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José Pedro Croft: Não acredito no sucesso só pelo sucesso
Representa Portugal na Bienal de Arte em Veneza, com o projecto “Medida Incerta”. O artista plástico José Pedro Croft diz que o mundo do investimento na arte tem coisas que não lhe agradam. Obras guardadas em cofres de bancos como barras de ouro? "Não faz sentido", defende.
Foi o artista escolhido para representar Portugal na Bienal de Arte de Veneza 2017. Como reagiu quando foi convidado?
Foi uma surpresa. Recebi um telefonema do João Pinharanda, o curador. Já não o via há uns meses porque ele estava como adido cultural em Paris. E foi uma alegria porque é o primeiro projecto individual e de longo tempo de curadoria que foi feito com o João. Já nos conhecíamos há trinta e muitos anos.
Em que é que se inspirou para o projecto?
Havia a ideia prévia de existir uma articulação entre a Bienal de Arquitectura e a Bienal de Artes Plásticas. Um fio condutor. Como o Pavilhão de Portugal era na ilha da Giudecca e quem iria representar Portugal na Bienal de Arquitectura em 2016 era o Álvaro Siza Vieira, a ideia era que eu trabalhasse à volta da arquitectura dele.
Ter um ponto de partida definido facilita o processo criativo?
Temos sempre um ponto de partida. Não há um vazio.
Mas quando alguém impõe um ponto de partida é mais difícil?
O ponto de partida é um tema. E, no ano passado, a Bienal de Arquitectura teve como tema a Arquitectura Social. Há um tema geral que é puxado mas que tem tantas possibilidades. E a arquitectura do Álvaro Siza Vieira é tão rica…
É desafiador para si trabalhar com Siza Vieira?
É sobretudo estimulante. É muito inspirador.
Nunca tinham trabalhado juntos?
Não. Embora eu acompanhe o trabalho dele desde sempre.
Tem, aliás, uma paixão pela arquitectura.
Sim. Tenho um grande interesse em arquitectura e suponho que esse também tenha sido um dos motivos pelos quais o João Pinharanda me escolheu.
Estar na Bienal de Veneza é importante para um artista. É uma montra internacional relevante.
Sim. É um sítio com uma enorme visibilidade. Infelizmente, Portugal tem o constrangimento de não ter um pavilhão próprio. Não está nos Giardini [principal centro de exposições da Bienal]. Estamos na ilha da Giudecca, o que é uma dificuldade porque fica realmente muito longe. Tenho a noção de que uma grande parte do público não irá poder ver a exposição porque existem muitas solicitações à volta dos Giardini e a informação é escassa. Não há muito dinheiro para grandes cartazes, para publicidade constante. Veneza é uma cidade com imensos estímulos.
Sentiu-se prejudicado por isso?
Se considerarmos que o interesse é que a obra seja visitada por muita gente, claro que sim. Mas o público nunca foi o meu "assunto". Por outro lado, a revista de especialidade Wallpaper considerou-nos um dos dez melhores pavilhões da Bienal. O jornal Libération indicou-nos como um dos principais pavilhões a serem vistos. A revista Forbes também. Quem lê, que é um público mais culto e que procura não só a facilidade de ter pavilhões ali ao lado mas tenta ir com um critério, pode preparar-se nesse sentido. Têm saído algumas notícias boas.
A Bienal acaba por ser também um espaço utilizado pelos artistas para fazer algum "statement". Isso aconteceu, por exemplo, no pavilhão norte-americano, onde há claramente uma mensagem política. Teve essa percepção ao visitar os pavilhões?
No caso do pavilhão americano, isso faz o maior dos sentidos porque quando o artista [Mark Bradford] foi convidado, começou a fazer um projecto num país em que se revia e, de repente, houve umas eleições presidenciais que elegeram Trump. Ele encontra-se numa situação paradoxal que é representar um país onde, de alguma maneira, não se revê. Isso já tinha acontecido noutra situação como, por exemplo, em Cannes, em que o realizador brasileiro [Fernando] Meirelles aproveitou o festival para dar voz a qualquer coisa de muito grave que estava a acontecer no seu país, que era a golpaça do Temer e a maneira como ele tomou conta do Brasil como vice-presidente, através de uma manipulação política orquestrada. Isso foi uma maneira de resistência política.
