nada, mas tínhamos muita energia e vontade de existir e de viver, e o filme é um bocado sobre isso.


Hoje, a maior parte das pessoas quer sentir-se realizada profissionalmente, mesmo não tendo emprego garantido... 


Era uma vivência um bocado burguesa, sim, mas eu não vivia à rico, era mais uma coisa de vadiagem. Os miúdos do filme não são ricos, estão é numa fase mais vadia. Eu gostei dessa fase, mas não pode ser "ad aeternum". A dada altura, aquele tipo de vida começa a gerar mais frustração do que satisfação.

Na altura, eu já andava com a pancada de fazer um filme com atmosferas algo realistas e autênticas, e a ideia surgiu mais ou menos durante uma conversa que tive com um amigo que estava naquele círculo vicioso de saídas e mais saídas à noite, mas sentia-se angustiado. E desenvolveu uma teoria sobre isso. Ele dizia que durante toda a vida tinha sido "regulado" pelos pais e depois pela escola que, de certa maneira, nos dá uma espécie de colo maternal, com um lado condescendente, e todos sabemos que a vida profissional não tem nada que ver com isso. Depois de acabar a escola, esse meu amigo sentia-se um pouco órfão e havia ali um vazio contínuo que ele preenchia com satisfações mais imediatas. No outro dia, ao acordar, voltava a sentir o mesmo vazio. Vivia numa espécie de montanha-russa, entre picos de euforia e de angústia. O meu filme é um pouco sobre este estado emocional do meu amigo, mas não deixa de ser uma ficção. E é sempre a perspectiva de alguém que vem de fora de Lisboa.

Faço cinema porque quero que as pessoas fiquem com pele de galinha, tal como eu fiquei quando vi "O Senhor dos Anéis". O cinema, enquanto forma de expressão, tem o poder de fazer com que as pessoas viajem até outros universos e essa viagem pode ser de tal forma imersiva que nos faz entrar em contacto com o filme quase de uma forma física. O realizador sueco Roy Andersson, com a "Trilogia do Ser Humano", alterou um pouco a minha percepção sobre o quotidiano, mudou a forma como me comecei a cruzar com os outros. Ele consegue mexer com camadas mais primárias, mais sensoriais e mais primitivas das pessoas.

Do ponto de vista académico, eu não me identificava muito com a metodologia da minha escola, havia uma certa imposição na forma de ver o cinema, mas tive cadeiras que me marcaram, uma delas foi Sistemas de Produção de Filmes. O professor dizia que cada filme tem o seu próprio modelo de produção e eu até me baseei um pouco nessa ideia para a minha longa-metragem. Em Portugal, não podemos enquadrar-nos em modelos de produção clássicos porque há uma série de necessidades e uma série de fragilidades. Mas também não podemos ter medo de fazer algo diferente. A forma mais inteligente de fazer um filme é não tentar recriar um método que não é nosso, ou não pensar em formas estanques de fazer as coisas, a produção pode ser moldável e elástica.

No caso do meu filme, foi uma produção de desenrasca, sim. Os meus pais deram-me mil euros, e tudo aquilo que puderam fazer por mim eles fizeram. Acrescentei os 600 euros que tinha ganho com o filme de animação, um amigo emprestou-me uma Canon 7D, outro emprestou-me outra câmara, as objectivas eram de um professor da escola, de outros amigos e de uma ex-namorada. E utilizei projectores antigos da escola, que estavam parados quase como peças de museu, mas ainda funcionavam... Durante meses, o chão do meu quarto minúsculo estava cheio de material.


O grande problema do pessoal da minha idade tem muito que ver com o facto de não estar a encontrar o seu lugar no mundo. 


A equipa do filme era formada por pessoal da escola, até mesmo os actores, filmei em casa de amigos, em festas e, à medida que ia filmando as cenas, o elenco aumentava. Quando chego ao Jamaica (discoteca), já montes de gente tinha ouvido falar do projecto e queria participar!

Com uma gestão apertada, conseguimos filmar, mas foi ingenuidade minha pensar que podia fazer a pós-produção com pouco dinheiro. Até então, não acreditava muito na possibilidade de ganhar concursos a nível institucional e por isso nunca quis concorrer a nada, mas convenceram-me a fazê-lo. Concorri à Gulbenkian, recebi 2.500 euros, e depois veio o apoio do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), balúrdios de dinheiro, 79 mil euros! Nessa altura, eu ainda andava a tentar juntar dinheiro para o filme… e de repente, apareceu. Não estava a contar com isso, de todo.

Quero continuar a fazer filmes, que é aquilo que eu realmente gosto de fazer. Acho que o grande problema do pessoal da minha idade tem muito que ver com o facto de não estar a encontrar o seu lugar no mundo, tem tudo que ver com expectativas. O meu avô tinha oito ou nove anos quando aprendeu a ser sapateiro, e essa era a sua expectativa para a vida toda. Na verdade, ele depois emigrou para França. A sua preocupação não era fazer um bom filme, a sua preocupação era meter os quatro filhos a comer. A preocupação dos meus pais já era outra. Eles são professores primários. Na altura, aquele curso tinha emprego garantido. Mas, se calhar, a minha mãe gostaria de ter feito outra coisa. Hoje, a maior parte das pessoas quer sentir-se realizada profissionalmente, mesmo não tendo emprego garantido... 


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