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José Milhazes: A Rússia é um pólo manco. Estamos a falar de um gigante que é fraco.

Foi durante 16 anos o correspondente em Moscovo da TSF e, mais tarde, da SIC e do Público. Partiu para estudar na União Soviética em 1977, convicto de que ia encontrar o “paraíso na terra”. José Milhazes escreveu o livro “As minhas aventuras no país dos sovietes”, onde conta como foram os 38 anos que viveu em Moscovo.

Miguel Baltazar
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José Milhazes partiu num comboio para estudar na União Soviética dois anos depois do 25 de Abril, convicto de que ia encontrar o "paraíso na terra". Aos poucos foi-se desiludindo com a ideologia do primeiro país socialista do mundo. O processo foi lento e doloroso. Afinal de contas, custa ter consciência de que se andou "enganado". Deixou o PCP em 1991. Foi outra dissidente, Zita Seabra, que o levou para o jornalismo. No livro "As minhas aventuras no país dos sovietes", conta como foram os 38 anos que viveu em Moscovo.


Quando foi para Moscovo, em 1977, estava à espera de encontrar o "paraíso terrestre". Na sua cabeça, o que era a União Soviética?

Era tudo aquilo com que eu sonhava. Justiça social, igualdade de oportunidades, direito à educação, à saúde. Tudo aquilo que eu não tive quando era criança. [José Milhazes pertence a uma família de pescadores da Póvoa de Varzim.] 

 

Mas essa ideia que tinha da URSS construiu­-a a partir de coisas que leu ou foi-lhe "vendida" por alguém?

Existia propaganda soviética que era vendida em Portugal. Desde revistas como a Vida Soviética ou a Mulher Soviética. Depois havia livros de viagens à União Soviética de conhecidos escritores e intelectuais portugueses. E a propaganda contra a URSS funcionava, para mim, a seu favor. Quem é que dizia mal? Era o PSD, naquela altura PPD, era o CDS, ou seja, os partidos reaccionários, de direita, cujos militantes geralmente eram pessoas com quem eu convivia e me dava muito bem, mas eram de classes sociais diferentes.

 

Curiosamente, a sua ligação à política começa quando está no seminário dos Combonianos, porque quis ser padre.

É verdade. As ordens missionárias estão viradas para as obras sociais dirigidas aos mais carenciados. Isso também fazia chamar a atenção para os problemas que se viviam no chamado terceiro mundo, em África, na América Latina. Ajudava na educação política.

 

Quando foi para Moscovo, ainda era um homem de fé?

Não.

 

Quando é que houve essa ruptura com a religião?

Foi rápida. Foi quando comecei a acreditar que a religião é o ópio do povo, que trava a felicidade do povo. Isto porque a religião promete um paraíso depois da morte. Esse paraíso é só para alguns. É para os crentes. Agora, para os que não acreditam… É daí que vem a necessidade do paraíso terrestre. Mesmo agora, tendo mudado de convicções, continuo a defender que não estamos neste mundo para sofrer, estamos para ter uma vida digna.

 

Quando diz que mudou de convicções, o que é que isso significa? Que voltou a ter fé?

Esse percurso está a ser muito longo. Estou a repensar. E este livro também foi feito um bocado para isso, para repensar. No fim de contas, ando à procura da verdade. Aquilo que sempre andei à procura. E, neste momento, vejo alguns aspectos positivos na religião.

 

Quando é que começou a perceber que, afinal, a URSS não era um paraíso? Foi logo quando chegou ou demorou a perceber?

Demora tempo. É doloroso termos consciência de que nos enganámos. Tentamos adiar esse reconhecimento, encontrar explicações, mesmo para as coisas mais absurdas. Ou é o trabalho da CIA, ou é o cerco imperialista, ou é a II Guerra Mundial que acabou há não sei quantos anos, ou é o internacionalismo proletário, que os soviéticos têm de dar ajuda a toda a gente e por isso ficam sem dinheiro para eles. Tentamos arranjar essas explicações todas. Até que depois vamos vendo que as coisas não são bem assim. 

 

Falava com os seus colegas sobre as dúvidas que tinha?

