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Manuela Veloso: O meu objectivo é ter um robô com capacidade para chamar o 112
Manuela Veloso é uma referência mundial na área da robótica e da inteligência artificial. Lidera o departamento de Machine Learning da Carnegie Mellon University, em Pittsburgh. Criou os CoBots, robôs colaborativos que a ajudam em pequenas tarefas, e foi uma das fundadoras do RoboCup, campeonato de futebol com robôs.
Como é que nasceu o seu interesse pela temática da inteligência artificial?
Não há nada de romântico nesta escolha, nem nunca gostei de filmes de ficção científica, sempre fui muito "engenheira", muito prática, o que eu quero é resolver problemas, mais nada. E a dada altura percebi que muitas das coisas que fazíamos podiam ser automatizadas e que os computadores permitiam fazer exercícios de outra natureza que não apenas cálculos. Foi assim que também comecei a olhar para a inteligência artificial (IA), para a sua potencial funcionalidade.
Tem uma visão absolutamente pragmática da tecnologia. Nada de romantismos.
Sim, eu sou assim, muito pragmática. Sempre gostei muito de Matemática e pouco mais. Estudei Engenharia Electrotécnica no Instituto Superior Técnico, antes disso tinha estudado no Liceu Dona Leonor, que era uma escola só de raparigas. Depois de terminar o liceu, fiquei um ano a fazer serviço cívico com a Cruz Vermelha, a apoiar o regresso dos retornados a Portugal depois do 25 de Abril. Foi fascinante, aprendi muito sobre as pessoas. Mas sempre gostei muito de engenharia, gosto muito de tudo aquilo que permite resolver problemas. E, sendo muito prática, não me interessa, por agora, se o robô sorri ou não sorri, interessa-se sobretudo que esteja disponível para desempenhar determinadas tarefas. Não estou interessada em trabalhar robôs como a Sophia (a robô-estrela da Web Summit)! Admito que se trata de um grande feito do ponto de vista técnico, em termos de expressões faciais e assim, mas essa não é a minha área de investigação. Pessoalmente, espero que um robô possa auxiliar-nos em termos de funcionalidade, como ajudar a transportar sacos, indicar onde é o serviço de radiologia num hospital, distribuir aperitivos num jantar de amigos…
É a ideia do robô ao serviço do Homem. Adivinhava-se que, com o desenvolvimento da tecnologia, o Homem iria ficar com mais tempo livre para poder dedicar-se realmente àquilo que lhe desse prazer ou simplesmente ao ócio – sem a conotação pejorativa que a palavra tem. Na verdade, isso não acontece assim tanto…
É verdade, mas não há dúvida de que, nestes anos de avanço tecnológico, independentemente da inteligência artificial, houve muitos trabalhos mecânicos que desapareceram, e ainda bem que isso aconteceu. Não me parece que a maior parte das pessoas tenha pena de não ter de continuar a lavar roupa à mão em tanques de pedra ou a estabelecer milhares de ligações telefónicas manualmente...
As máquinas libertam-nos, então?
Libertam, acho que são essenciais. É verdade que trabalhamos muito e que no tempo dos nossos avós, se calhar, havia mais calma, mas é a evolução, nós evoluímos com a tecnologia. Além disso, a inteligência artificial não é propriamente algo que cai do céu no dia "x" do ano "y". É algo que se vai desenvolvendo todos os dias.
Numa entrevista ao Negócios, o português Fernando Pereira, vice-presidente da Google para a área da aprendizagem das máquinas, ironizava ao dizer que "a inteligência artificial é o novo King Kong", admitindo que as pessoas têm medo de perder o controlo do seu dia-a-dia. É isso, temos medo?
Exactamente, o grande problema é que as pessoas pensam que a inteligência artificial vai aparecer como o King Kong, mas não é assim, é simplesmente algo que vai acontecendo. Percebo a questão do medo, mas não acho que seja necessariamente fundamentado. Não vamos acordar de repente com a inteligência artificial caída do céu. Todos os dias existe uma coisa diferente, todos os dias é automatizado um novo sinal. E as pessoas adaptam-se com entusiasmo, não têm medo das novas apps ou de usar as novas tecnologias.