No seu caso, existiu alguma intenção política na obra que levou à Bienal?
Não vivo numa situação de radicalismo. Há questões políticas que me interessam. A Europa está a transformar-se num sítio muito fechado. É uma das zonas mais ricas do mundo e onde grande parte da população se fechou. Quer a segurança e não quer o futuro, quer segurar os privilégios que tem. Isso é triste.
Está a falar dos europeus em geral?
Sim.
Estamos muito egocêntricos?
Muito egoístas. A forma como foi gerida esta crise financeira foi muito terrorista. Foram os ricos a quererem ficar mais ricos e a terem horror à pobreza, a extorquirem ainda mais os países pobres.
E qual é o papel da arte neste contexto?
Não pode trazer nada directamente. É uma linguagem metafórica, simbólica, fala sempre ao lado. Mas é uma reflexão mais profunda do que a linguagem, por exemplo, do jornalismo, que é uma linguagem permanentemente actualizada e que vive num tempo. A eficácia dela depende de ser eficaz aqui e agora. A arte, felizmente, não precisa dessa eficácia. Fala-nos de um tempo e de um espaço simbólico. Curiosamente, a arte fala sobre permanência, permanece no tempo.
Essa permanência no tempo é uma das coisas que o fascinam na escultura?
Sim. A escultura, tradicionalmente, tem que ver com a ideia do monumento e portanto de marcação do território. E com a ideia de deixar alguma coisa que fica para a posteridade. Aquilo que me interessa falar, quando faço escultura, é sobre a nossa condição de fragilidade. Aqui há um paradoxo, mas a arte é a possibilidade de falar sobre as contradições e os paradoxos. Não trabalha sobre um discurso coerente. Trabalha justamente nessas fissuras da realidade em que o "puzzle" não encaixa.
É um consumidor de jornais e de telejornais?
Não. Interessa-me a informação. Considero-me informado. Leio alguns jornais diversificados, tanto em Portugal como fora. Mas sou selectivo. Interessam-me algumas reflexões ou artigos de opinião de alguns autores. Interesso-me verdadeiramente por assuntos de política e economia. É estar no mundo. Temos de estar no mundo para intervir e trabalhar a partir dele e não numa redoma. Mas vejo muito pouca televisão.
Pergunto-lhe isto para perceber se se inspira, de alguma forma, naquilo que está a acontecer à sua volta.
Não. Até tento sempre ganhar alguma distância. Uma coisa sou eu enquanto cidadão empenhado, outra é o meu trabalho, que não é uma ilustração do meu pensamento. Não é.
Então, o que é que o inspira? Onde é que vai "beber"?
Vou ao momento anterior a esse tempo da informação, que é a noção de nascimento, de morte. O que é que fazemos durante esse tempo que cá estamos. Isso é uma água mais profunda do que a espuma dos dias do comentário, que está sempre a ter de ser actualizado, porque a realidade está sempre a ser actualizada.
Sei que começa muito cedo o seu dia.
Levanto-me cedo. Obrigo-me a umas coisas de rotina, como se fossem os constrangimentos do trabalho.
Mas precisa disso? Dessa tal rotina?
Preciso. Vivemos num mundo com excesso de estímulos. Pura e simplesmente, retira-nos o foco. Eu preciso de um foco. E depois é como se fosse desfocando e focando.
Como é o seu processo criativo? Começa tudo por onde?
Nem lhe sei dizer. É como se tropeçasse e as coisas fossem acontecendo. Posso começar por um desenho na parede ou no chão. Posso começar por desenhar uma linha, uma mancha, ou posso agarrar numa cadeira e virá-la do avesso, ou pendurá-la no tecto. E ver o que é que acontece.
