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Mariana Pinto dos Santos: A vida das pessoas é mais desarrumada do que aquilo que contam dela

Mariana Pinto dos Santos é a curadora da exposição “José de Almeida Negreiros: uma maneira de ser moderno”, que pode ser vista da Fundação Calouste Gulbenkian até 5 de Junho.

Bruno Simão
12 de Maio de 2017 às 15:00
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Almada Negreiros era pintor. Também escrevia e proferia conferências, que eram provocações, que eram performances, que eram livros. Usava o humor. Pensou sobre teatro e cinema; fez bailados. Concebeu vitrais, tapeçarias, cartazes publicitários. Fez filmes caseiros. Tudo parecia fazer parte de um mesmo acto de estar vivo e a exposição na Fundação Calouste Gulbenkian - "José de Almeida Negreiros: uma maneira de ser moderno", que pode ser vista até 5 de Junho - oferece possibilidades e diálogos para olhar para a obra de um artista que pensávamos que já conhecíamos. Mariana Pinto dos Santos, a curadora, não quis criar um discurso arrumado, mas antes um percurso por Almada que se desdobra por todas as linguagens em que ele se desdobrou e pelos temas a que voltou ao longo da sua vida. E um percurso - como uma viagem - é para ser refeito, de cada vez reparando num apontamento novo.


1. Sempre que nos debruçamos ao pormenor sobre a obra de um artista, as ideias feitas sobre uma série de conceitos desfazem-se, ou ficam postas em causa, ou ficam um bocadinho bambas. Debruçarmo-nos sobre percursos individuais é importante, não para fazer a biografia, mas para perceber como a singularidade de uma obra pode trazer novas perspectivas sobre a história da arte.

Esta exposição tenta trazer trabalhos do Almada Negreiros que não eram tão conhecidos, muitos não estiveram em exposições anteriores do artista, por um lado por alguns só se terem descoberto recentemente, por outro porque não correspondiam ao que era entendido como o cânone do artista, que procurava aproximá-lo de uma narrativa dominante.

Essa narrativa dominante, na história da arte, tenta sempre ver se os artistas locais estão a fazer algo parecido com aquilo que é feito no que é tido como o centro: um centro, em relação ao qual países ditos periféricos como Portugal são vistos como inevitavelmente atrasados: como se precisassem sempre de correr, a tentar apanhá-lo, e nunca lá chegassem, ficando sempre aquém.


Almada Negreiros diz que nenhuma colectividade pode abafar o indivíduo nem nenhum indivíduo pode subsistir sem estar inserido numa colectividade.


Esta narrativa é, ela própria, moderna - é uma narrativa do século XX, que vê a história sempre caminhando para um progresso - e já tem sido muito contestada. No outro dia, alguém me dizia: isso é um debate muito antigo... É verdade, tem mais de 30 anos, mas a forma como foi contestado foi sendo diferente e na verdade continua a ser a concepção dominante, que apesar de todo o trabalho de desconstrução ainda impera, por exemplo, em currículos universitários.

Os anglo-saxónicos têm esta expressão: "master narrative", a narrativa mestra que tudo engloba e que tudo suga, uma narrativa que constantemente produz exclusões: e essas exclusões são de arte de países ditos periféricos, de arte de mulheres, de arte de outros continentes... Há movimentos que questionaram as exclusões e surgiu o interesse pela história de arte de mulheres ou a história de arte de ex-colónias ou de outros continentes, combatendo o eurocentrismo historiográfico - e têm sido extraordinariamente importantes - porém, muitas vezes não questionam a existência de um cânone, apenas desejam reformulá-lo com novos protagonistas. E eu acho fundamental questionar a existência de um cânone.

2. Há um lado de denúncia e provocação nos manifestos e textos iniciais do Almada Negreiros, mas, a partir dos anos 20, ele muda um pouco o tom, e a vocação de denúncia e provocação e reconfigura-se noutra linguagem. Depois de 1926, o ano do golpe militar, sai do país para viver cinco anos em Espanha e é de Espanha a famosa conferência em que ele diz a frase que dá título à exposição: "Isto do moderno não é uma maneira de vestir, é uma maneira de ser."

Nos textos a partir dos anos 1930, Almada começa a reflectir muito sobre o papel do indivíduo e a sua relação com a colectividade. Resumindo muito, diz que nenhuma colectividade pode abafar o indivíduo nem nenhum indivíduo pode subsistir sem estar inserido numa colectividade.

Ele desenvolve estas ideias em vários textos nos anos 30, e há claramente uma componente de reacção ao Estado Novo e ao que se desenhava na Europa em geral. Em alguns textos, reage à ideia de que um Estado pode condicionar a liberdade do artista. A palavra "liberdade" passa a ser constante nos seus textos.

A determinada altura, na esteira de tendências que vemos em vários modernismos, ele defende uma ideia de ingenuidade voluntária. Tem a ver com a ideia de um olhar ingénuo, desprovido de contaminações da civilização, que se enquadra numa série de primitivismos, e também tem a ver com o futurismo: que defende a tábua rasa, a destruição dos museus, da cultura, para começar do zero.

Há uma conferência de 1936 em que ele fala especificamente disto e diz que para ele a palavra "ingenuidade" é muito importante, porque ingénuo vem do latim "ingenuus": "nascido livre". Para ele, um olhar que não está contaminado é um olhar livre.

3. Um discurso procura arrumar, mas a vida das pessoas é mais desarrumada do que aquilo que contam delas. Na exposição, quis criar um percurso fluído, que não compartimentasse, não dividisse cronologicamente, nem em géneros, nem em fases, nem em hierarquias: e que misturasse a multiplicidade de linguagens artísticas em que Almada se desdobrou. Essa vocação experimental é ela própria moderna.


Para Almada, a palavra "ingenuidade" é muito importante, porque ingénuo vem do latim "ingenuus": "nascido livre". Para ele, um olhar que não está contaminado é um olhar livre.


Um dos dois retratos do Fernando Pessoa - considerados "as grandes" obras - está posto em diálogo, na exposição, com estudos para vitrais, o que talvez permita perceber melhor o que é que ele está a fazer: um gesto deliberado de iconizar o Pessoa e, com isso, iconizar-se a si próprio. Ele traz a linguagem do cartaz publicitário e dos vitrais para esse quadro e por isso é que consegue aquele efeito.

Nesse gesto, ele acaba por isolar duas figuras: o poeta e o pintor do poeta. Ele próprio, sendo um sobrevivente [do modernismo], está a construir a história e a reservar nela um lugar para si.

4. A pintura abstracta que faz no final da vida está ligada aos estudos autodidactas dos vitrais, da cerâmica, da pintura a fresco que o levaram a estudar formas antigas de composição pictórica, das civilizações pré-clássicas ao renascimento, e ele julga encontrar em diferentes tempos e diferentes geografias um conhecimento comum de leis da harmonia geométrica.

Parece encontrar aí a resposta à busca por uma comunicação visual que pudesse ser universal. É, sem dúvida, uma procura essencialista. A essas leis chama cânone, mas não no sentido que damos hoje. Almada vai à raiz etimológica da palavra: "cânone" era o nome de varas que serviam de medida-padrão. "Cânone" é então, para Almada, a base essencial de onde nasce toda a representação visual.


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