Notícia
Lu Araújo: Eles não vão conseguir destruir o Brasil, mas dão-nos muito trabalho
Olho para o Brasil com uma certa pena, diz a brasileira Lu Araújo, criadora do Mimo, festival que começou nas igrejas de Olinda e chegou a Portugal no ano passado. Volta hoje a Amarante. São três dias de música, cinema e poesia.
Lu Araújo cresceu numa loja de discos e fotografias do Rio de Janeiro, apaixonou-se por um músico que também era caixeiro-viajante, um homem que colocava vários vinis debaixo dos braços e andava de cidade em cidade a vender música. Juntos, criaram a primeira loja de discos independentes do Brasil e Lu aventurou-se no mundo da produção. Trabalhou com artistas como Zeca Baleiro, promoveu a obra do músico Pixinguinha, criou projectos como "Encantadeiras", feito com mulheres que trabalham praticando canto, e criou o Mimo, festival que começou nas igrejas de Olinda, continuou por cidades-património como Ouro Preto e Tiradentes, e chegou a Portugal no ano passado. Volta hoje a Amarante. São três dias de música, cinema e poesia, com nomes como Herbie Hancock, Rodrigo Amarante e Manel Cruz.
Em Olinda, o Carnaval é Carnaval mesmo, o Carnaval invade as casas, tem barulho a noite inteira. Um dia, eu estava no largo da Catedral da Sé e vi um grupo de jovens bebendo, curtindo e tal, então um jovem pegou numa garrafinha de vidro e jogou na porta da igreja. Essa cena bateu-me mal, será que esse jovem sabia o que estava fazendo, será que conhecia a história de Olinda, será que conhecia a sua própria história? Olhei em redor e reparei que a cidade não tinha um cinema, não tinha um teatro. E essa não é apenas uma realidade de Olinda, é uma realidade do Brasil. Não existe um cuidado com a cultura e com o património. Eu já tinha ido diversas vezes a Olinda e nunca consegui entrar nas igrejas, estavam sempre fechadas, só abriam para as missas. E Olinda tem 22 igrejas! Porque não abri-las à população? Foi nessa lógica que apresentei o projecto Mimo (Mostra Internacional de Música em Olinda), que envolvia novos usos para o património histórico.
O Mimo começou dentro dos casarios e das igrejas de Olinda. Ficámos com a "chave dos conventos". No período do festival, os franciscanos do Convento de São Francisco recolhem-se e cedem-nos o espaço. A Catedral da Sé, uma das mais antigas da cidade, também nos é cedida. Outras pessoas abrem a porta das suas casas, a gente bota lá um telão e faz uma ópera. Enfim, a comunidade local envolve-se sempre com o festival e essa é uma das suas características, o que acaba por elevar a auto-estima dos habitantes e por valorizar as cidades.
Eu nunca quis fazer um festival mofado com coisas velhas, não queria associar o Mimo ao passado, mas sim à memória. E pensei: onde continuar depois de Olinda? Ouro Preto! É uma cidade muito significativa para a História do Brasil. Na altura, associei-me a Luiz André Calainho, um grande empreendedor da cultura no Brasil, e o Mimo foi ganhando outras cidades-património, como Paraty e Tiradentes. A ideia sempre presente é a de resgatar a memória. As marcas da colonização estão connosco, a gente tem cultura portuguesa, a gente tem esse sabor e tem esse cheiro, e tenho a sensação de que há muita gente que não quer falar sobre isso. Então, com este projecto, procuramos novas formas de falar sobre os assuntos de uma forma "leve", que permita às pessoas ter mais amor pela sua própria história. Tenho depoimentos de gente que morou a vida inteira em Olinda e que nunca entrou numa igreja, via nelas um espaço que não era seu. Depois do Mimo, passou olhar para elas de outra forma, passou a respeitá-las.
Costumo dizer que o Mimo é o festival brasileiro mais português que existe e, quando ponderei a sua internacionalização, Portugal era o país que fazia sentido. De início, pensei no Porto, mas um amigo aconselhou-me a visitar Amarante, achei a cidade muito bonita, senti-me abraçada, senti que era um lugar de conforto para fazer o festival. E era uma cidade-património.
