Notícia
O berlinense do ano
O lugar é despido, os tectos são subidos, o mobiliário é simples. Ainda assim, envolve-nos uma austeridade tranquila nesta casa de acolhimento temporário de refugiados em Berlim. À frente da “Casa", Philipp Bertrams.
Recebe-nos no átrio da ala central do enorme edifício construído pelos nazis em forma de "U" durante a Segunda Guerra Mundial, mais tarde ocupado pelas forças britânicas.
No topo das largas escadarias de pedra branca, junto a uma das muitas janelas altas batidas pelo sol frio de Inverno, está sentado um jovem casal debruçado sobre um carrinho de bebé. Descem dois homens adultos que saem para o pátio, talvez para dali saírem para rua e percorrerem a cidade numa das centenas de bicicletas que decoram a entrada. Pouco depois, chega um miúdo com ar reguila que atravessa o hall a correr, entra num corredor e nos deixa o eco da porta a bater.
O lugar é despido, os tectos são subidos, o mobiliário é simples e parece ser menos do que o estritamente necessário. Nada aqui chega a remeter para conforto. Ainda assim, envolve-nos uma austeridade tranquila, e a tranquilidade neste lugar sente-se reconfortante.
Inicialmente, diz-nos, pensou-se que seria razoável alojar aqui 500 pessoas, mas três dias depois, nesse Verão que transformou a paisagem humana da cidade, eram já 600.
Hoje, ano e meio volvido, após algumas obras e a ocupação de uma outra ala, a "Casa", como insiste em chamar-lhe a cada frase que serenamente compõe, tem 400 quartos e acolhe 1.100 pessoas. Quase metade são menores, mais de duas centenas são crianças com menos de seis anos, quase todos estão neste momento fora, nas "wellcome classes" que as escolas circundantes abriram.
Mãos pintadas em cores alegres na parede de um corredor mais ao fundo anunciam que os mais pequeninos estão aqui mesmo, na creche improvisada para criar igualmente condições para as mães saírem e seguirem também elas o seu caminho, seguindo aulas de alemão. "Os homens saem de manhã e chegam à noite, mas as mulheres ficavam todo o dia com as crianças. Isso agora mudou um pouco, mas temos aulas também cá na Casa".
Aqui estão todas as mulheres grávidas chegadas a Berlim na expectativa de receber o estatuto de refugiado. Já nasceram aqui vários bebés. São três dezenas as que neste momento esperam, em breve, dar à luz.
Aqui, ainda no piso térreo, há uma enfermaria, um gabinete de psicologia, uma consulta semanal de planeamento familiar, regularmente habitados por enfermeiros, médicos, psicólogos, dentistas capazes de tentar ajudar em árabe, em turco, em russo.
Há uma cozinha onde se aquece a comida que vem preparada de fora, uma lavandaria com dez máquinas de lavar e outras tantas de secar presenteadas por um vizinho generoso e abastado, e uma sala de informática equipada com algumas dezenas dos 25 mil Chromebooks oferecidos pela Google no âmbito do projecto "Reconnect" lançado na Alemanha.
"Isto foi maravilhoso. As pessoas precisam de horizontes. Não podem passar os dias à espera". Com Internet e computadores, passaram a poder falar com as famílias que deixaram para trás, passaram a poder ligar-se umas às outras em grupos no Facebook, passou a ser mais fácil procurar casa e trabalho lá fora. "Muitos chegam sem papéis, sem licenciaturas, sem terem como mostrar que sabem fazer coisas", diz-nos, antes de nos contar uma "história boa": "Tivemos dois sírios e um iraquiano que deram aqui cursos de iniciação informática e que estão hoje a trabalhar em empresas alemãs".
Subimos as escadarias para chegar a um grande salão onde antes se reuniam os vereadores e hoje se juntam semanalmente às sextas-feiras o director da "Casa" e os habitantes de turno responsáveis por cada sector para falar dos problemas e de como se pode melhorar a convivência.
