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Luís Ferreira: "Eu nunca disse que era de Tomar, eu sou de Cem Soldos"

Foi há 11 anos que Luís Ferreira e os amigos do Sport Club Operário de Cem Soldos transformaram a festa de arraial da aldeia no Bons Sons, festival que começa hoje e tem no cartaz nomes como Né Ladeiras e Samuel Úria. Luís Ferreira foi director artístico da Experimentadesign e hoje é director e programador dos Centros Culturais de Ílhavo.

Bruno Simão
11 de Agosto de 2017 às 14:00
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Luís Ferreira está de férias a preparar o festival Bons Sons, que começa hoje na aldeia de Cem Soldos, em Tomar. Foi há 11 anos que ele e os amigos do Sport Club Operário de Cem Soldos, associação a que preside, transformaram a festa de arraial num projecto cultural e de capacitação que todos os anos leva à aldeia mais de 30 mil pessoas. Mas o Bons Sons é "apenas" o projecto-embaixador de uma série de iniciativas desta terra viva que quer viver ainda mais. Luís Ferreira nasceu em Cem Soldos e é por carolice que continua a destinar as férias à sua aldeia. Ele e uma equipa de 400 voluntários. Estudou Design nas Caldas da Rainha, foi director artístico da Experimentadesign e hoje é director e programador dos Centros Culturais de Ílhavo e Gafanha da Nazaré. Vive entre Ílhavo, Lisboa e Cem Soldos, aldeia que vai estar em festa até dia 14, com 45 espectáculos distribuídos por oito palcos e com músicos como Débora Umbelino (Surma), Né Ladeiras e Samuel Úria.   


Vivi em Cem Soldos até ir para a faculdade e nunca senti a aldeia como um local à parte dos lugares onde acontecem coisas. Fiz intercâmbios, colónias de férias e viajei imenso desde miúdo. Na aldeia, existiu sempre uma dinâmica associativa muito forte, estimulada em parte pelo Sport Club Operário de Cem Soldos, que existe formalmente desde 1981 e que promove o Bons Sons. Nasci com a noção de que somos uma aldeia que acredita e que, por acreditar, faz. E essa ideia de pôr a mão na massa e experimentar coisas novas dá-nos responsabilidade e um sentido de pertença que não nunca mais sai.

Apesar de ter a marca de "aldeia vermelha", Cem Soldos nunca foi um território do Partido Comunista, mas era uma aldeia contestatária, não era subserviente, as pessoas reagiam, juntavam-se, tocavam guitarradas e contavam histórias sobre Zeca Afonso. Ele até tem um livro dedicado a uma das tascas de Cem Soldos, em que fala do Zé Luís, um tio meu. E, desta forma, fomos sendo contagiados pelas dinâmicas de outras pessoas.

Houve sempre uma atmosfera de pensamento em Cem Soldos e a associação local perpetuou uma dinâmica comunitária através de festas e encontros e, neste momento, tem em mãos projectos sociais muito importantes com base na ideia de que existe um futuro no campo, que as aldeias não são o passado e as cidades, o futuro. As aldeias são contemporâneas da cidade, têm o mesmo futuro.

Trabalhamos numa lógica de comunidade assente num projecto de sustentabilidade que promove o envelhecimento activo. Por exemplo, o "merchandising" do Bons Sons é feito por pessoas mais velhas que se juntam para fazer as "tixas" - a lagartixa é a imagem do festival. Numa lógica mais profissionalizante, temos uma oficina de costura criativa e vamos gerar uma marca, a Ponto sem Nó. Estamos também a criar serviços de apoio ao domicílio para que as pessoas permaneçam o máximo de tempo possível nos seus lares. Ao mesmo tempo, vamos recuperar algumas casas retirando-lhes obstáculos, tais como escadas. O nosso projecto de requalificação do largo da aldeia prevê, também, transformar as ruas em corredores. Vamos eliminar barreiras para as pessoas poderem circular. E isto não é para os idosos, é para todos!

Por outro lado, criámos o projecto "Cem Soldos e a Escola" e hoje já temos o dobro das crianças a estudar na aldeia, numa escola de primeiro ciclo e pré-escolar que estava na iminência de fechar. Estamos a mudar o projecto pedagógico, envolvendo toda a comunidade. Há um ditado africano que diz que é preciso uma aldeia para educar uma criança e é isso que estamos a tentar fazer, através do modelo da Escola Moderna. Por exemplo, os professores aproveitam os recursos da aldeia para ensinarem determinados conceitos aos alunos. Agora estiveram no parque de campismo do Bons Sons a conhecer a vida do escaravelho e a sua importância para a biodiversidade daquele ecossistema. As crianças vão aprendendo através da experiência no terreno.

