Notícia
Luaty Beirão: Eles têm pavor que as pessoas percam o medo
Luaty Beirão transformou-se num ícone da luta contra o regime angolano depois da sua prisão e de uma greve da fome de 36 dias. Agora lançou o livro “Sou eu mais livre, então - diário de um preso político angolano”.
A decisão de José Eduardo dos Santos de não se candidatar às eleições de 2017 vai mudar alguma coisa em Angola?
Forçosamente vai mudar. É a saída de uma figura que está há 37 anos a gerir o país, que construiu uma Constituição para si, inclusive com a ajuda do Bornito de Sousa, a qual foi desenhada para ele ter o poder total e completo. Com o abandono do cargo da figura que foi tão endeusada e agora, felizmente, está a ser trazida à terra, há-de haver alguma coisa que muda. Se calhar, não imediatamente ao nível das práticas, porque o "establishment" continua lá, sendo João Lourenço, Bornito de Sousa, Nandó [Fernando Piedade dos Santos], seja com quem for que vier a candidatar-se para a Presidência em 2017. E se o "establishment" se mantiver, não há muita coisa que vá mudar assim tão repentinamente. Vamos ver. O que aconteceu foi que o José Eduardo dos Santos não permitiu que nós soubéssemos quem são estes indivíduos. Eles tiveram sempre a meter-se voluntariamente na sombra. Nós não sabemos o que eles realmente pensam e não sabemos quais são as suas ideias para o país. Sabemos que fazem parte desse grupo hegemónico e que, se tiverem o mesmo tipo de atitude do seu antecessor, as coisas vão levar um pouco mais de tempo a mudar. Mas que muda, pelo menos a nível da psique dos cidadãos, ai isso mudar. Desaparece uma figura que esteve sempre omnipresente, que está no nosso dinheiro e em todo o lado.
Essa mudança será para melhor?
Isso é muito difícil de dizer porque quem vier agora pode ter de se impor, de mostrar quem é o novo "xerif in town" e, com isso, tomar algumas atitudes musculadas. Este "establishment" habituou-se a usar a força como forma de argumento e de convencer as pessoas a não se meterem com eles e a não lhes causarem entraves. Não posso dizer que seja para melhor. Acho que a mudança é necessária, independentemente de ser para melhor ou não, e que tem de ser feita desta forma. Tem de ser pelo próprio pé que o José Eduardo sai. Qualquer outro cenário seria, quase de certeza, trágico, mas não consigo antecipar se vai ser melhor ou não. E não quero fazer esse prognóstico. Mas quero acreditar que estas pessoas, ao começarem a ter poder, vão revelar um lado delas que não conhecemos. Espero que seja o melhor lado.
José Eduardo dos Santos sai da Presidência do país, mas fica presidente do partido.
"Putin style." Mas o que interessa para mim é a psique das pessoas. As pessoas passam a ter uma figura nova e os pruridos de desafiarem essa nova autoridade irão diluir-se bastante. E a autoridade tem de ser desafiada. Sobretudo a autoridade autoritária, aquela que se impõe de forma arrogante e prepotente, como é o nosso hábito lá. A psique do cidadão vai jogar um grande papel. Tanto o Bornito como o João Lourenço, ou seja quem for que vier a tomar o cargo de presidente, ainda que o José Eduardo esteja nos bastidores, também têm consciência disso.
De que existe essa sombra?
E de que não vale a pena as pessoas meterem-se com eles. O meu único receio é que façam isso mostrando força, ao invés de serem mais diplomáticos. O Bornito parece-me ser uma pessoa mais sensata. O João Lourenço, não conheço bem. Vem da Defesa, militar. A mentalidade castrense está lá. Já fez uma travessia no deserto. E daí resulta a tal incerteza. Será que ele guardou alguma mágoa, algum rancor, agora que está outra vez reconhecido pelos holofotes que lhe foram apontados? Aquele país é uma incerteza, uma incógnita. Nós podemos estar aqui a fazer vários cenários e a avançar várias possibilidades e sair qualquer coisa completamente diferente.
Ao não se candidatar às eleições de 2017, José Eduardo dos Santos acaba por cumprir a promessa que fez há um ano de que ia abandonar a vida política activa em 2018.