Mas têm medo de ficar sem trabalho.
Está bem, mas as pessoas podem redefinir-se. E a computação e a inteligência artificial também ajudam nessa redefinição com educação acessível e personalizada... É verdade que, ainda que a inteligência artificial não seja uma revolução repentina, estamos de facto a assistir a uma revolução e podem ser feitas coisas incríveis com esta tecnologia. A inteligência artificial tem um grande poder e, como tudo aquilo que tem poder, pode ser usada para o bem ou para o mal... Aquilo que me assusta realmente é o uso desta tecnologia mais cognitiva para manipular pessoas. Esse é, de facto, o grande problema e aí estão incluídas as "fake news", a chamada "personalization", o "targeting", que podem induzir as pessoas a comprar algo ou a tomar decisões. O que me assusta realmente, repito, é a má utilização da tecnologia, e a inteligência artificial é uma tecnologia forte!
O empresário Elon Musk, CEO da Tesla, chegou a dizer que a inteligência artificial é a maior ameaça para a existência da civilização humana.
Isso é um bocadinho demais. Mas de facto apercebi-me de que as pessoas são muitíssimo manipuláveis e são constantemente enganadas. Neste momento, estou focada em tentar fazer com que a inteligência artificial torne as pessoas mais robustas e menos manipuláveis. Imagine que agora nunca mais acredito numa informação que não traga uma explicação a dizer porque é que é assim e não de outra forma. Temos de querer saber mais, temos de aprender a requerer desta inteligência artificial que se justifique mais.
A inteligência artificial a programar uma espécie de antídoto de si própria...
Estamos agora a fazer investigação nessa área, chama-se AI Interpretability. No fundo, trata-se de obter uma explicação e uma maior transparência por parte dos sistemas de inteligência artificial. Ou seja, os algoritmos, além de nos darem uma resposta, dão também a justificação para essa resposta, e então as pessoas percebem melhor como é que a inteligência artificial funciona e podem proteger-se. Se eu souber que, em determinado anúncio publicitário, há um "background" de um mar azul que está a ser colocado só para mim (pois gosto muito do mar), posso concluir que existe ali uma tentativa de manipulação. Chamo a isto Human-AI Interaction. Estamos, assim, a trabalhar na interacção dos humanos com a inteligência artificial, de forma que os sistemas de IA também sejam mais responsáveis, evitando que as pessoas façam apenas "blind following". A IA não pode dizer apenas "escolha" sem dizer o porquê. Seria bom que as pessoas se tornem menos vulneráveis e menos propensas a serem enganadas pela tecnologia, e a própria tecnologia tem de ajudar nesse objectivo. Mas, atenção, ainda não há muitos resultados, tudo isto ainda é muito "ficção científica", mas é aquilo que eu penso para o futuro, e é aquilo que me tira o sono à noite (risos).
Há pouco, falávamos na necessidade de as pessoas se redefinirem em termos de trabalho. Numa entrevista ao Observador, disse que os robôs vão fazer com que o mercado de trabalho se torne numa "economia de talentos".
Exactamente, vamos todos ter a capacidade de declarar ao mundo aquilo que gostamos de fazer e aquilo em que somos bons. Algumas pessoas sabem fazer croché, outras cozinham bem, outras sabem fotografar, outras falam muitas línguas. Porque não partilhar esse saber com os outros? Cada um de nós deve tentar encontrar o seu próprio talento, partilhá-lo, e depois os outros podem pagar para aceder ao saber de cada uma dessas pessoas. Em relação às empresas, penso que devem preparar terreno o mais depressa possível para a inteligência artificial. O processamento de dados acumulados pode e deve ser utilizado como suporte do processo de tomada de decisões. Cada empresa deve ter pelo menos 20% de pessoas a fazer "computer science" e inteligência artificial. As empresas ainda estão muito agarradas às pessoas, o que é óptimo, mas se as pessoas tiverem consigo a ferramenta da inteligência artificial, serão muito mais valiosas.
