A fábrica da Autoeuropa em Palmela teve de parar uma semana devido à falta de semicondutores. A escassez de "chips" é global e afeta áreas diversas, dos automóveis à eletrónica de consumo. Assistimos a uma guerra mundial pelos processadores, assinala Luís Sarmento, investigador em ciências da computação. "Vivemos na era pós-inteligência artificial. O Google, por exemplo, está a tornar-se uma companhia de hardware", aponta. Formou-se em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores na FEUP, doutorou-se em Engenharia Informática na mesma universidade, trabalhou em empresas como a Amazon e a Google, e está agora a lançar uma startup de investigação. Defende que é preciso criar talento no país, apostar na formação especializada e conhecer melhor o passado para garantir o futuro. Foi por isso que lançou o projeto "Computatio Lusitana" - que traça o percurso da história da computação em Portugal.
Depois de mais de 20 anos de experiência de trabalho em "computer science", está a estudar a pré-história da computação em Portugal. Porquê?
Nem eu próprio estava à espera de fazer este percurso. Trabalho há vários anos na área da inteligência artificial e de "computer science", passei por empresas como a Google e a Amazon, e durante este caminho apercebi-me do enorme atraso de Portugal na área informática em geral. Falaria em 10 anos de atraso, pelo menos, e isso reflete-se por exemplo na incapacidade de, como país, criarmos uma indústria tecnológica de ponta que possa competir a nível mundial. Fazemos muitas coisas bem feitas, temos muito talento em bruto, mas somos pouco competitivos tecnologicamente. Haverá um ou outro caso de excelência em Portugal, mas são exceções. As próprias universidades estão muito atrasadas. A partir de Portugal, talvez não tenhamos noção destas limitações, e foi só ao trabalhar com pessoas de outras universidades, americanas e europeias, que me dei conta do quão limitada tinha sido a minha formação. Penso que não existe a perceção deste atraso, tal como não existe a perceção de quão crónico ele é.
E sentia que isso tinha impacto na sua evolução?
Sentia-me um bocadinho frustrado, sentia a minha progressão limitada. Mas aprendi imenso. Na Amazon, eu era "research scientist", dirigia uma equipa que trabalhava no motor de pesquisa, depois trabalhei no Alexa (assistente virtual), um projeto que implicou uma equipa formada por vários milhares de engenheiros de topo. A unidade onde estava incluído tinha a função de saber responder a pedidos como: "Alexa, I want to buy toilet paper". Só para realizar esta pequena função, éramos mais de cem pessoas. De facto, para se fazer um produto destes, é preciso reunir muito talento. Certas coisas só são possíveis quando se atinge determinada escala. Com país, não estamos a produzir talento suficiente para nos aproximarmos um bocadinho dessa escala.
Dizia que as universidades portuguesas estão atrasadas. De que forma?
As nossas universidades não são más, mas têm problemas: estão a formar pouca gente nas áreas científicas e tecnológicas. Pior, estão a formar com pouca especialização. São boas na formação de base, mas não naquilo que é mais competitivo em termos tecnológicos. Há 15 anos, quando estava a tirar o doutoramento, eram poucas as pessoas que percebiam de inteligência artificial no país, quando o tema já estava a explodir nos Estados Unidos! Estamos agora a recuperar um bocadinho o atraso, mas com os tais 10 anos de atraso. E, entretanto, já perdemos a próxima vaga.
Que já não é a vaga da inteligência artificial?
Já não existe grande vantagem competitiva na inteligência artificial. Companhias como a Google, Facebook, Netflix praticamente industrializaram essa tecnologia, retirando-lhe valor económico. Estamos na era pós-inteligência artificial. Falo do hardware, no motor da própria IA. Falo dos processadores. O que é decisivo para a inteligência artificial é a capacidade de processamento. O software é brincadeira, o mercado está no hardware – é o "core" de tudo. O Google está a tornar-se uma companhia de hardware, agora faz processadores. E isto tem um enorme impacto do ponto de vista geopolítico. Neste momento, a guerra entre os Estados Unidos e a China tem que ver essencialmente com o domínio da tecnologia dos processadores, tudo o resto é fumo. Recentemente, o presidente norte-americano, Joe Biden, assinou uma ordem executiva para tentar colmatar a carência de microprocessadores no país: a Ford e a GM pararam a sua produção, por não terem circuitos eletrónicos para fabricar os automóveis. Os processadores estão em todos os objetos. Poderemos até falar na "revolução da hardwarização do software"… E era esta a revolução que as universidades portuguesas teriam de estar a apanhar. Quando a nossa indústria e investigação começarem a acordar para a temática, já outras ocuparam o seu espaço comercial.
Portugal parece estar sucessivamente atrasado nas revoluções tecnológicas.