Seria um bocado mais estranho porque se punha logo a questão, que eleições são estas? Nós, lá, temos muitas dúvidas e algumas certezas absolutas de que aquilo não são eleições livres e justas e de coisa nenhuma, está tudo completamente manietado e manipulado. Mas quem é que no seu perfeito juízo vai eleger um Presidente que um ano depois vai sair? Não é racional. Por isso, o mais sensato é isto. Agora, se a promessa é a de que em 2018 se retira da vida política, isso significa que abandonará a presidência do MPLA. O que me parece é que isto é mais por razões de saúde do que por outra coisa. Ele está visivelmente desgastado. Nas últimas aparições públicas dele, dá para ver na sua expressão e na forma de comunicar que está algo titubeante. A gente sente isso. E as frequentes saídas para visitas privadas a Barcelona já não enganam ninguém.
Como é que se define? É um idealista, um realista? Quem é o Luaty Beirão?
Se tivesse de escolher entre as duas palavras, obviamente seria um idealista. Um realista, um pragmático, aceita as coisas como já estão, percebe os mecanismos e integra-se neles. Um idealista tenta promover alguma mudança numa máquina que está oleada como a nossa.
No livro, agradece com ironia a José Eduardo dos Santos o facto de este o ter transformado num ícone da juventude angolana. Quem são os seus ícones?
Posso citar os clichés. Posso pôr o Gandhi, o Luther King, o Che Guevara. Mesmo o Fidel, é um grande exemplo para mim, apesar de ter feito muitas coisas erradas como qualquer outro ser humano que tenha responsabilidade de gerir a vida de outros milhões. As pessoas que me inspiram são aquelas que têm convicções fortes e nas quais eu sinto sinceridade na acção, independentemente de falharem os seus intentos, de errarem mais à esquerda ou mais à direita, coisas que não se perdoam obviamente, mas em que a intenção seja pura. Que o percurso seja o menos maculado possível. Que deixem inspiração para continuar a sonhar. E essas pessoas, sem dúvida, deixaram uma marca, e transformaram-me em parte do que eu sou hoje. Depois há muitos outros que são cidadãos anónimos, pessoas que nunca vão ser reconhecidas nem ter um livro a falar sobre elas, nem um filme sobre a sua vida.
E angolanos?
Há o meu kota Rafael Marques, o meu amigo MCK, uma referência para mim. Pessoas como a Alexandra Simeão. Pessoas que têm coragem. Nenhuma destas figuras é uma figura imaculada, ou não tem coisas que eu não as critique, mas ainda bem que tem, porque isso torna estas pessoas humanas. São pessoas muito fortes porque têm a coragem de desafiar todo o mecanismo do medo que faz com que as pessoas se mantenham omissas e não passem as suas ideias para os outros. Não concordo com todos os seus posicionamentos e com todas as suas ideias, mas admiro muito a sua tenacidade e insistência em continuar. O padre Pio Wacussanga é outro grande exemplo para mim. Eu sou ateu, mas não é por ele ser padre que vou deixar de o apreciar como ser humano. É uma pessoa de um coração enorme, de uma coragem incrível, que está num meio em que fazer o que ele faz é muito mais arriscado do que eu fazer aquilo que faço. Esse tipo de pessoas faz com que eu sinta que há muito por fazer e, no limite das minhas capacidades, sinto a responsabilidade de participar e de ser mais uma voz ao lado das deles.
Que espaço é que a música ocupa na sua vida?
Já ocupou um espaço maior, a nível do tempo para criar, ir gravar, ensaiar. Agora é um espaço residual, mas é deveras importante porque a música é um elemento da minha vida que preenche um espaço que nenhuma outra coisa consegue fazer. Além de ser um escape, é uma maneira de exteriorizar tudo o que me corre na alma. Às vezes, é difícil no discurso directo fazê-lo, mas quando tenho tempo de o pôr em algumas rimas fico satisfeito por me puder exprimir daquela maneira. É, sem dúvida, uma ferramenta que me permite atingir um número de pessoas que não me ouviriam de outra forma.
Deixou de ser um rapper e passou a ser um activista?