Nasci em São Paulo e a música entrou na minha vida por causa do meu pai, ele era um cara incrível, superligado à música, todo metido, um boémio. Ele era gerente de uma multinacional e um dia cansou daquela vida, botou todo o mundo nas costas e fomos morar no Rio. O irmão dele tinha lá uma loja de fotografia e de discos. Eu gostava de ficar lá a ver os discos. Ali surgiu um amor à música e um interesse pela fotografia, e até fiz alguns cursos que me deram uma noção de estética. Depois conheci o pai da minha filha, que era músico e vivia num ambiente de música e eu acabei migrando definitivamente para esse mundo. Ele era distribuidor de discos independentes, um caixeiro-viajante, um homem que botava os discos todos debaixo dos braços e saía de cidade em cidade vendendo música de gente que não tinha gravadora. Eu fiquei encantada. Montámos a primeira loja especializada em discos independentes no Brasil, mais tarde criámos uma produtora e eu mergulhei na produção.
Depois separei-me e montei a minha própria empresa, a Lume Arte, e trabalhei com música experimental, com música clássica, trabalhei com muitos artistas em início de carreira, como Zeca Baleiro, Rita Ribeiro e Chico César, que depois se tornaram famosos e hoje são meus amigos.
Sempre gostei de contar histórias, de ouvir histórias, eu gosto de histórias. Gostei muito de produzir o projecto "Encantadeiras", que envolvia mulheres dedicadas ao canto de trabalho. Juntei as Ceguinhas de Campina Grande, que cantam na feira - há um filme lindo sobre elas chamado "A pessoa é para o que nasce" -, e juntei-as ao grupo Mawaca, do interior de São Paulo. Gosto de criar encontros entre o mundo mais tradicional e o mundo mais contemporâneo. No projecto, entravam também as Quebradeiras de Coco do Babaçu, mulheres da Amazónia que trabalham quebrando babaçu. Elas saem de casa, cantando em grupos e vão para debaixo dos pés do babaçu. Enquanto um homem balança a palmeira, as mulheres ficam quebrando e cantando. E convencê-las a ir para o palco? Elas diziam: não, a gente só consegue cantar quebrando coco. Ai é? Então, a gente vai quebrar coco no palco, respondi. Levei babaçu para o palco e elas fizeram "shows" em vários lugares. Numa parte do espectáculo, entrava a rapper Nega Gizza, que é de uma favela do Rio e fala sobre aquele universo da mulher, da prostituição, do funk. Há um choque que é muito bonito.
Um dos meus trabalhos mais especiais foi o projecto "Da Idade do Mundo". Levei ao palco artistas que começaram a sua carreira tardiamente, o mais novo tinha 79 anos. Ao fazer a pesquisa, encontrei o senhor Antônio Vieira, do Maranhão, ninguém sabia quem ele era, um compositor e cantor com vários sucessos. Também conheci a Zabé da Loca, uma mulher que morou 30 anos numa caverna e tocava pife, uma flautinha tradicional do Nordeste. Eu pirei com a história incrível desta mulher de olho azul. Ela morava numa casa sozinha com dois filhos, um dia a casa ruiu e ela subiu a montanha, encontrou uma rocha com uma fenda e aí montou a casa dela, criou os filhos, cozinhou, mas nunca parou de tocar. Fiz discos com ela, fiz um documentário. Ela está com noventa e tal anos, e viva.
Ao mesmo tempo, fiz uma pesquisa muito grande sobre aquele que é, para mim, o pai da música brasileira, o Pixinguinha. Fiquei 15 anos trabalhando a obra dele, fiz livros, fiz filme, fui curadora de uma exposição. A vida dele confunde-se com a vida do Brasil. Ele nasceu neto de escravo, com nove anos estava gravando disco, tocou no cinema mudo. Foi um trabalho de pesquisa intenso e, às tantas, o festival Mimo começou a crescer e eu não tinha braços para tudo.