Falava. Para nós, estrangeiros, eles tinham uma certa tolerância em relação àquilo que podíamos falar. Agora, com os nossos amigos russos, isso dependia de que amigos e onde. Geralmente, utilizávamos o princípio da Última Ceia, quando Cristo diz: entre nós está um traidor. Mas havia lugares onde se falava abertamente.

 

Então havia controlo. Podiam falar uns com os outros, mas não de forma descontraída.

Não, porque existe uma coisa que não se vê. É como a radioactividade. Não se sente, mas mata. Que é o medo. Normalmente, as pessoas têm mais medo do que aquele que realmente existe. Pessoas que estiveram em campos de concentração, em prisões, na Sibéria..., claro que em determinadas alturas poderiam falar, mas noutras não falavam. Conheço bem essa parte da história porque uma parte da família da minha mulher [que é da Estónia] passou por isso tudo. Ela não tinha grandes problemas em revelar o seu anticomunismo. A minha mulher olhava para mim como um ser de outro planeta.

 

Porque na Estónia havia uma posição diferente.

Havia, porque eles tinham sido ocupados um bocadinho antes e depois da II Guerra Mundial. Tentaram "russificar" aquele povo enviando para lá quantidades industriais de outros povos, nomeadamente russos, ucranianos, bielorrussos. Os povos pequenos, quando se sentem apertados, unem-se. Na escola, ouvia-se uma coisa e depois vinha-se para casa e não se podia repetir porque toda a gente ficava zangada. Toda a gente sabia que não era assim.

 

Questionavam-se as coisas.

Sim. O meu filho, quando era pequenino, chegou a casa e veio dizer que o avô dele era o Lenine e eu disse-lhe: o teu avô é o Lenine? Mas quem é que te disse isso? Foi no jardim-de-infância. Eh pá, esquece, rapaz. Tu tens dois avôs e nenhum deles se chama Lenine. (risos)

 

A sua entrada no jornalismo acontece por acaso. Não foi uma coisa pensada por si.

Nunca sonhei, nem no pior dos meus sonhos, que ia ser jornalista.

 

Foi a Zita Seabra que o desafiou.

Conheci a Zita Seabra quando ela foi a Moscovo fazer um trabalho para o Expresso. E uma amiga minha telefonou-me a perguntar se eu estava disposto a trabalhar com ela como tradutor. Eu disse: claro que sim. Mas ela disse: sabes que a Zita Seabra tem problemas com o partido.

 

Nessa altura, ela já tinha saído do PCP?

Estava em ruptura, mas não sei se já tinha saído. A minha colega disse: podes ter problemas. Eu respondi: estou-me nas tintas para isso. E pronto. Fiz o trabalho com a Zita Seabra. Andei com ela a mostrar-lhe Moscovo, a falar com políticos, encontrámo-nos com outros estudantes portugueses, conversámos. E ela disse-me para lhe telefonar quando eu fosse a Lisboa. A TSF ficava numa das torres do Centro Comercial das Amoreiras e marcámos encontro lá. Fui eu, a minha mulher e os meus dois filhos. Eles estavam com a cabeça a andar à roda porque nunca tinham visto tanta cor e luzes. Além de coisas tão boas tão perto da mão. Gelados, chocolates.

 

Putin é a Rússia, a Rússia é Putin. Se o tirarem de lá, aquilo vem tudo por ali abaixo. 

 

Isso não havia na Rússia?

Não havia com tanta frequência nem com tanta variedade. Para uma criança, aqueles carrinhos de pôr a moeda, isso era tudo novidade. A Zita Seabra chegou à minha beira e disse: ó Milhazes, tu queres ser jornalista? Naquela altura, eu era tradutor na União Soviética, as coisas já estavam um bocado complicadas. Eu disse: mas olha que eu nunca fui jornalista, nem faço a mínima ideia de como é que se fazem essas coisas. E ela disse: vamos ali acima que eu quero apresentar-te ao [Emídio] Rangel. Entrámos no gabinete dele e ela disse: tu não estás a precisar de um correspondente na União Soviética? Por acaso, até estou. Olha, tens aqui um, não queres? Pronto, está acordado. Passas a ser o correspondente da TSF na Rússia. Julguei que aquela era conversa da treta. Mas cheguei no dia 9 de Agosto a Moscovo e, no dia seguinte de manhã, estava a TSF a telefonar. A partir daí foram 16 anos. Era dia e noite. Mesmo quando estive no hospital, durante a Guerra do Golfo, e queriam saber a posição da Rússia, levantava-me da cama e ia fazer directos à meia­-noite e à uma da manhã.