Gosta de experimentar.
É a minha condição.
Sem isso não nasce a obra?
Não, porque o trabalho de um artista é registar gestos. E o mesmo gesto repetido não é o mesmo gesto. É a cópia do anterior. O mesmo desenho feito em duas condições iguais, mas em tempos diferentes, não é a mesma coisa. Uma pessoa não pode fazer aos 20 anos aquilo que fazia aos 10. E não pode pensar aos 40 como aos 20. Tem de integrar a mudança. E, para isso, tem de experimentar, senão fica automático, fica uma repetição e uma repetição é sempre mais pobre do que o original.
Já sofreu daquele "mal" de que os escritores falam, que é angústia do papel em branco? Da falta de inspiração?
Isso é muito frequente.
Como é que se lida com isso?
De muitas maneiras. Uma delas é ficar quieto e ver o que é que acontece. Outra é avançar para as coisas e, no momento em que se avança, já não se pensa nesse medo. Depois faz-se um erro e corrige-se. São duas maneiras e qualquer uma delas é interessante. Porque não existe a coisa de não fazer nada. Lembro-me sempre de um poema da Sophia [de Mello Breyner] que é: "para não se fazer nada é preciso muito tempo". Ou seja, quando não se faz nada, como isso não existe, quer dizer que por dentro estamos a elaborar. Estamos a cozinhar, estamos a equacionar.
Às vezes é preciso parar para ganhar balanço?
Não. É preciso parar para ver melhor. Para focar. Quando estamos num processo de dentro, a trabalhar, as energias estão todas a trabalhar. No momento em que paramos, ganhamos distância e vemos o todo. Não se vê dentro, vê-se fora.
E isso é válido para a vida?
É. Mas a arte e a vida fazem parte. Por isso é que a arte é tão importante. Não porque é abstracta mas porque se tivermos tempo para olhar para uma obra de arte, saímos de lá enriquecidos. É por isso que a arte é importante. Leva-nos para outro campo de profundidade. E a maior parte das pessoas tem dificuldade [em chegar lá], porque é preciso um nível de preparação.
Isso tem a ver com educação?
Tem a ver com a educação e com disponibilidade. As vidas das pessoas são vidas castigadas. Perdem horas em transportes públicos. Estão o tempo todo a ver como é que não gastam dinheiro e como é que o poupam, como o fazem render até ao final do mês. Isso gasta muita energia e, ao mesmo tempo, estão sempre a ser bombardeadas pelos hipermercados que têm esta e aquela promoção. As pessoas são de tal maneira agredidas que é preciso aquilo de que falávamos há bocado: ganhar alguma distância. Mas ganhar alguma distância custa muito, implica um grande esforço.
Não resta nem energia, nem espaço, nem tempo para apreciar a arte.
Sim. E se calhar isso é válido tanto para uma classe média baixa como para uma classe média alta, que também quer investir na bolsa e ter mais dividendos. As pessoas passam a vida obcecadas também em sobreviver. Noutro estatuto, mas também é tudo uma questão de sobrevivência. Uma questão de escala. Mas a agressão, a alienação é toda a mesma.
Disse numa entrevista que lida bem com o falhanço.
O falhanço é operativo. É um óptimo livro, um manual para nos explicar o que é que está errado. No falhanço e na maneira como se erra já estão equacionadas as possibilidades de uma coisa mais adequada, ou melhor. É como a luz e a sombra. Pode caminhar-se pela luz ou pela sombra. A sombra também tem as suas virtualidades. Não é preciso estar sempre ao sol. Não acredito no sucesso só pelo sucesso. Até porque nem percebo para que é que serve.
Não percebe?
Percebo que pode servir para uma questão de poder. Mas a vida é como se fosse um caminho em que nós vamos integrando conhecimento e experiência e enriquecemos aí. Para aumentarmos a bagagem da nossa mochila, precisamos de sucesso e de fracasso. São dois lados da mesma moeda.