A aldeia tem menos gente do que no passado, mas não está desertificada, foi conseguindo manter os habitantes, está a atrair novas pessoas e outras estão a regressar. O meu irmão do meio é gestor hoteleiro, morava em Lisboa, e agora voltou para Cem Soldos com um projecto de uma tasca. Desde que tenham trabalho na região, e essa é a grande lacuna, as pessoas podem voltar a Cem Soldos, uma aldeia com uma escala muito humana, onde as crianças podem ser crianças e onde existem dinâmicas culturais e desportivas interessantes. E há todo um trabalho de proximidade que nos dá algumas garantias de que não vamos ser enfornados num lar. A ideia é que toda a aldeia seja um lar.

Só percebi que aquilo que vivíamos em Cem Soldos não era muito comum quando fui estudar para a faculdade, nas Caldas da Rainha. Eu falava com todo o entusiasmo sobre a minha aldeia e comecei a notar que as pessoas, em vez de dizerem o nome das suas aldeias, diziam "eu sou de perto de…" Mas perto de quê, é o quê? Eu nunca disse que era perto de Tomar, eu sou de Cem Soldos. E onde é que é Cem Soldos? Tomar. Existe em Portugal uma grande preocupação com a escala. Algumas pessoas diziam que deveríamos ser vila. Mas nós somos uma aldeia, para quê colocarmo-nos em bicos de pés? Nós somos uma "ganda" aldeia! Esta coisa "Guinness" faz-me confusão. Se não temos orgulho do lugar de onde somos, há qualquer coisa que não está bem connosco. De alguma forma, revela que não temos orgulho em nós próprios porque nós somos isto tudo. Se eu não tivesse nascido em Cem Soldos, seria uma pessoa diferente.

Quando estava a estudar Design nas Caldas da Rainha, criei um núcleo de artes performativas e levava pessoas a Cem Soldos para darem formação em áreas como a dança contemporânea. As pessoas da aldeia foram sempre expostas à diferença, e o grande trabalho da cultura é esse: aumentar a curiosidade sobre o outro e criar pontos de encontro. Faz-me confusão o facto de as pessoas não serem curiosas. Procuram um conforto apático e a cultura não traz conforto, a cultura traz desafios.

Existe pouca curiosidade e há medo de arriscar no que é diferente. Os projectos em Cem Soldos vêm mudar um pouco este paradigma. O Bons Sons nasce nesta lógica e surge como resposta ao 20.º aniversário da associação. Já havia a festa de arraial da aldeia, um momento de encontro do qual gostávamos muito, mas não nos revíamos na música e noutros aspectos e, então, avançámos com um festival com a mesma raiz comunitária, usando as praças e as ruas, mas com uma dinâmica contemporânea. Apostámos em bandas portuguesas que não tinham território quando ainda ninguém falava de música portuguesa e recebemos logo cinco mil pessoas em 2006. Onze anos depois, o Bons Sons mantém o conceito sem perder a sua identidade, ainda que não seja fácil. Tem de se criar alguma artificialidade para o festival se manter autêntico.

Começámos com um conceito difícil: aldeia. Ninguém quer ser aldeia. Rural é passado, é campónio, não é "trendy", não é futuro. A aldeia não traz nenhuma marca. Agora já é um pouco diferente. Por outro lado, tínhamos 22 anos e vínhamos de uma associação chamada Sport Club Operário de Cem Soldos, ninguém acreditava muito em nós. Ao mesmo tempo, apostámos em música portuguesa, não havia nenhum "sunset" e não usávamos os chavões de uma start-up. Então, o que é que havia aqui de interessante?

A nível local, as cidades não querem ser aldeia e, quanto mais próximas são dessas aldeias, maior o distanciamento. Foi muito difícil conquistar esse território. Só em 2010, depois de uma legitimação do festival por parte da imprensa nacional, é que conseguimos apoio regional. Como apoios privados, temos a Sagres e a EDP, mas continua a ser difícil estabelecer parcerias. As pessoas olham para nós como instituição e, passados estes 11 anos, somos os mesmos carolas a dar a cara.

Este continua a ser um projecto feito através de muitos voluntários, somos 400 pessoas no total. O nosso lucro não é certo, conseguimos equiparar as receitas com as despesas. Mas o Bons Sons gera, para a região, receitas de cerca de um milhão de euros na hotelaria e restauração. Já o nosso, da aldeia, está mais na capacitação das pessoas de Cem Soldos e no fortalecimento do ego dos habitantes. As pessoas de Cem Soldos vêem-se na televisão com alguma naturalidade. Às vezes, perguntam-lhes: porquê Cem soldos? E elas respondem: e porque não? Porque não nós?



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