Há um termo que um amigo brasileiro usou e que eu gostei muito. Não o emprego muitas vezes, mas acho que se aplica para resumir o que eu sou hoje, raptivista. Não deixei de ser um rapper, adoro fazer música, não quero deixar de a fazer, simplesmente não tenho tanto tempo quanto antes e o activismo passou a ter um espaço muito maior, que me ocupa muito tempo. Não deixei de ser uma coisa e espero não deixar de ser outra.
No livro, escreve uma espécie de tratado sobre o perdão como guia para se atingir a "harmonia nacional". E adianta. "É preciso saber o que se perdoa e isso pressupõe confissão, um acto que aqui deve ser entendido como nobre e patriótico." Politicamente, a autocrítica foi desenvolvida pelos partidos comunistas como um "reconhecimento público dos erros". Revê-se nos princípios ideológicos do comunismo?
Não é uma coisa inédita ou pertença de uma esquerda ou de uma direita, de um comunista ou de um fascista. Eu vejo isto como algo terapêutico, a exemplo do que se fez na África do Sul, com a Comissão da Verdade e da Reconciliação. E isso não fez da África do Sul um país de regime comunista. É algo que permite cicatrizar a sociedade com mais facilidade, para deixar uma fase que deixou tantas feridas abertas. Eu acho que o essencial seria, enquanto estamos vivos, sabermos assumir esses erros e esperar que as pessoas nos perdoem. Se não nos perdoarem, existe a justiça e os tribunais que devem funcionar. Mas, se não fizermos isso, o que eu prevejo que vá acontecer é que vamos andar sempre nas vinganças. É preciso que alguém, em determinada altura, diga, OK, eu vou aceitar o que tu me fizeste e não vou retribuir. E dar um sinal diferente. Na Colômbia, depois de 45 anos de guerra, estão a tentar encontrar um entendimento. É preciso mudar os paradigmas. Não podemos estar permanentemente a insistir na mesma coisa. Não é que seja a única forma sã e saudável de seguirmos em frente, mas é uma forma que já mostrou ter alguma eficácia, por oposição a outras que acabam sempre em confusão.
Diz no livro que não quer formar um partido nem fazer parte de nenhum. Como é que se consegue mudar a sociedade sem uma intervenção no espaço político?
Nós estamos a intervir no espaço político, só que enquanto cidadãos. Nós estamos também a condicionar os partidos que existem e a tentar influenciá-los, na medida em que eles são a proposta de alternativa ao poder. Na Constituição angolana, só quem faz parte de um partido é que pode concorrer a eleições. A minha posição pessoal é a de que temos de fortalecer o mecanismo de sociedade civil de pressão que, para já, é muito frágil, e inverter a lógica de, em vez de os partidos rebocarem a sociedade, ser a sociedade a obrigar os partidos a representá-la.
No diário da prisão, escreveu: "Há momentos em que somos mais úteis presos do que livres." A sua prisão foi um detonador que fez olhar para Angola de outra maneira?
Diria que sim, caso contrário não estaríamos aqui os dois a ter esta conversa. Eu estou há cinco anos a levar porrada na cabeça. Em 2012, tive, aqui em Lisboa, um episódio com a cocaína. Houve uma tensão residual logo depois, a minha mulher foi raptada cá em Portugal. Não fez grande furor.
Quanto tempo é que esteve raptada?
Foram alguns minutos, mas foi algo programado para me atingir. Com arma. Levaram-lhe o carro, tinham máscaras, mas, pela forma como agiram e como o abandonaram logo a seguir, sem terem levado nada, era um recado. Ficou assim, ficou no barulho. Se esta prisão não tivesse acontecido, eu acho que levaríamos mais tempo a captar a curiosidade dos órgãos de comunicação que não estão em Angola para ouvir o que temos a dizer.
Foi um erro do regime ter-vos prendido?
Parece-me que sim. Eu fico contente porque nos deram um empurrão do caraças. Nós agora estamos a expô-los e as nossas vozes são mais autorizadas do que nunca. Foi um erro deles. Eu, se pertencesse àquele regime, não me cansaria de insistir que tinha sido uma estupidez à qual era preciso pôr fim imediatamente. Não sei se houve pessoas lá dentro a fazê-lo, ou não, espero que sim, mas os ouvidos estavam cheios de cera. Levaram um ano para nos soltar e o estrago está feito. Podia ter sido maior se ficássemos mais tempo, mas foi um grande estrago.
