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Nuno Saraiva: "Faço parte da Mouraria, como uma pedra ou uma árvore"

Nuno Saraiva é um dos ilustradores e autores de banda desenhada mais conhecidos da sua geração. Nos últimos anos, encontrou um lugar para si e o seu traço nas ruas da Mouraria, quando ainda não havia turistas, nem sequer lisboetas de outros lugares, e foi na Mouraria que conversámos.

Miguel Baltazar
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Trabalhou muito em jornais e revistas, antes da crise do papel. Fez livros muito jovem quando ainda nem sabia se podia viver de desenhar, com ou sem crise económica. Começou a dar aulas quando era ainda quase tão novo quanto os alunos. A ilustração é uma linguagem que aplica todos os dias, dentro e fora do ateliê. É uma linguagem para dizer o que vê mas, mais do que isso, para contar as paixões que o movem. Nuno Saraiva continua a coleccionar centenas de figuras, do passado, do presente e que, eventualmente, nos servirão de futuro: uma espécie de álbum de memória da diversidade dos lisboetas.


1. Os meus desenhos são reflexos de vivências. E são como peças de puzzle que vou juntando para fazer jogos diferentes. Vou pegando em particularidades de várias pessoas e acrescento-as em jeito de caricatura. E as coisas encaixam. E, mesmo quando não encaixam, também se tornam interessantes. O velho taberneiro... A miúda muito bonita que, de repente, veio viver para o bairro e que não fala com ninguém, mas que toda a gente fica a olhar para ela: vou buscar-lhe as pernas, depois acrescento-lhe a cabeça de outra pessoa... Os meus desenhos são "frankensteins".

2. As coisas estão todas ligadas e é tudo uma tapeçaria. Eu sou um filho de Almada, toda a minha família - materna e paterna - é de Almada, mesmo da construção de Almada, desde os finais do século XIX. Sempre tive muito orgulho nisso mas, na realidade, acidentalmente, nasci na Mouraria. Os meus pais não quiseram que nascesse no Hospital de Almada e também não fui nascer à Maternidade Alfredo da Costa. Acabei por vir nascer à Clínica de São Cristóvão, aqui na Mouraria. Então, sempre que eu fazia asneiras em casa, brincavam comigo e diziam: "Vê-se mesmo que nasceu na Mouraria..." Eu não percebia aquilo, mas a frase perseguiu-me ao longo da vida.

Quando entrei em Belas-Artes, deixei de viver em Almada. A pretexto de ter um ateliê - uma treta, o que eu queria era estar com as namoradas -, deixei a casa dos meus pais e dividia um ateliê-casa com amigos na zona da Graça. Depois fui viver para o Castelo, depois para Alfama, mas sempre um bocadinho a pairar aqui à volta da Mouraria. Sempre que passava pela Mouraria, sentia qualquer coisa. Até que, quando comecei a passar mais tempo no bairro e me envolvi na Associação Renovar a Mouraria, estranhamente senti-me em casa. Senti que este bairro era minha pertença e que eu fazia parte dele tal como uma pedra ou uma árvore.

3. Naquela altura, a Mouraria era um gueto, uma zona escura, e não era acarinhada pelos lisboetas, apesar de ser um bairro do centro da cidade, um bairro histórico, um bairro epicêntrico, que acaba por ser uma espécie de cordão umbilical do Castelo: foi aqui que tudo nasceu.

Curiosamente, constatei que foi sempre considerado um gueto. Quando esta cidade era uma cidade árabe, a zona era habitada pelos cristãos tolerados e judeus tolerados. Quando aqui chegaram os cruzados, transformou-se então numa "mouraria", uma espécie de comuna moura, também ela tolerada. O que é muito interessante é que, desde o D. Afonso Henriques até ao D. Manuel, isto era uma espécie de pequena cidadela, com a sua própria jurisdição, a sua prisão, os seus guardas mouros, duas mesquitas... Era uma cidade dentro da cidade. Depois, por imposição do Vaticano e dos Reis Católicos de Espanha, isto foi arrasado para dar lugar a um povoado já não autónomo, de cristãos novos árabes e judeus. Muitas coisas foram-se perdendo, foram-se fazendo misturas, e esse também é um dos aspectos mais interessantes deste espaço: foi sempre um espaço de misturas, de multietnicidade, um espaço multilingue.

Apercebi-me de que este bairro carecia um pouco dessa investigação histórica e de uma procura de desenhar rostos do passado.

4. Muitos colegas meus da ilustração e da banda desenhada, quando procuravam representar sítios como este, como a Mouraria, iam buscar a imagem negativa da Mouraria. Porque ela lá estava. Estava à vista de todos. Estava à nossa frente: a prostituição, as ruas degradadas, as pessoas a viverem em péssimas condições, lixo pelas ruas, casas sem portas, a droga, tráfico a céu aberto, consumo a céu aberto. Era com esse rosto que a Mouraria era representada, tanto em fotografia como em desenho. Eu procurei dar a volta a isso e desenhar a alegria, o amor, as paixões, a festa, os arraiais.

Esse trabalho foi uma espécie de preliminar para o trabalho de ilustração que tenho feito para as Festas de Lisboa. Este foi o quarto ano que fiz as Festas de Lisboa. Tenho centenas de pequenos bonequinhos.

5. Desde criança que me apaixonei pela História: pela Antiguidade, pelas grandes civilizações... Houve uma altura em que até tinha a alcunha do "Egípcio".

O meu primeiro livro, que foi editado em 88, era uma banda desenhada longa sobre um navegador português, o Bartolomeu Dias. No livro, tentava romper com aquela lógica do herói nacional, que se fazia muito nos anos 80. Nessa época, publicava-se muito sobre os mitos e os heróis nacionais: os Vascos da Gama, os Viriatos...

Fiz alguma investigação sobre a vida do Bartolomeu Dias e fui-me apercebendo de que, na verdade, ele era um anti-herói. Era um marinheiro. Faz aquela viagem toda em torno do continente africano, praticamente fez a papinha toda ao Vasco da Gama, mas depois os seus homens fizeram um motim e ele teve de voltar para trás. Passou o Cabo da Boa Esperança duas vezes: para lá e para cá. Voltou com as cartas. Viveu mal e morreu mal, mas foi em parte responsável pelos feitos da nação.

Foi esse o meu primeiro livro. Depois, se calhar, tornei-me um bocadinho mais punk. Depois deixei de ser punk, e passei a ser outra coisa. Uma coisa é certa: em tudo, procurei sempre ser do contra e ser crítico. Sempre procurei dar a minha interpretação das coisas, mesmo que errada.

6. O amor - ou as paixões - faz parte do ADN do meu tipo de desenho. Eu desenho sempre apaixonado, muito apaixonado. Não necessariamente por um rosto ou por um pessoa concreta ou por um corpo, mas desenho apaixonado por um motivo, por uma situação, por um momento. Sou muito levado pelas paixões. E tenho sempre paixões novas. Sempre. Mesmo que me faltem as paixões do meu tamanho, basta olhar para a minha filha, todos os dias, que vejo uma paixão nova. Cada dia que passa ela tem qualquer coisa de novo para me dar.


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