Olho para o Brasil com uma certa pena, estou com tanta pena que nem consigo conviver muito com esse momento. A pior coisa que tem à face da terra é ver que as coisas estão erradas e não conseguir consertá-las. O país está caminhando muito mal e não tem voz, porque a gente não tem voz. Há uma máfia muito barra pesada e não é bacana encontrar um líder como o Lula, em quem você confiou uma vida inteira, envolvido nessas questões. Não é bacana ver que o PT se lambuzou naquilo. Demorou muito a chegar ao poder e depois teve uma ganância enorme. Sim, o poder corrompe. Até porque no Brasil existem duas classes, quem tem dinheiro e quem não tem, e quem tem dinheiro não quer de jeito algum que as pessoas se dêem bem. Ainda há um Brasil arcaico, um Brasil do "senhor de engenho", um Brasil do Sinhozinho Malta, ainda existem os mandões que acham que são donos do país. Estou triste, não com o meu país, mas com esta classe de pessoas que não olham para as outras. Mas o Brasil é tão grande e tão forte que ele vai regenerar-se, ele é um fígado, você corta um pedaço e ele volta a crescer. Eles não vão conseguir destruir o Brasil, mas dão-nos muito trabalho!
Em Olinda, o Carnaval é Carnaval mesmo, o Carnaval invade as casas, tem barulho a noite inteira. Um dia, eu estava no largo da Catedral da Sé e vi um grupo de jovens bebendo, curtindo e tal, então um jovem pegou numa garrafinha de vidro e jogou na porta da igreja. Essa cena bateu-me mal, será que esse jovem sabia o que estava fazendo, será que conhecia a história de Olinda, será que conhecia a sua própria história? Olhei em redor e reparei que a cidade não tinha um cinema, não tinha um teatro. E essa não é apenas uma realidade de Olinda, é uma realidade do Brasil. Não existe um cuidado com a cultura e com o património. Eu já tinha ido diversas vezes a Olinda e nunca consegui entrar nas igrejas, estavam sempre fechadas, só abriam para as missas. E Olinda tem 22 igrejas! Porque não abri-las à população? Foi nessa lógica que apresentei o projecto Mimo (Mostra Internacional de Música em Olinda), que envolvia novos usos para o património histórico.
Eu nunca quis fazer um festival mofado com coisas velhas, não queria associar o Mimo ao passado, mas sim à memória. E pensei: onde continuar depois de Olinda? Ouro Preto! É uma cidade muito significativa para a História do Brasil. Na altura, associei-me a Luiz André Calainho, um grande empreendedor da cultura no Brasil, e o Mimo foi ganhando outras cidades-património, como Paraty e Tiradentes. A ideia sempre presente é a de resgatar a memória. As marcas da colonização estão connosco, a gente tem cultura portuguesa, a gente tem esse sabor e tem esse cheiro, e tenho a sensação de que há muita gente que não quer falar sobre isso. Então, com este projecto, procuramos novas formas de falar sobre os assuntos de uma forma "leve", que permita às pessoas ter mais amor pela sua própria história. Tenho depoimentos de gente que morou a vida inteira em Olinda e que nunca entrou numa igreja, via nelas um espaço que não era seu. Depois do Mimo, passou olhar para elas de outra forma, passou a respeitá-las.
Costumo dizer que o Mimo é o festival brasileiro mais português que existe e, quando ponderei a sua internacionalização, Portugal era o país que fazia sentido. De início, pensei no Porto, mas um amigo aconselhou-me a visitar Amarante, achei a cidade muito bonita, senti-me abraçada, senti que era um lugar de conforto para fazer o festival. E era uma cidade-património.
Nasci em São Paulo e a música entrou na minha vida por causa do meu pai, ele era um cara incrível, superligado à música, todo metido, um boémio. Ele era gerente de uma multinacional e um dia cansou daquela vida, botou todo o mundo nas costas e fomos morar no Rio. O irmão dele tinha lá uma loja de fotografia e de discos. Eu gostava de ficar lá a ver os discos. Ali surgiu um amor à música e um interesse pela fotografia, e até fiz alguns cursos que me deram uma noção de estética. Depois conheci o pai da minha filha, que era músico e vivia num ambiente de música e eu acabei migrando definitivamente para esse mundo. Ele era distribuidor de discos independentes, um caixeiro-viajante, um homem que botava os discos todos debaixo dos braços e saía de cidade em cidade vendendo música de gente que não tinha gravadora. Eu fiquei encantada. Montámos a primeira loja especializada em discos independentes no Brasil, mais tarde criámos uma produtora e eu mergulhei na produção.