 

Mas o PCP não gostou quando começou a trabalhar para a TSF.

Claro que não, porque perdeu o monopólio da informação de esquerda em relação à URSS. Naquela altura, eu era uma pessoa de esquerda. Agora não sou, porque não sei o que é a esquerda e a direita.

 

Ficou baralhado?

Não, eu não estou baralhado. Neste momento, sei que não há esquerda e direita. Se me explicarem bem, ainda posso optar. Naquela altura era uma pessoa de esquerda e tentei reflectir sempre a verdade. Nunca fiz propaganda, nem pactuei. Claro que quando me chegaram notícias, por via indirecta de conversas que havia dentro das reuniões do PCP, onde tratavam o Gorbatchev por fascista, eu dizia isso aos microfones da TSF. E isso irritava.

 

Mas acha que conseguiu ser objectivo nas suas intervenções na rádio?

Tentei. Claro que havia momentos em que era difícil ser-se objectivo. Porque nós não somos feitos de pedra. Somos de carne e osso e temos um coração. Sei lá, a tentativa de derrube do Gorbatchev ou outras situações dramáticas, por exemplo, a cobertura daquele caso da menina que foi mandada pelas autoridades portuguesas para a Rússia. Aí, é difícil uma pessoa dizer: eu sou objectivo. Objectivo, uma porra! Quando cheguei a primeira vez à casa da menina e vi aquilo, não conseguia fazer um directo para a SIC porque estava debaixo de uma pressão muito grande. Estava revoltado.

Quando é que se dá a sua ruptura com o Partido Comunista?

Definitiva, foi em Maio de 1991.

 

E houve alguma situação que o fez colocar esse ponto final?

Não. Foi o encher. Aquilo vai enchendo, enchendo desde que fui vendo o que era a União Soviética. Foi o episódio da agressão ao Carlos Fino [jornalista da RTP] e outras situações que me levaram a afastar cada vez mais do partido, a pôr em causa a ideologia, até que chegou o momento em que eu disse: não fico mais aqui. Vou-me embora. E fui.

 

A sua voz começou a ser familiar através da TSF. Mais tarde, começa também a entrar nas imagens da SIC. Tornou-se uma figura conhecida. Era reconhecido na rua quando vinha a Portugal?

Sim. Toda a gente fica muito surpreendida, como é que o Milhazes é tão alto?

 

A sua figura fica na mente das pessoas. As barbas, a voz…

Tenho uma voz fanhosa. Absolutamente anormal. Um dos nossos ilustres jornalistas escreveu uma vez no Diário de Notícias que duas coisas deviam ser banidas. Era a voz do José Milhazes na rádio e a voz das tias de Cascais. Eu até acho elogioso.

 

Achou graça?

Eu acho graça a tudo.

 

E quando o Herman José fez o seu boneco?

Adoro o Herman. Sabe porquê? É um génio. Faz um humor muito respeitoso. Ele não insulta. Tem um carinho pelas personagens. Nota-se. Rio-me, divirto-me. A única coisa que indignou a minha mãe foi quando ele disse que eu era de Trás-os-Montes. Divirto-me imenso porque não há insulto. Eu sou assim. Como dizem os russos: se não gosta da sua cara, o mal não é do espelho.

 

A Rússia é um pólo manco. Estamos a falar de um gigante que é fraco. 

 

Há 100 anos, a União Soviética tornou-se no primeiro país socialista do mundo. O que é a Rússia neste momento?

É um país que continua a ser gigante em termos de dimensão. É uma superpotência militar porque tem armas nucleares e continua a ser um gigante de pés de barro porque tem uma economia muito débil. Muito pouco diversificada e muito pouco inovada. Uma das promessas de Putin era a de que iria inovar a economia e a indústria russas, e isso não aconteceu. Ele já está no poder há 17 anos.