Mas a sociedade portuguesa lida mal com o fracasso.
A sociedade portuguesa não, a sociedade ocidental. Quem não é de sucesso, é proscrito. É de uma tremenda violência. As pessoas estão sempre sujeitas a um julgamento. Não existem porque são, em si, como as crianças, que gostam das coisas não porque elas têm valor mas porque aquela folha de papel, que é nojenta, tem lá um amarelo ou uma pinta que as fascinou. Preferem esse bocado de papel sujo a uma revista de papel couché, extraordinária e luxuosa.
Que imagem tem dos investidores em arte?
Sempre houve a noção de que as obras de arte são objectos valiosos. Desde a Antiguidade Clássica, à Renascença. Os "grandes" do mundo sempre quiseram estar rodeados de obras de arte porque isso lhes dava estatuto, poder. A ideia que tenho é que os investidores, antigamente, criavam riqueza através da economia e havia uma mais-valia. As coisas estavam de alguma maneira ligadas. Hoje em dia é como se as finanças funcionassem de forma completamente separada do sistema produtivo, levando o dinheiro para off-shores. Não se sabe que mundo é aquele, que galáxia virtual é aquela, mas dá a sensação de que não é necessário pagar impostos e, portanto, são só mais-valias. Em relação às obras de arte, acontece um bocado a mesma coisa. Os investidores compram com a ideia de que as peças vão valorizar. Compram coisas que nem sequer vêem. Armazenam-nas em sítios como se fossem barras de ouro. Ora, a arte fala justamente do contrário, fala da vida, fala da morte, fala de precariedade. E alimenta-nos através da fruição. Se eu tiver uma música gravada em CD ou escrita em partituras, e ela estiver fechada num banco, não me serve para nada.
Enquanto artista, fica incomodado com isso?
Não, porque eu não sou moralista. Fico incomodado enquanto cidadão.
Para si, não faz sentido?
Não, não faz sentido nenhum. Sei que há uma enorme colecção de artistas da Renascença que estão em caves de bancos. Em cofres fortes. São transaccionados entre pessoas que têm dinheiro e que têm biliões para comprar. Mas nunca os tiram de lá. Não faz sentido nenhum.
Essa parte do mundo do mercado da arte faz-lhe confusão?
Faz parte da realidade. Acho é que é um absurdo. Aquilo que um escritor escreve, aquilo que um realizador de cinema faz, aquilo que um pintor faz, aquilo que um poeta faz.... é a sua vida posta ali a nu. É uma entrega. Como dizia a Helena Almeida, no ateliê, deixamos o corpo e a alma. Entregamo-nos. Isso ser depois transformado numa mais-valia, numa mercadoria e em barras de ouro… não é possível.
Costuma conhecer as pessoas que compram as suas obras?
Conheço algumas. Devo dizer-lhe que tenho a sorte de ter mais coleccionadores que compram do que investidores. Isso é algo que me dá uma enorme alegria. Faz com que, por exemplo, mesmo nesta crise, tenham aparecido muito poucas peças minhas em leilões. As pessoas seguram e tomam conta. Isso não é um investidor. É o coleccionador. Os artistas fazem gestos que ficam materializados numa tela, numa escultura, num desenho. Se não houver alguém que tome conta, como uma casa, ela [a obra] acaba numa ruína. O coleccionador, o que faz é agarrar num gesto que é feito por um terceiro e compromete-se a guardar essa coisa. Isso é um gesto muitíssimo bonito e muito nobre. Não tem nada que ver com essa ideia de acumular riqueza.
O ateliê e a sua casa são espaços que não se misturam?
São. Eu vivo do outro lado da cidade.
Costuma levar trabalho para casa? Ou tem obras suas em casa?
Em casa, por exemplo, leio ou pura e simplesmente estou por lá a olhar para coisas. À vezes, posso fazer um desenho, posso fazer alguma maqueta mas são momentos de descanso.
Desenhar é algo que o relaxa?