Teremos todos de saber processar dados?
Temos pelo menos de trabalhar com pessoas que saibam processar dados. Aqueles que ficarem à margem [da inteligência artificial] podem perder os empregos. Será quase como se as pessoas recusassem hoje a pesquisa de informação no Google. No futuro, se eu recorrer a uma advogada e ela não tiver um assistente de IA, tenderei a procurar outra, equipada com sistemas e com acesso a estatísticas. Esta informação que estamos a providenciar, com dados, é muitíssimo valiosa. Recordemos que até 1400 quase não havia livros, depois veio o Gutenberg e começou a imprimi-los, e em 1500 já existiam milhões de livros. Houve um período de transição em que as pessoas aprenderam a ler e essa capacidade passou a ser necessária. Agora nós também estamos num período de transição mágica para este mundo dos dados. E quando as pessoas aprenderam a ler, nem todas se tornaram poetas. Estamos apenas a falar de uma ferramenta. Hoje não concebemos um mundo onde a maior parte das pessoas não sabe ler, pois não?
Tendemos a resistir à mudança, mas os portugueses parecem ter uma rápida adaptação à tecnologia, veja-se a taxa de penetração de telemóveis ou inventos como a Via Verde.
Tenho uma grande admiração por Portugal, sobretudo depois da Via Verde. Fui para os Estados Unidos em 1984, quando ainda não existia tal coisa. Anos mais tarde, estava em Portugal quando descobri a mágica Via Verde, com aqueles seus sensores. Enquanto engenheira electrotécnica, aquilo para mim foi uma descoberta formidável e até fiz uma propaganda gigante ao sistema português nos Estados Unidos. Acho que sou a melhor "marketeer" de Portugal! (risos) É incrível, nós pagamos tudo com o multibanco, compramos bilhetes de autocarro, fazemos tudo assim muito facilmente. Ora, onde é que isso acontece no mundo? Bom, agora acontece na China, que está a investir bastante em tecnologia.
Aliás, a China já disse que, até 2030, quer ser líder mundial em inteligência artificial.
E está no caminho. Actualmente, na China não se usa nem dinheiro nem cartões de crédito, as pessoas pagam tudo com o telefone. Acho fascinante e espero que um dia todos funcionemos assim.
É membro do Conselho da Diáspora Portuguesa, que tem por objectivo estreitar as relações entre Portugal e os portugueses que residem fora do país. Está há mais de 30 anos nos EUA, mas mantém uma relação próxima com o país?
Estou há 33 anos fora de Portugal. Quando fui para os Estados Unidos, a ideia era ficar apenas um ano. O meu marido [José Manuel Fonseca de Moura] foi em sabática para o MIT e eu fui fazer um mestrado em ciência de computação, mas a ideia era voltar para Portugal. Nunca voltei. Fui ficando e depois do mestrado veio o doutoramento e depois fui trabalhar… Mas devo ser das poucas expatriadas ou emigrantes que vem a Portugal duas vezes por ano, para ver a família, pais, os sogros, os irmãos, os cunhados, os sobrinhos. Durante estes 33 anos, nunca faltámos, nem no Natal, nem no Verão. E os meus filhos falam e escrevem português perfeitamente. Vivemos nos EUA, mas não somos uns ausentes de Portugal.
Ainda gostaria de voltar?
Eu gostava de não morrer nos Estados Unidos, mas não sei como é que isso há-de ser (risos).
Mantém contacto com a comunidade científica em Portugal?