Foi esse o percurso que quis perceber, porque é que andamos sempre atrasados? Antes de começar a estudar a história da computação, até fiz um estudo sobre uma tecnologia ainda mais central à vida humana, o aço. A história da metalurgia em Portugal mostra o quão incrível é o nosso atraso sistemático, e de como um atraso leva ao atraso seguinte. Temos um atraso crónico, endémico. Como chegamos sempre atrasados a cada revolução, não conseguimos depois apanhar a próxima.
Foi essa conclusão a que também chegou no estudo da história da computação?
Sim, o "Computatio Lusitana" é uma "brincadeira", e tenho outra "brincadeira" ainda mais séria: em conjunto com outras pessoas, estou a fazer um levantamento da história daquela que foi a única fábrica de máquinas de escrever em Portugal, a Messa. As máquinas de escrever fazem parte do percurso tecnológico que nos levou até ao computador – a IBM era essencialmente uma indústria de máquinas de escrever. A Comodoro também começou como uma fábrica de máquinas de escrever. Em Portugal, chegámos tarde a esta indústria, quando já outros países estavam a externalizar a sua produção para locais com mão-de-obra barata, e assim poderem transitar para as máquinas de calcular e depois para os computadores. Nós não fomos capazes de fazer a transição para outras tecnologias, nem para as impressoras. Hoje não temos nenhuma empresa tecnológica de hardware, e poderia ter sido a Messa, que encerrou em 1985. Há uma história de falhanços sucessivos muito engraçados, muito portugueses. São essas as questões que tenho estudado, sei que parece estranho, mas tem que ver com um período da minha vida em que já estou a refletir sobre o meu passado e perceber de que forma é que aquilo que sou hoje depende de mim, mas também da história do país e das suas instituições.
O que vai fazer com este repositório de conhecimento?
Gostaria de reunir informação e publicar um ou dois livros sobre o tema. Há tanto material… No fundo, trata-se da história de todos os dispositivos que levaram ao computador. Falo da máquina de escrever, mas também da máquina de calcular, dos tabuladores, das caixas de música, do tear Jacquard, do telégrafo. Todos estes objetos são "pais do computador". A história do tear de Jacquard, por exemplo, é muito interessante: surgiu em França no ano 1804, chegou a Portugal 22 anos depois. Mas ninguém sabia trabalhar com este objeto e foi preciso virem dois franceses para nos ensinar. Poderemos dizer então que os dois primeiros programadores em Portugal foram dois franceses, Claudio Ronze e Antoinio Bandier, que vieram a pedido do Rei.
A falta de "know-how" é uma constante ao longo da História portuguesa?
Sim. Portugal não tem hoje nenhuma fábrica de computadores e quero perceber como perdemos esse caminho. E é por isso que estamos a recuar mais de 100 anos. Inicialmente, os computadores eram sobretudo máquinas de contar, até muito impulsionadas pelos censos populacionais. Para as máquinas funcionarem e processarem informação, era necessário todo um ecossistema "a priori" e pessoas com "know-how". Sem esse ecossistema era difícil passarmos para o objeto seguinte. E é o que se passa ainda hoje. Se de repente quiséssemos mudar o perfil tecnológico do país e começar a fazer computação quântica, não teríamos capacidade para tal, faltar-nos-ia o tal ecossistema. Não existe em Portugal um reservatório de capacidade para criar saltos tecnológicos. E é por isso que temos de formar muito mais pessoas com muito maior nível de especialização.
Mas temos bons exemplos de inovações tecnológicas, como a Via Verde.
Sim, mas são as tais exceções, e nós gostamos muito de nos agarrar às exceções. É verdade que de vez em quando damos alguns saltos tecnológicos. Já estivemos 30 ou 20 anos atrasados, agora estamos 10… Mas devemos ver o cenário pelo caso médio: quantas empresas portuguesas existem no Nasdaq? Quantas tecnológicas tem o PSI-20? O facto de termos uma ou outra coisa que corre bem não quer dizer que sejamos um país tecnológico. Em Portugal, este cenário só irá mudar quando tivermos muito mais gente a trabalhar nas áreas de ciência e tecnologia.
É isso que quer fazer com a startup que está agora a lançar, a Inductiva Research?
É o meu "full time job". Lançámos a empresa em fevereiro deste ano e estamos a começar a contratar. Trata-se de uma startup um bocadinho diferente. Em vez de começarmos com um produto ou serviço, estamos focados na criação de uma equipa, que será treinada para fazer investigação na área da inteligência artificial. No fundo, trata-se de uma startup de investigação. Queremos juntar e desenvolver talento, que é o recurso mais raro que existe. Como disse, o talento em bruto existe. Estamos a tentar fazer uma coisa que mais ninguém faz no país. Gostaríamos de criar um grupo de investigação que trabalhasse nesta "interface" entre a inteligência artificial e as ciências fundamentais, como a física e a matemática, e se tornasse uma referência europeia ou mundial.