Não. Não é nada relaxante. É a possibilidade de focar de uma maneira muito económica.
Como assim?
Tenho uma folha em branco num caderno e há um pensamento que só quando aparece no desenho é que toma forma e se concretiza. Isso é importante fazer para perceber onde é que estamos.
Desenhava bem quando era criança?
Não creio. Tinha imensas dificuldades no liceu a desenhar.
Mas nessa altura já queria ser arquitecto?
A ideia de ser arquitecto não tinha nada a ver com desenho. Tinha a ver com o gostar do espaço e interessar-me pelas questões do espaço.
E tinha pessoas de família na área, como o seu tio Vasco. Que influência é que ele teve em si?
Eu ia ao ateliê dele. Via as maquetas, os desenhos, ia com ele a obras, via a arquitectura a ser construída. As placas de betão, as sombras. Foi fascinante.
Vem daí a vontade de seguir arquitectura?
Sim. Foi uma coisa em que tropecei e fiquei agarrado. A minha família é grande. Havia muita gente de áreas diferentes, com experiências de vida diferentes. Interessou-me a arquitectura, a pintura e a escultura.
Entrou em Arquitectura, na Faculdade de Belas-Artes.
Entrei durante uns meses. Logo a seguir ao 25 de Abril. [Depois mudou para Artes Plásticas]
Foram tempos muito conturbados na Faculdade de Belas-Artes?
Foram. Mas eu não tinha muito essa noção porque tinha 17 anos. Para quem tem 17 anos, a vida é conturbada.
Mas era estimulante, naquela altura, estar a estudar Belas Artes?
Era. Belas Artes já era um curso considerado diferente. Mais experimental, mais lúdico e mais ligado a questões de prazer e de alegria de viver. Portanto, esses anos foram especiais. Foram anos de muita actividade mas também, ao mesmo tempo, de grande actividade política, de associações de estudantes...
Envolveu-se na política?
Sim. O interesse pela política vem ainda antes do 25 de Abril, no movimento associativo do ensino secundário. Tive essa participação de associação de estudantes. Depois isso continuou na faculdade. Durante os primeiros anos, estive ligado à UDP, um grupo que era minoritário. Era um grupo onde me revia. Muito solidário.
Fez amigos para a vida, que ainda mantém hoje?
Sim. Desde o Pedro Cabrita Reis ao José Manuel Fernandes, do Observador. Muita gente vem desde esse tempo.
Nunca pensou em sair de Portugal e estabelecer-se como artista plástico lá fora?
Pensei. Quando fui a Nova Iorque, em 1986, pensei que gostaria de viver lá. Mas era tarde demais, eu já tinha 29 anos nessa altura.
Mas, com 29 anos, era um jovem!
Aos 29 anos, um escultor já tem uma estrutura.
Isso é quase como os jogadores de futebol.
E tinha um filho que já tinha quatro anos e tal. Mudar toda essa estrutura [familiar] e arranjar um ateliê numa cidade que é caríssima... não é a mesma coisa fazer isso aos 19 anos. A questão do ser jovem é sempre relativa.
Mas se tivesse de dar um conselho a um jovem artista, qual seria?
Nunca daria um conselho. Para ser artista é preciso trabalhar, não é preciso ter carreira.
Mas é preciso vender. E ter quem faça uma boa divulgação do seu trabalho. E o mercado em Portugal é pequeno...
É pior do que isso. Eu acho que em Portugal não há uma tradição de artes plásticas, nem nunca houve. Isso, eu acho que é trágico.
E não está a ser feito nada nesse sentido?