No início, não tinha esse contacto. O meu marido, sim, ele era professor catedrático no Técnico e manteve, e mantém, muitas colaborações, ele conhecia muito bem o então ministro Mariano Gago e é um homem "muito de Portugal". Eu era apenas assistente, fiz o doutoramento nos Estados Unidos e acabo por ser de alguma forma um produto americano em termos de experiência de trabalho. Só mais recentemente é que tenho colaborado com pessoas do IST e da FEUP, através da CMU Portugal (Carnegie-Mellon Portugal), um programa patrocinado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), e isso mudou um bocado a minha perspectiva sobre Portugal… Mas eu tenho uma vida muito longa nos EUA, parece uma eternidade, doutorei 35 pessoas e agora tenho mais 13 estudantes, três são parte do programa CMU-Portugal!
O facto de ser cientista mulher…
… foi difícil, só que eu andei sempre para a frente. Mas ainda é difícil. Eu era presidente do RoboCup (competição de robótica anual), agora sou "past president", e um dia fui a uma conferência, curiosamente até foi na Europa, onde os "trustees" iam sentar-se na primeira fila e lá estavam os nomes de todos eles: Professor Stone, Professor… e depois aparecia o nome Veloso, sem a palavra "Professor" atrás. Eu era a única que estava nessa situação, até tirei uma fotografia. Mas isto não é estranho, esta é a realidade, e está sempre a acontecer.
Mesmo sendo a mulher que inventou os CoBots, robôs móveis que interagem com os humanos e realizam determinadas tarefas. São seus assistentes…
Sim, os robôs andam lá pela CMU, completamente sozinhos, levam as pessoas de um lado para o outro, servindo de guias, transportam pequenas coisas, entre outras tarefas, e por isso também foram uma grande revolução. Devemos ser o único laboratório no mundo que tem estes robôs a andar em múltiplos andares completamente sozinhos sem controlo remoto de humanos. Mas só funcionam para tarefas de navegação, mais nada, não me fazem os ovos mexidos!
Têm nomes? Baptizou-os?
Não! É o CoBot 1, 2, 3 e 4! Mas sei distingui-los. Faço o pedido, por e-mail ou no website: "Send me CoBot 2", e ele vem. Estes robôs têm a altura de um ser humano, mas são apenas uma coluna com umas rodas em baixo e um ecrã em cima. Da primeira vez que desapareceram no corredor, fiquei em pânico, a pensar: "Ai, meu Deus, e se eles passam por cima do pé de alguém ou partem um vidro…?" É um processo com muita incerteza, mas os CoBot já navegaram mais de 1.000 quilómetros sem nenhum incidente.
Tem que ver com a questão da autonomia?
Sim, o robô tem de ser mais transparente. Quando regressa de determinada tarefa, queremos saber aquilo que se passou durante o caminho, e ele não diz nada. Um aluno meu até está a fazer uma tese de doutoramento para o robô "saber" comparar a distribuição estatística do tempo. Se estiver fora da média, o robô poderá dizer algo como: "It took me forever" ou "It took more than usual" ou "It took me as much as it takes me on mondays". Ou seja, consegue explicar que demorou mais do que o normal depois de transformar os dados em linguagem. Isto é objecto de uma tese de doutoramento e é fantástico! Mas o robô não sabe interpretar, não sabe dizer porque é que demorou mais tempo. Isso é uma tese de outra aluna.
E saberá um dia interpretar?
O meu objectivo é ter um robô com capacidade para chamar o 112. Ou o 911. Imagine um robô que anda a navegar pelo aeroporto, pelo hospital ou num centro comercial e que é capaz de perceber o mundo de maneira a descobrir que, em dada situação, deve chamar o 112. Se ele observar o mundo e guardar essas observações como dados, terá capacidade de perceber que esses dados estão fora da distribuição normal – queremos que ele descubra que nunca viu determinado elemento estranho no ambiente onde está. Queremos que ele descubra essa anomalia. E só é possível descobri-la se comparar as informações com a experiência guardada. E assim pode chamar o 112 ao observar uma pessoa caída no chão. Sempre que observa algo fora do vulgar, alerta o humano. E isso é realmente fascinante.