Depois separei-me e montei a minha própria empresa, a Lume Arte, e trabalhei com música experimental, com música clássica, trabalhei com muitos artistas em início de carreira, como Zeca Baleiro, Rita Ribeiro e Chico César, que depois se tornaram famosos e hoje são meus amigos.
Sempre gostei de contar histórias, de ouvir histórias, eu gosto de histórias. Gostei muito de produzir o projecto "Encantadeiras", que envolvia mulheres dedicadas ao canto de trabalho. Juntei as Ceguinhas de Campina Grande, que cantam na feira - há um filme lindo sobre elas chamado "A pessoa é para o que nasce" -, e juntei-as ao grupo Mawaca, do interior de São Paulo. Gosto de criar encontros entre o mundo mais tradicional e o mundo mais contemporâneo. No projecto, entravam também as Quebradeiras de Coco do Babaçu, mulheres da Amazónia que trabalham quebrando babaçu. Elas saem de casa, cantando em grupos e vão para debaixo dos pés do babaçu. Enquanto um homem balança a palmeira, as mulheres ficam quebrando e cantando. E convencê-las a ir para o palco? Elas diziam: não, a gente só consegue cantar quebrando coco. Ai é? Então, a gente vai quebrar coco no palco, respondi. Levei babaçu para o palco e elas fizeram "shows" em vários lugares. Numa parte do espectáculo, entrava a rapper Nega Gizza, que é de uma favela do Rio e fala sobre aquele universo da mulher, da prostituição, do funk. Há um choque que é muito bonito.
Um dos meus trabalhos mais especiais foi o projecto "Da Idade do Mundo". Levei ao palco artistas que começaram a sua carreira tardiamente, o mais novo tinha 79 anos. Ao fazer a pesquisa, encontrei o senhor Antônio Vieira, do Maranhão, ninguém sabia quem ele era, um compositor e cantor com vários sucessos. Também conheci a Zabé da Loca, uma mulher que morou 30 anos numa caverna e tocava pife, uma flautinha tradicional do Nordeste. Eu pirei com a história incrível desta mulher de olho azul. Ela morava numa casa sozinha com dois filhos, um dia a casa ruiu e ela subiu a montanha, encontrou uma rocha com uma fenda e aí montou a casa dela, criou os filhos, cozinhou, mas nunca parou de tocar. Fiz discos com ela, fiz um documentário. Ela está com noventa e tal anos, e viva.
Ao mesmo tempo, fiz uma pesquisa muito grande sobre aquele que é, para mim, o pai da música brasileira, o Pixinguinha. Fiquei 15 anos trabalhando a obra dele, fiz livros, fiz filme, fui curadora de uma exposição. A vida dele confunde-se com a vida do Brasil. Ele nasceu neto de escravo, com nove anos estava gravando disco, tocou no cinema mudo. Foi um trabalho de pesquisa intenso e, às tantas, o festival Mimo começou a crescer e eu não tinha braços para tudo.
Olho para o Brasil com uma certa pena, estou com tanta pena que nem consigo conviver muito com esse momento. A pior coisa que tem à face da terra é ver que as coisas estão erradas e não conseguir consertá-las. O país está caminhando muito mal e não tem voz, porque a gente não tem voz. Há uma máfia muito barra pesada e não é bacana encontrar um líder como o Lula, em quem você confiou uma vida inteira, envolvido nessas questões. Não é bacana ver que o PT se lambuzou naquilo. Demorou muito a chegar ao poder e depois teve uma ganância enorme. Sim, o poder corrompe. Até porque no Brasil existem duas classes, quem tem dinheiro e quem não tem, e quem tem dinheiro não quer de jeito algum que as pessoas se dêem bem. Ainda há um Brasil arcaico, um Brasil do "senhor de engenho", um Brasil do Sinhozinho Malta, ainda existem os mandões que acham que são donos do país. Estou triste, não com o meu país, mas com esta classe de pessoas que não olham para as outras. Mas o Brasil é tão grande e tão forte que ele vai regenerar-se, ele é um fígado, você corta um pedaço e ele volta a crescer. Eles não vão conseguir destruir o Brasil, mas dão-nos muito trabalho!