 

A Rússia tem tendência para ter regimes absolutistas e autoritários, desde o tempo dos czares. Como é que explica isso?

Há uns que explicam pela dimensão do seu território. É um país muito grande. Sabe, o grande problema na Rússia é a excessiva centralização do poder em Moscovo. E Putin levou isso até ao delírio porque tem medo de perder o poder. Ao centralizar tudo em Moscovo, paralisa a iniciativa local. As coisas não se desenvolvem em termos locais como poderiam desenvolver-se se tivessem uma determinada autonomia financeira.

 

Tudo é controlado pelo Kremlin?

Tudo. Os governadores que antes eram eleitos são nomeados pelo Putin, o dinheiro vem de Moscovo, é distribuído pelas repúblicas e regiões russas. As grandes empresas são controladas pelo Estado, nomeadamente nos sectores do gás e petróleo, que é fundamentalmente o que eles exportam. Além disso, o investimento estrangeiro não é tão grande como, por exemplo, na China. Na China, há corrupção e na Rússia também. Mas a corrupção na Rússia é um dos travões ao investimento estrangeiro. Um dos principais problemas é que não existe uma base jurídica sólida que proteja os investimentos. Continuam a depender da política. Isto tanto em relação aos investimentos estrangeiros como internos. Hoje é teu, amanhã deixa de ser.

 

E depois há uma oligarquia que circula.

Os defensores de Putin dizem que um dos seus grandes feitos foi ter acabado com a oligarquia. Ele apenas substituiu os oligarcas pelos amigos, que são oligarcas na mesma. Tudo o que sejam grandes obras públicas e energia vai parar às mãos dos amigos.


 

Existe uma imprensa livre na Rússia?

Existe, mas o raio de acção é muito limitado. Há uma televisão por cabo independente que se chama Dozhd (Chuva), na internet aparece como Rain.ru. Só que eles têm tantos problemas no cabo, com os operadores, que estão com a corda no pescoço e podem ser encerrados. Há outra revista que se chama New Times que também está para fechar. Agora só vai ser distribuída pelos assinantes, mas vai acabar por fechar porque as empresas têm medo de fazer publicidade. Há um jornal, que é o mais independente, o Novaya Gazeta, onde trabalhou a jornalista Anna Politkovskaia [assassinada em 2006]. Esse jornal existe porque há pessoas como o Gorbatchev que põem lá dinheiro. São investidores destemidos. Agora, tudo o que sejam canais de televisão e rádio é controlado pelo poder. O Estado não poupa dinheiro nesse sector. Até é uma das formas de participar nos processos eleitorais em países estrangeiros.

 

Como assim?

Existe uma contrapropaganda fortíssima. Quando vemos o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia a criar uma secção especial no site oficial para publicar artigos supostamente falsos sobre a Rússia e desmentidos sobre esses artigos da imprensa internacional…

 

As próximas eleições presidenciais na Rússia são em 2018.

Se não forem antecipadas.

 

Isso pode acontecer?

Pode. Parece pouco provável, mas pode acontecer. Depende de como a situação interna e internacional evoluir. Se tiver grandes problemas na Síria e noutros sectores em termos internacionais, e começar a faltar dinheiro para os problemas internos, nesse caso, as eleições podem ser antecipadas.

 

No caso da desintegração da União Europeia e da NATO, a Rússia fica com as mãos livres para continuar a fazer as patifarias que faz. 

 

Mas, neste momento, Putin não tem grande oposição. Alexei Navalny, o líder de um dos principais partidos da oposição, não vai poder candidatar-se.

Se Putin se candidatar, ele vai ganhar com 80%. E não duvido de que a maioria dos eleitores vote nele. Agora, que 80% votem em Putin, não é verdade. É falsificação.

 

Mas é esta forma de lidar com a oposição que o tem ajudado a manter-se no poder.

Ele queima tudo à volta dele. Tudo. Não aparece ninguém. É por isso que dou razão a alguns que dizem: Putin é a Rússia, a Rússia é Putin. Se o tirarem de lá, aquilo vem tudo por ali abaixo. A não ser que, o que também é muito típico na História russa, se dê um golpe palaciano bizantino.

 

Isso pode acontecer?