Mesmo ao lado, junto às janelas, há um cantinho com sofás e uma mesa de pingue-pongue doada pela actriz norte-americana Susan Sarandon. Ao fundo, duas portas abrem-se para duas pequenas salas reservadas para a oração - os turnos são organizados por quem cá mora e não se permite a vinda de religiosos de fora.
A maioria veio da Síria, do Afeganistão e da Eritreia, mas há também quem tenha deixado para trás horrores vividos no Iraque, no Sudão, no Daguestão. Neste momento, há gente de 17 nacionalidades. Há muçulmanos sunitas e xiitas, há católicos, há judeus - "há seres humanos", atalha, sempre no mesmo registo sereno, quase tímido.
Há conflitos? Elementos radicais? Sim, já houve denúncias e detenções, inclusive de um general de Assad - mas fora da Casa. "Por vezes, temos discussões e vozes exaltadas, mas nunca tivemos problemas graves; nunca foi preciso chamar alguém de fora", regozija-se, referindo-se à polícia que está à entrada do edifício. "Queremos também mostrar que podemos viver todos juntos com todas as nossas diferenças".
Aqui trabalham 70 funcionários, são cerca de 250 os habitantes da "Casa" que participam nas tarefas diárias, de limpeza por exemplo, e há 200 voluntários. Alguns vêm apenas para conversar, mas há também os que tomam nota de quem vem às refeições e que tenta saber do paradeiro de quem não aparece.
Como num hotel, cada um sai e entra quando quer, mas tem um cartão para registar os movimentos.
A "Casa" governa-se com menos de 30 euros diários por pessoa pago pelos governos local e federal, e muitos, muitos donativos privados. "Colchões, camas, roupas, duas mil bicicletas … estamos no centro de Berlim e temos tido uma vizinhança incrível", conta-nos.
Enquanto esperam pela decisão das autoridades, os requerentes de asilo recebem em média 130 euros por mês, podendo trabalhar até 80 horas por mês.
"Não tem sido fácil, mas queremos oferecer mais do que uma cama, uma mesa e um cacifo. Queremos que quem aqui vive tenha escola, futebol, piscina, cinema, a possibilidade de ir jantar fora a um restaurante. Esses 130 euros não são muito, mas dão para pequenos extras".
Estamos mais perto da hora do almoço e há mais gente no vaivém das escadarias quando as voltamos a descer. Quem passa, sorri-nos ostensivamente. Agradece com o rosto curvado e as mãos juntas ao peito. Talvez pressintam que somos jornalistas. Não nos devem agradecimento. Tenta-se o diálogo. Não nos cruzamos com quem vá além de uma ou duas palavras em inglês. Uma mulher de rosto vincado como argila no deserto fala e gesticula sem parar. Entendemo-nos num abraço.
Esta é, avisa-nos amiúde, a melhor casa de acolhimento temporário de refugiados em Berlim, onde ainda há seis mil pessoas acampadas em ginásios.
E ele, quem é?
"Tenho 25 anos. Há cinco, comecei a trabalhar como voluntário com refugiados da Eritreia. Mas, no Verão passado, quando chegavam mais de mil refugiados por dia a Berlim, envolvi-me mais activamente com a 'Arbeiter Samariter-Bund'", uma ONG samaritana. "Era preciso encontrar alojamento para estas pessoas". Chama-se Philipp Bertrams e, em 14 de Agosto de 2015, veio para aqui e pouco daqui saiu. Abandonou o curso de Economia. É o chefe do Departamento de voluntariado, coordenação e integração de um espaço por onde, desde então e até hoje, penúltimo dia de Novembro de 2016, passaram 2.700 pessoas. Este é o seu último dia aqui. Acaba de se eleger deputado para o parlamento de Berlim pelo "Die Linke". Foi o "Berlinense do Ano", descobre-se mais tarde, título atribuído pelo "Berliner Morgenpost". Não surpreende.