Tem medo?
Se dissesse que não estaria a mentir. Claro que tenho medo, mas a minha posição na vida é a de que nós não temos de fugir do medo nem tentar deixar de o ter, temos de o encarar. O medo pode ser um bom combustível para a acção. E eu prefiro usar esse medo para me convencer de que, se tenho medo, é porque alguma coisa está errada. E, se está errada, tem de ser mudada.
No livro, escreve uma carta em forma de rima para o seu pai, José Beirão, que foi do regime e próximo de José Eduardo dos Santos. Se ele ainda estivesse vivo, o que lhe diria a si?
Antes ou depois dessa rima faço uma reflexão à volta disso. E assumo que não sei mesmo como é que seria. Algumas coisas haveriam de ser diferentes porque eu, para preservar o bem-estar familiar, haveria de me restringir de alguma forma ou romper completamente com o meu pai. Eu acho que o meu pai era uma pessoa extremamente tolerante, acho que, no fundo, por mais que ele me tentasse convencer a não fazer o que faço, haveria de ter uma ponta de orgulho, porque eu senti que ele, ideologicamente, já não se identificava com aquilo. Ele estava ali por inércia, naquela de nos querer dar o melhor acabou por fazer coisas que o prenderam. E também o seu passado. Ele esteve envolvido com a DISA [polícia política angolana] e com o processo do 27 de Maio [data de um golpe de Estado falhado, em 1997] de uma forma que eu não sei bem qual foi e até agora não consegui aprofundar. Portanto, tem várias coisas que o prendiam ao regime, mas eu sentia que ele já não se identificava mais com aquilo. Ele nunca me tentou coagir ou sugerir que eu aderisse ao "status quo" e aceitasse as regras do partido.
Nunca foi convidado por outras pessoas a entrar no MPLA? Nunca lhe acenaram com um lugar confortável?
As pessoas sugeriram, mas nem sei se eram mandatadas para isso. São pessoas que me são próximas e estão lá dentro, ou, mesmo não estando lá dentro, sabem que eu teria facilidade em estar se quisesse. E que a minha vida seria muito fácil se sucumbisse à facilidade. Porque eu tinha uma auto-estrada aberta para ser um jovem com casa no Talatona e com carros de topo de gama, mas não é isso que eu aspiro.
Diz também no livro que existe uma relação de extrema dependência de Portugal em relação a Angola. Para si, isso é um problema.
É um problema quando Portugal aceita ser usado como lavandaria de dinheiro. Eu não digo o país, mas sim as elites que o governam, sobretudo o anterior que era PSD/CDS. Espero que este Governo tenha uma atitude diferente. E acho que vai ter porque a União Europeia e o Banco Central Europeu já chamaram a atenção de que Portugal não pode ser a porta de entrada de dinheiro sujo. Espero que estas coisas venham a mudar um pouco. O que eu gostaria é que as políticas e os políticos pusessem um pouco mais a ética à frente das supostas necessidades do seu país. Obviamente que Portugal passou por um período de alguma carência, de uma crise que se foi agudizando, mas a necessidade de injectar dinheiro na sua economia não pode justificar qualquer coisa. Para mim, é uma coisa que me dá nojo na política.
Mas terá sido de Portugal que vocês, os activistas presos, receberam maior apoio.
Já é uma pergunta diferente. Claro que sim. Fiquei muito contente. Gostei de ver o Bloco de Esquerda e as iniciativas tomadas na Assembleia da República, apesar de terem sido chumbadas. Para nós, que estávamos lá, isso fez a diferença entre o dia e a noite. O que me sensibilizou muito não foi tanto o que se passou nos corredores diplomáticos e institucionais, foi sentir da parte da sociedade, do povão mesmo, essa solidariedade. E não vou traduzir isso com os números das pessoas que estavam nas manifestações, não é nisso que se resume, é no facto de Angola se ter tornado um assunto diário e de as pessoas mencionarem e discutirem o nosso caso. A imprensa estava permanentemente a insistir nisso. E aconteceu naturalmente, porque temos ligações...
Com a nossa prisão, deram-nos um empurrão do caraças. Agora as nossas vozes estão mais autorizadas do que nunca.