Pode. Basta que a dita oligarquia se veja ameaçada e a perder poder e encontre outra figura que pareça ser mais promissora do que Putin.

 

Estando ele nessa circunstância de poder ser atraiçoado por pessoas que lhe são próximas, deve ser uma pessoa que vive em constante…

...paranóia. Cada vez mais fechado. E, estando cada vez mais fechado, está cada vez menos informado. 

 

Isso pode jogar contra ele.

Exactamente. Penso que ele é um político cada vez mais isolado dentro do próprio país. Tem a corte dele, os tais amigos, os serviços secretos e pouco mais.

 

Ainda não se percebeu muito bem que tipo de relação é que a Rússia tem neste momento com os EUA.

As relações entre a Rússia e os EUA, neste momento, continuam a ser uma grande incógnita. A mim, parece-me que já não irá haver lua-de-mel nenhuma. Serão relações muito difíceis. Acho que Putin errou ao ter apostado em Trump. A propaganda dentro da própria Rússia falava de tal forma de Trump que até parecia que estava a eleger o Presidente da Rússia. Agora não. É evidente que não foram os serviços secretos russos que elegeram Trump. Ele foi eleito por outras razões que todos nós sabemos. O sistema político norte-americano está podre, as pessoas estão fartas de promessas de políticos, estão fartas de corrupção, e aparece um populista que lhes promete uma coisa e toda a gente vai atrás dele. Agora, claro que os serviços secretos russos poderão ter contribuído para que ele tenha sido eleito. Isso, estou convencido de que aconteceu.

 

Mas de que forma?

Os russos participaram no processo de denegrir Hillary Clinton. E assim ajudaram a eleger Trump. Se fosse preciso o contrário, eles fariam o contrário. Já há muitos políticos na Europa, por exemplo em França ou na Holanda, que estão a dizer: se eu perder, a culpa não é minha, é dos russos. O que não é verdade.

 

Mas quando se fala nos "hackers" russos…

Claro que existem. Eles têm uma escola muito boa de programadores. E que estranho seria se, numa época em que a ciberguerra já é uma realidade, os russos não trabalhassem com ela. Temos de olhar para este fenómeno como um novo tipo de guerra. E, se nos declaram guerra desta forma, temos de nos defender. A Europa tem de ter um sistema de segurança informático capaz de não permitir que os russos façam o que quiserem.

 

A Europa tem de ter um sistema de segurança informático capaz de não permitir que os russos façam o que quiserem. 

 

Mas fazerem o que quiserem é o quê?

Em França, há claramente uma coisa, embora seja difícil de provar. Os milhões que a Marine Le Pen recebe de Moscovo ou de bancos russos. A própria imprensa russa não esconde os candidatos que apoia. E tenta destruir, desde que tenha capacidade para isso, os adversários. Se eles tiverem material comprometedor, podem lançá-lo. Podem não ser eles. Pode ser o WikiLeaks ou outra coisa qualquer.

 

Mas, ao apoiar candidatos e partidos anti-sistema, os tais populistas, qual é a estratégia do Kremlin?

Enfraquecer e destruir a União Europeia. Esfrangalhá-la. Toda a confusão que está a acontecer nos Estados Unidos é favorável à Rússia. Porque, enquanto eles estiverem lá com aquela caldeirada toda, não pensam nem em Sírias, nem em coisa nenhuma, e os russos fazem aquilo que querem. No caso da desintegração da União Europeia e da NATO, por exemplo, a Rússia fica com as mãos livres para continuar a fazer as patifarias que faz.

 

A NATO é um dos dossiês que separam a Rússia dos EUA. Do seu ponto de vista, a Aliança Atlântica ainda faz muita falta?

Claro que faz muita falta. Tendo em conta que, se não existir, a Rússia irá ter as mãos livres para actuar em regiões onde hoje não actua porque está lá a NATO. É um factor de contenção.

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, disse que a Rússia quer uma nova ordem mundial pós-ocidental. O que é que isto quer dizer?

No fundo, quer dizer: queremos uma ordem mundial onde sejamos um entre iguais.

 

Tem sido essa a grande luta de Putin desde que está no poder. Querer ficar ao mesmo nível das outras potências.