Estamos de saída. Para trás fica o edifício da antiga câmara de Wilmersdorf. Estava devoluto desde 2001, quando o "distrito" foi fundido com o de Charlottenburg. Ambos tinham, no início do século passado, a maior concentração de judeus. Foi num mercado de Natal deste distrito que morreram neste Dezembro 12 pessoas.
No topo das largas escadarias de pedra branca, junto a uma das muitas janelas altas batidas pelo sol frio de Inverno, está sentado um jovem casal debruçado sobre um carrinho de bebé. Descem dois homens adultos que saem para o pátio, talvez para dali saírem para rua e percorrerem a cidade numa das centenas de bicicletas que decoram a entrada. Pouco depois, chega um miúdo com ar reguila que atravessa o hall a correr, entra num corredor e nos deixa o eco da porta a bater.
Inicialmente, diz-nos, pensou-se que seria razoável alojar aqui 500 pessoas, mas três dias depois, nesse Verão que transformou a paisagem humana da cidade, eram já 600.
Hoje, ano e meio volvido, após algumas obras e a ocupação de uma outra ala, a "Casa", como insiste em chamar-lhe a cada frase que serenamente compõe, tem 400 quartos e acolhe 1.100 pessoas. Quase metade são menores, mais de duas centenas são crianças com menos de seis anos, quase todos estão neste momento fora, nas "wellcome classes" que as escolas circundantes abriram.
Mãos pintadas em cores alegres na parede de um corredor mais ao fundo anunciam que os mais pequeninos estão aqui mesmo, na creche improvisada para criar igualmente condições para as mães saírem e seguirem também elas o seu caminho, seguindo aulas de alemão. "Os homens saem de manhã e chegam à noite, mas as mulheres ficavam todo o dia com as crianças. Isso agora mudou um pouco, mas temos aulas também cá na Casa".
Aqui estão todas as mulheres grávidas chegadas a Berlim na expectativa de receber o estatuto de refugiado. Já nasceram aqui vários bebés. São três dezenas as que neste momento esperam, em breve, dar à luz.
Aqui, ainda no piso térreo, há uma enfermaria, um gabinete de psicologia, uma consulta semanal de planeamento familiar, regularmente habitados por enfermeiros, médicos, psicólogos, dentistas capazes de tentar ajudar em árabe, em turco, em russo.
Há uma cozinha onde se aquece a comida que vem preparada de fora, uma lavandaria com dez máquinas de lavar e outras tantas de secar presenteadas por um vizinho generoso e abastado, e uma sala de informática equipada com algumas dezenas dos 25 mil Chromebooks oferecidos pela Google no âmbito do projecto "Reconnect" lançado na Alemanha.
"Isto foi maravilhoso. As pessoas precisam de horizontes. Não podem passar os dias à espera". Com Internet e computadores, passaram a poder falar com as famílias que deixaram para trás, passaram a poder ligar-se umas às outras em grupos no Facebook, passou a ser mais fácil procurar casa e trabalho lá fora. "Muitos chegam sem papéis, sem licenciaturas, sem terem como mostrar que sabem fazer coisas", diz-nos, antes de nos contar uma "história boa": "Tivemos dois sírios e um iraquiano que deram aqui cursos de iniciação informática e que estão hoje a trabalhar em empresas alemãs".
Subimos as escadarias para chegar a um grande salão onde antes se reuniam os vereadores e hoje se juntam semanalmente às sextas-feiras o director da "Casa" e os habitantes de turno responsáveis por cada sector para falar dos problemas e de como se pode melhorar a convivência.
Mesmo ao lado, junto às janelas, há um cantinho com sofás e uma mesa de pingue-pongue doada pela actriz norte-americana Susan Sarandon. Ao fundo, duas portas abrem-se para duas pequenas salas reservadas para a oração - os turnos são organizados por quem cá mora e não se permite a vinda de religiosos de fora.