É também uma questão de afectos?
Também. Sobretudo quando vem das pessoas. E isso deixa-me feliz. Nós temos família lá, eles têm família cá, as nossas histórias continuam a cruzar-se permanentemente. Depois de 75 talvez tenha havido uma fase mais, vocês aqui, nós ali, mas imediatamente as coisas começaram de novo a estar misturadas. Não temos como. Nós estamos ligados de forma umbilical e ninguém corta com séculos de História. Gostando ou não gostando, temos de aceitar isso. Fico contente e acho que é supernatural que saia de Portugal a maior manifestação de solidariedade para com irmãos.
Entre as suas leituras de prisão, contaram-se Pepetela e Agualusa. Agualusa foi um dos mais activos na divulgação da vossa luta. Pepetela foi bem mais discreto. Fez-lhe confusão este posicionamento?
Eu prefiro nunca ter a expectativa de que alguém se vá pronunciar. Fico feliz quando o fazem, mas não crio expectativas para não ter desilusões. Mas o Pepetela subscreveu um abaixo-assinado que foi dirigido ao Presidente, entre duzentas outras pessoas. Ele é do MPLA, ele lutou pelo MPLA, ele desiludiu-se com o MPLA, mas existe uma coisa desses mais velhos que tem uma história forte desde a criação do partido, do exílio e da luta pela independência, que é um apego a essa fase inicial em que existiam valores e ideais. E eles não conseguem romper totalmente para criticar o MPLA contemporâneo, dissociando-se desse passado. Não é uma questão de compreender ou justificar. Ele também escreveu algumas crónicas e via-se que algumas delas eram a falar do nosso caso. Ele não era tão vocal, mas também não acho que tivesse responsabilidade de ser tão fracturante ou de dizer, preto no branco, o que pensava.
Referiu uma atitude passiva do Governo português em relação ao regime angolano. Mas também não vê os governos da Alemanha, França ou Espanha com uma atitude crítica. Porque é que não se aponta o dedo a esses governos?
Se calhar por causa do que já falámos. Nós sentimos, eu pelo menos sinto, que a nossa ligação mais directa é com Portugal. A nossa ligação histórica e de afectos é com Portugal. Os outros deviam pronunciar-se de forma peremptória e contra, mas eu não sinto que deva cobrar tanto. Eu também não cobro a ninguém. Não cobro ao Governo português que o faça, mas, se o fizer, que seja de forma coerente. Os governos desses países não se manifestam, mas também não os vejo a posicionar-se a favor. São omissos. Mas houve pequenas grandes coisas. Aquele voto no Parlamento Europeu foi uma grande vitória para nós. Só faltou o Papa falar e o Papa não falou, mas chamou o embaixador angolano no Vaticano. Obviamente que todos aqueles que negoceiam com ditadores e ditaduras devem ser criticados, mas normalmente os políticos só reagem se os seus povos fizerem pressão.
Fez uma greve da fome de 36 dias e depois parou.
Assim que cheguei à Clínica Girassol, já não me lembro com quantos dias de greve, resolvi assinar aquele documento [onde prescindia de assistência médica] pois percebi que, a qualquer altura, podia perder a lucidez e eles poderiam alimentar-me à força se eu não o tivesse escrito. Assim que cheguei à clínica, tive acesso, não só às visitas, como à imprensa. E quando liguei a televisão comecei a perceber, ainda que fraccionalmente, a dimensão que o nosso caso tinha atingido. O nível de impacto que teve, sobretudo a nível internacional. E eu não antecipava aquilo. Fiquei completamente siderado e apercebi-me ali de que tínhamos atingido uma vitória muito maior do que se o regime tivesse sido inteligente e interrompido a minha greve de fome aplicando a lei e deixando-nos a aguardar o julgamento em liberdade. A estupidez e a prepotência fizeram com que o caso tivesse este impacto todo. Eu, quando vi ao nível a que aquilo chegou, disse, OK, se calhar, vale mais a pena continuar preso. Depois chegaram aquelas cartas de solidariedade, desenhos de crianças, e se eu me tinha blindado para não pensar na minha própria filha, porque sabia que era o meu calcanhar de Aquiles, e se começasse a pensar muito nela fraquejaria nas minhas convicções e nos meus intentos, não estava preparado para tanta criançada e tanta gente em tanto sítio diferente do mundo a me pressionar para interromper a greve da fome.