Exactamente. É o chamado mundo pluripolar. Só que, aqui, Lavrov esquece-se de uma coisa: para ser um pólo neste mundo, não é só preciso ter armas atómicas. Num mundo multipolar, existem vários centros de decisão. Um dos pólos são os Estados Unidos, indubitavelmente, têm armas e têm uma máquina de fazer dinheiro. O outro é a China, que tem uma economia fortíssima e já tem muitas armas. O outro, embora neste momento seja problemático, é a União Europeia, porque tem uma economia forte e tem a NATO. E o outro é a Rússia. Mas a Rússia é um pólo manco. Porque tem armas, mas em termos económicos... Nas estatísticas internacionais, a Rússia anda pelas ruas da amargura. Em termos de PIB, de inovação tecnológica. Este último foguetão que partiu agora foi fabricado no tempo da União Soviética.

 

A Rússia ficou para trás?

Claro que ficou para trás e vai ficar irreparavelmente. A Rússia está sujeita a não ser um desses pólos. E porque não a Índia? Eles têm armas nucleares, estão com um desenvolvimento económico enormíssimo. Estamos a falar de gigantes. Na Rússia, estamos a falar de um gigante que é fraco. Amanhã, o Trump levanta-se maldisposto e diz assim: eh pá, atirem o preço do petróleo cá para baixo. E a economia russa vem toda parar cá abaixo como um baralho de cartas. Foi o que aconteceu à União Soviética. A Rússia pode exigir o que quiser e tem direito a exigir o que quiser, agora, tem capacidade para desempenhar o papel que quer ter? Uma economia como a da Rússia manterá muito tempo uma guerra com a da Síria? Porque não acabou. Ela vai continuar e vai ser preciso muito dinheiro.

 

E que papel está a ter a Rússia na Síria?

Utilizou a descoordenação na capacidade de intervenção da chamada coligação. Apanhou aquele vazio e tentou ocupar aquele lugar. E, agora, com a Turquia e o Irão, está a tentar dividir aquilo porque os Estados Unidos estão preocupados com outras coisas.

 

É uma questão de marcar território e de se mostrar ao mundo?

Claro. E de marcar posições. Mas para isso também vai ser preciso dinheiro. Vai ser preciso manter bases militares, dar de comer àquela gente toda e depois vão começar as contradições entre a Turquia, o Irão e a Rússia.

 

Os conflitos regionais são cada vez mais [cobaias] de novas armas e tácticas de guerra, como a ciberguerra e as guerras híbridas. 

 

Essas relações foram perturbadas recentemente, nomeadamente com a Turquia, e houve vários incidentes.

E poderá haver outros. Porque os russos apoiam os curdos. Os turcos não querem ouvir falar dos curdos. Ou seja, a Rússia está envolvida naquele conflito, está envolvida na Ucrânia. Um dos problemas que levou ao fim da União Soviética, além da queda do preço do petróleo, foi participar em demasiados conflitos regionais em que não tinha força. Angola, Afeganistão, Etiópia, etc.

 

O ministro russo da Defesa disse que na Síria foram testados 162 tipos de armas. Parece que este conflito está a ser um campo de treino para os russos.

Aquilo é um polígono ideal. Primeiro, para limpar os armazéns do que lá têm fora de prazo. E depois, [experimentar] novas armas, novos mísseis…

 

São cobaias do material bélico russo?

Os conflitos regionais são cada vez mais isso. É onde se experimentam as novas armas e o novo tipo de tácticas de guerra, como a ciberguerra e as guerras híbridas.

 

O que é que pretende com este livro?

Fazer uma reflexão sobre o que me levou a mudar na vida.

 

Estamos a falar em termos políticos ?

Em tudo. Em termos políticos, filosóficos, morais, humanos. Tenho um princípio que é: só os burros é que não mudam de ideias. É uma reflexão sobre o que vivi, como vivi e também tem uma parte de desmistificação sobre o que é a vida de um correspondente. Há correspondentes de órgãos de informação do Estado ou de grandes cadeias de rádio, televisão, etc., que têm um determinado tipo de vida. E há outros que têm de trabalhar para três órgãos de informação para poderem sobreviver. Isto também é uma coisa para arrefecer um bocadinho o lirismo dos jovens jornalistas.


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