A maioria veio da Síria, do Afeganistão e da Eritreia, mas há também quem tenha deixado para trás horrores vividos no Iraque, no Sudão, no Daguestão. Neste momento, há gente de 17 nacionalidades. Há muçulmanos sunitas e xiitas, há católicos, há judeus - "há seres humanos", atalha, sempre no mesmo registo sereno, quase tímido.
Há conflitos? Elementos radicais? Sim, já houve denúncias e detenções, inclusive de um general de Assad - mas fora da Casa. "Por vezes, temos discussões e vozes exaltadas, mas nunca tivemos problemas graves; nunca foi preciso chamar alguém de fora", regozija-se, referindo-se à polícia que está à entrada do edifício. "Queremos também mostrar que podemos viver todos juntos com todas as nossas diferenças".
Aqui trabalham 70 funcionários, são cerca de 250 os habitantes da "Casa" que participam nas tarefas diárias, de limpeza por exemplo, e há 200 voluntários. Alguns vêm apenas para conversar, mas há também os que tomam nota de quem vem às refeições e que tenta saber do paradeiro de quem não aparece.
Como num hotel, cada um sai e entra quando quer, mas tem um cartão para registar os movimentos.
A "Casa" governa-se com menos de 30 euros diários por pessoa pago pelos governos local e federal, e muitos, muitos donativos privados. "Colchões, camas, roupas, duas mil bicicletas … estamos no centro de Berlim e temos tido uma vizinhança incrível", conta-nos.
Enquanto esperam pela decisão das autoridades, os requerentes de asilo recebem em média 130 euros por mês, podendo trabalhar até 80 horas por mês.
"Não tem sido fácil, mas queremos oferecer mais do que uma cama, uma mesa e um cacifo. Queremos que quem aqui vive tenha escola, futebol, piscina, cinema, a possibilidade de ir jantar fora a um restaurante. Esses 130 euros não são muito, mas dão para pequenos extras".
Estamos mais perto da hora do almoço e há mais gente no vaivém das escadarias quando as voltamos a descer. Quem passa, sorri-nos ostensivamente. Agradece com o rosto curvado e as mãos juntas ao peito. Talvez pressintam que somos jornalistas. Não nos devem agradecimento. Tenta-se o diálogo. Não nos cruzamos com quem vá além de uma ou duas palavras em inglês. Uma mulher de rosto vincado como argila no deserto fala e gesticula sem parar. Entendemo-nos num abraço.
Esta é, avisa-nos amiúde, a melhor casa de acolhimento temporário de refugiados em Berlim, onde ainda há seis mil pessoas acampadas em ginásios.
E ele, quem é?
"Tenho 25 anos. Há cinco, comecei a trabalhar como voluntário com refugiados da Eritreia. Mas, no Verão passado, quando chegavam mais de mil refugiados por dia a Berlim, envolvi-me mais activamente com a 'Arbeiter Samariter-Bund'", uma ONG samaritana. "Era preciso encontrar alojamento para estas pessoas". Chama-se Philipp Bertrams e, em 14 de Agosto de 2015, veio para aqui e pouco daqui saiu. Abandonou o curso de Economia. É o chefe do Departamento de voluntariado, coordenação e integração de um espaço por onde, desde então e até hoje, penúltimo dia de Novembro de 2016, passaram 2.700 pessoas. Este é o seu último dia aqui. Acaba de se eleger deputado para o parlamento de Berlim pelo "Die Linke". Foi o "Berlinense do Ano", descobre-se mais tarde, título atribuído pelo "Berliner Morgenpost". Não surpreende.
Estamos de saída. Para trás fica o edifício da antiga câmara de Wilmersdorf. Estava devoluto desde 2001, quando o "distrito" foi fundido com o de Charlottenburg. Ambos tinham, no início do século passado, a maior concentração de judeus. Foi num mercado de Natal deste distrito que morreram neste Dezembro 12 pessoas.