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Miguel Moreira: O luxo de hoje é o tempo

O luxo de hoje é escolher ter tempo. Não ir a coisas. Não é ter jóias e carros. É ter ócio, diz o actor Miguel Moreira. Este fim-de-semana, no CCB, ele é Dante Gabriel Rossetti, o pintor e poeta do grupo dos Pré-Rafaelitas, em “Adoecer”, a adaptação do romance de Hélia Correia.

Bruno Simão
15 de Setembro de 2017 às 14:00
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Acreditou sempre no teatro como uma arte do limite, do actor como um atleta a testar um corpo, da imaginação como um lugar de excesso. Por vezes, duvidou de tudo. E depois voltou a acreditar. Tem 44 anos. 20 anos de criador com a sua companhia, Útero, e mais ainda como actor. Este fim-de-semana, no CCB, ele é Dante Gabriel Rossetti, o pintor e poeta do grupo dos Pré-Rafaelitas, em "Adoecer", a adaptação do romance de Hélia Correia. A história gira em torno de Elizabeth Siddal, modelo dos Pré-Rafaelitas, e da sua relação com Rossetti. Para Miguel Moreira, é um regresso ao seu entusiasmo pelo trabalho do actor, um regresso ao Teatro O Bando, onde aprendeu que a palavra podia ser discutida até à náusea e à revelação, e um regresso a um tempo em que era mais jovem e vida e arte se misturavam com a força da imperfeição.  

 

1.
Como espectador, sempre me interessei por coisas que não compreendia e, portanto, tentei fazer esse percurso também como artista. Sempre vi a arte como um sítio da incompreensão.

As pessoas saem de uma peça e dizem: não percebi nada. Ou: percebi. Não me interessa tanto perceber. O que me interessa é estar ali naquela experiência: às vezes sai-se vazio, outras vezes mais cheio; às vezes, passado três meses a pessoa não se lembra de nada, outras vezes há peças que nos ficam para sempre, que alteram o nosso caminho. A arte tem essa pulsação.


2.
Conhecia alguns quadros dos Pré-Rafaelitas, mas não os tinha descoberto com esta profundidade antes desta peça. Eles são uma passagem [na história da arte]. Uma nuvem. São esteticamente estranhos: o que é aquilo? Por que é que aquilo é assim? Tinham um certo misticismo. E uma maneira de viver libertina. Precisavam das sensações para criar. Viviam numa sociedade onde havia uma certa opulência, uma sociedade que queria manter um certo "status" que estava a desaparecer.


Era uma sociedade já um bocadinho decadente. Uma sociedade com tédio, da sua maneira de viver tão organizada. E talvez os Pré-Rafaelitas estivessem a reagir a isso, com a energia da juventude. "Viveremos em absoluto menosprezo pela convenção social", digo a dada altura na peça. É um manifesto. Eles assumiam um lado de provocação social: sabiam que iam agitar e chocar a sociedade. Começo o espectáculo a dizer: "Um escândalo que nos liberte da mediania."

Se virmos o tédio como ausência de risco, acho que podemos comparar esse tempo ao nosso. Acho que as pessoas, hoje em dia, têm uma grande dificuldade em arriscar. Querem manter uma aparência, sempre. Nós somos constantemente convidados a manter uma aparência. As redes sociais ainda nos obrigam mais a ter um critério de aparência. Mas é um tédio fazer tudo bem feito. Ou estar todos os dias à mesma hora no mesmo sítio. Ou não pensar sobre nada de novo. Ou ter sempre os mesmos amigos.

Os anos 90, quando comecei a fazer teatro, tinham muito dessa grande mistura entre vida real e criação que os Pré-Rafaelitas viviam. Não tinham o puritanismo deste novo século. Foi uma década mais livre. Os anos 90 eram mais explosivos. Ia herdar-se ainda um bocadinho aos anos 60 e havia uma certa loucura de estar. Hoje vejo o tempo mais organizado: a organização da carreira, e muitos outros sinais de uma sociedade onde tens de desempenhar um papel que te deram e, mesmo que quisesses outro papel, é como o encenador no teatro, dá-te um papel e tu tens de o fazer o melhor possível.

Falta uma certa desordem. Não uma desordem como no Parlamento, onde parece que as pessoas se insultam, mas uma certa desordem de ideias, onde cada um fala com o seu tempo. Esse lado da militância da discussão, aprendi-o no Bando nos anos 90. Tínhamos reuniões de 48 horas, com paragens de almoço e jantar. Cada um dizia na cara do outro o que pensava, mas também sabia que o outro poderia fazer o mesmo. E não era para nos separar, era para crescermos juntos. Por vezes, era duro. Esse acto democrático de opinar e de ouvir uma opinião contrária parece-me cada vez mais importante.

3.
A arte tem de ser um sítio da militância e da urgência. E quando uma pessoa deixa de sentir isso deve abandoná-la. Como actor, estive quatro anos sem representar e não tive saudades. Estava entediado com aquilo: com o que esperavam que eu fosse.
O actor é muito diferente do criador. O actor é mais como um desportista: esperam sempre de ti. No futebol, estão à espera que jogues aquilo. Sempre que não jogas aquilo, as pessoas desiludem-se contigo.

Depois, quando regressei, regressei com vontade e acho que se notou a diferença. As pessoas dizem-me muito isso. Por isso, aconselho sempre as pessoas a pararem ou a perceber por que é que estão a parar.

O luxo de hoje é o tempo. Escolher ter tempo. Não ir a coisas. Ter ócio. Fazer só o que queremos. Já há tanta coisa que a gente não quer, tanto sacrifício. Esse é que é o novo luxo. Deixou de ser jóias e carros. O novo luxo é uma pessoa ter o tempo que quer, quando quer.

Isto também se prende com os Pré-Rafaelitas e com aquela época: eles tinham outro tempo e usavam-no de uma forma bastante criativa e até obsessiva. É uma época que não irá repetir-se, agora que temos os automóveis, a velocidade, os aviões a toda a hora, 10 euros daqui e para ali, não vamos mais ficar quietos no mesmo sítio. Mas podemos deixar-nos conquistar pela influência dessa época. Eu, agora, quando tenho férias, não quero sair do mesmo sítio. E, mesmo como artista, não quero andar a fazer residências em muitos sítios. Experimento, mas no mesmo sítio, onde possa construir algo.

A vida é uma. É curta. Passa rápido. Com 44, já dá para ver: é fulminante. Uma pessoa tem de aproveitar o mais possível enquanto pode.

4.
Há um lado feminista nesta história. Os amigos do Dante [Gabriel Rossetti] acham que aquela mulher, a Lizzie [Elizabeth Siddal], é um empecilho. Muitas biografias [históricas] quase não a referem.

Numa das cenas da peça, o Dante diz: "Ela tem génio." No fundo, está a dizer que ele é muito bom mas ela: ela é extraordinária. Ela tem um estado delirante total. Ela, no fundo, adoece do extremo a que leva performaticamente o seu corpo ao entrar na arte. A paixão imensa que ela tem é pela arte. E leva-a até ao limite.

A partir de certa altura, ele teme o êxito dela. E ele quer ter outra vida. Precisa de ter outras mulheres, de pintá-las, logo mexer nelas. Nesse sentido, trai-a. Ele precisa de criar e, para isso, sai de casa. Vai à procura de estímulos cá fora: nos amigos, nas mulheres. Ela não. Ela fica. Ela enlouquece lá dentro. Adoece.

Às vezes, dou por mim a chamar à peça "anoitecer", não sei porquê. Digo muitas vezes [em palco]: a noite. E gosto da noite.

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