Continua a não ser feito nada nesse sentido. Chegamos a Madrid e temos o Prado, temos o Museu Reina Sofia. Chegamos a Paris e temos o Louvre, o D’Orsay, o Centro Georges Pompidou, o Palais de Tokyo. Em Londres, a mesma coisa. Temos o Museu Britânico, o National Gallery, o National Portrait Gallery. Os nossos museus são realmente muito, muito pequenos, mesmo sendo um país mais pobre e pequeno. E não é culpa dos últimos vinte ou trinta ou quarenta anos. É de séculos. Sempre foi um país que investiu muito mais e que se interessou muito mais pelas artes decorativas. Há uma enorme tradição de pratas, cristais, porcelanas. O campo das artes plásticas sempre foi muito deficitário.
Como é que se resolve isso?
Não sei. Havia alguém que me dizia que a arte e a cultura tiram votos, não dão votos. Porque ainda há a ideia muito enraizada de que os artistas, sejam de teatro, de cinema ou de artes plásticas, são uns boémios e uns "bon vivant", que vivem à custa do Estado, ou de quem quer que seja. Não são produtivos. Isso é um estigma muito forte.
Mas já sentiu esse estigma na pele?
Não porque sou um bocado distraído. Mas vejo, por exemplo, o que foi o triste fecho da Cornucópia e as reacções de violência em relação a isso. Estamos a falar de um teatro de excelência e que teve um contributo extraordinário, que é de um nível muitíssimo elevado em relação a qualquer parte do mundo.
Existe muita rivalidade no meio das artes plásticas? Há muitos egos?
Como em toda a sociedade. No campo científico, na economia, na literatura, até na medicina. A rivalidade faz parte da condição humana.
E como é que lida com isso?
Se quer que lhe diga, eu acho eu sou muito bem tratado pela minha comunidade. Não me posso queixar.
Voltando à escultura, que é uma área que tem trabalhado muito, qual o material que lhe dá mais gozo trabalhar?
Todos.
A sua carreira de escultor começa com o mármore. Aprendeu com João Cutileiro.
Sim. Comecei por trabalhar com o João.
Mas foi o mármore por alguma razão especial?
Porque era material barato. Trabalhava com desperdícios industriais. A conservação é fantástica. Pode ficar à chuva. E porque era muito rápido também.
Trabalhar com o João Cutileiro foi uma boa escola?
Foi fantástica.
O que é que aprendeu de mais relevante?
A conhecer bem os materiais, as técnicas, a ter um domínio técnico bom daquilo que se quer fazer e, ao mesmo tempo, a ter uma displicência. Não acharmos que estamos sempre a fazer uma obra extraordinária e a ter uma veneração sobre o trabalho que se está a fazer. Antes pelo contrário. Poder fazer, errar, deitar fora, partir, começar tudo de novo. Essa ginástica que obriga a rapidez de processo foi fundamental. É uma das coisas que tento guardar.
Pensa nas suas obras como peças que vão ficar na História?
Não. Se ficarem, também não sou eu. Tanto faz. Quando penso na Nefertiti... Quem era o escultor que fez a cabeça da Nefertiti? O Fideas. O que é que sabemos da vida dele? 99% da arte a que temos acesso é anónima.
Mas pensa que vai ser um anónimo?
Estamos sempre a habitar casas e coisas deixadas pelos outros. Cada vez que pisamos a calçada, o calceteiro que pôs aquele chão provavelmente já não vive. As fachadas de igrejas de Lisboa, que são de uma beleza enorme e que nos enriquecem e alimentam o dia-a-dia, foram feitas por alguém que era um autor, um criativo. O nome deles ficou? Não ficou. E qual é a importância que isso tem? Até gozamos de uma forma mais directa. Aqueles que não passam na rua agarrados ao telemóvel. É por aí. Eu, enquanto autor, pertenço à grande maioria dos anónimos. Hei-de pertencer. Se ficar. Nada fica para a eternidade. Talvez fique alguma coisa para a posteridade, mas a posteridade pode ser um ano, podem ser dez, podem ser 100 anos. Não vou preocupar-me com isso, nem ser neurótico. Faço as coisas porque tenho uma necessidade de fazer, não faço para a História. Há uma coisa que é a compulsão de fazer e a necessidade de fazer. O querer ficar para a História é querer comprar barras de ouro.