Há quem diga que o Governo teve medo que se repetisse em Luanda o fenómeno da praça Tahrir, no Egipto, que começou com meia dúzia de pessoas e se transformou num movimento incontrolável. Terá sido essa a razão para a vossa rápida detenção. O regime tem medo de multidões?
A única explicação plausível para um regime que se gaba de ter seis milhões de militantes, regime partido, partido regime, Governo, Estado, ali é tudo a mesma coisa, que ganha eleições que dizem que são livres com 82% dos votos, recear que 15 jovenzitos influenciem pessoas a protestar a ponto de ter um fenómeno praça Tahrir, só pode ter uma justificação, eles sabem que tudo aquilo é uma fachada, que é tudo uma fantochada, e que as pessoas estão descontentes. A tal ponto que se eles toleram o pequeno gesto de protesto que seja, rapidamente aquilo ganha um efeito de bola de neve e as pessoas que vivem no medo, ao perceberem que não há repressão ou polícia a matar, vão-se juntar rapidamente. Portanto, estancam logo a coisa pela raiz. É a minha interpretação, posso estar enganado, mas acho que essa é a leitura a fazer. Eles têm pavor que as pessoas percam o medo de serem torturadas, presas, mortas, que se aglomerem e não voltem mais para casa. Esse é o medo deles.
Tem uma filha chamada Luena. Como é que imagina a Angola em que gostaria que ela vivesse?
Isso é uma pergunta tão difícil. Por um lado, porque tenho a noção de que nenhum país se transforma de um momento para o outro. Vamos imaginar que sobe agora ao poder uma elite responsável que quer realmente fazer o bem, que começa a investir nas coisas que importam, nenhum país se vai transformar para a minha Luena poder desfrutar da paz, do sossego, da boa educação e da boa saúde tão rápido, mas eu contentar-me-ia, sei lá, em ter bons professores, bons médicos, para começar. Mas sobretudo com liberdade. As comparações são muito difíceis, mas a gente quando vem para aqui sente tudo tão diferente. É tão simples. Porque é que não pode ser assim? Porque é que não podemos ter uma quadra de desporto no nosso bairro? Porque é que não podemos ter um parquezinho para nos sentarmos a ler um livro? Coisas tão simples. Um país completamente dentro desses moldes não vai ser para a minha Luena, vai ser para os filhos dela.
Mudar ali devia ser fácil, tudo está por fazer. O mais simples está por fazer. Acredito que existam pessoas capazes de fazer o mais simples.
E o MPLA pode ser o protagonista dessa mudança?
Se aparecerem pessoas de dentro do MPLA que hoje se fazem omissas e se vergam perante a imposição de um homem só, eu acredito que existem pessoas inteligentes lá dentro suficientes para isso. Porque não? Mas, olhando para os exemplos da História, os partidos que se deixam atrelar à vontade arbitrária de uma única pessoa e que ficam por tanto tempo a criar esse sentimento de quase ódio por parte das pessoas que são governadas por eles correm o risco de desaparecer. Sinceramente, como partido histórico que fez tanto pelo país, não era essa a minha vontade. Há pessoas lá que podiam, se tivessem espaço para exercer em pleno as suas capacidades, promover mudanças. Mudar ali devia ser fácil, tudo está por fazer. O mais simples está por fazer. Acredito que existam pessoas capazes de fazer o mais simples.
É possível Isabel dos Santos suceder ao seu pai?
Tudo é possível naquele país. Os cidadãos vão deixar. Tudo depende de quanto finca-pé eles fizerem no "bureau" político, porque se aceitaram a imposição do Manuel Vicente, não vejo porque não hão-de aceitar a imposição da Isabel dos Santos. Já a aceitaram na Sonangol. Muita gente já começa a dizer que ela tem perfil para ser Presidente, sim senhor, e que reconhecem nela essas qualidades. Já se começou a preparar e a mentalizar as pessoas. Nós fazemos várias previsões, mas no fundo é o José Eduardo que vai decidir. Ele é que sabe o que quer e conseguiu tornar-se opaco e imprevisível o suficiente para nos surpreender a cada passo.