Notícia
Jacinto Godinho: Temos uma memória mítica e um pouco lendária
Autor da série “A PIDE Antes de PIDE”, o jornalista e investigador Jacinto Godinho dedicou os últimos 10 anos da sua carreira a tentar perceber a polícia política do Estado até 1974.
Disse uma vez, numa entrevista, que sempre lhe tinha feito confusão a PIDE ser "um fantasma abstracto". Foi esse o ponto de partida que o levou a fazer o documentário?
Se calhar, há aqui vários caminhos que levam à questão da PIDE. Sim, foi um desses. Incomodava-me um pouco em todas as leituras que fazia, quer fossem mais jornalísticas, ou nas leituras mais especializadas, que – tirando três ou quatro nomes, todos eles muito recentes e muito próximos da memória dos protagonistas – a PIDE era sempre a PIDE.
Era algo de abstracto?
Era a PIDE que prendia – "depois foi lá a PIDE e prendeu" –, os "agentes da PIDE"… era como se não houvesse ninguém por trás, como se não houvesse um português por trás. Era como se não houvesse alguém que não tivesse a sua própria história.
E a sua responsabilidade?
E a sua responsabilidade, também. Acabava por ser um pouco genérica, mas essa generalidade empurrava essa responsabilidade para um fantasma. A PIDE ganhou efectivamente esse aspecto de lenda negra no imaginário português, mas o que é certo é que toda aquela corporação, toda aquela gente, que são filhos de portugueses, que estão por aí, que circulam, que estão em todo o lado, era gente que não estava, pura e simplesmente, referenciada. O meu objectivo também não era, obviamente, andar a perseguir agentes da PIDE…
Mas pode haver essa dúvida: se era movido, de alguma forma, por um sentido de justiça, no sentido de responsabilizar as pessoas que fizeram parte da PIDE e que ainda estão vivas, ou os seus descendentes.
Não, não. Um jornalista não é um juiz. Nem um advogado. Um jornalista é alguém que tem de apresentar os dados, para que os outros – os leitores e as pessoas que têm contacto com a sua produção –, esses sim, possam julgar. Acho que obviamente temos o dever de apresentar esses dados todos. De mostrar todas as histórias e permitir que, se as pessoas acharem que houve injustiça, que elas próprias, pelo menos através da memória, corrijam essas injustiças.
Fazem os jornalistas, de alguma forma, apresentação de provas?
Apresentação de provas, apresentação de histórias, ir um pouco mais longe e esperar que a memória seja menos mítica e mais factual. E que, com isso, nós próprios, ao nível da memória, não estejamos a cometer as nossas injustiças. Seja a de não avaliar bem quem teve responsabilidade, seja ao mesmo tempo a de não esquecer quem teve o mérito de poder ter lutado e se sacrificado, de uma outra forma, para que determinadas condições de vida, políticas, a liberdade, a liberdade de expressão, pudessem ser alcançadas.
Ou daqueles que sofreram injustamente mesmo sem terem resistido, de alguma forma? Porque há milhares de pessoas, das quais faz prova no seu documentário que existiram – em filmagens, fotografia, registos policiais –, que, ao não ser mencionado o procedimento da PIDE, desaparecem?
Sim. A memória portuguesa é uma coisa estranha. É uma memória mítica. Que realça determinados episódios que depois são muito reproduzidos. Todos os portugueses conhecem os episódios de Pedro e Inês, da morte dos Távoras, do terramoto de Lisboa. Mas, por exemplo, o assassinato do António Granjo, o primeiro-ministro, e de uma série de individualidades em 1921 é uma coisa que se apagou completamente da memória. Esta memória mítica e um pouco lendária é um pouco estranha e, se calhar, injusta. Temos de tentar fazer um esforço para fazer com que a História seja mais factual, aproximando a História da memória. Que a memória seja menos da lenda e mais uma história construída, trazendo várias comparticipações – dos historiadores, mas os jornalistas também têm aí um papel.
Os jornalistas estão mais próximos dos historiadores?
Não temos de estar próximos do historiador. Nós temos o nosso papel. É verdade que o jornalismo, tradicionalmente, sempre teve como especialidade a actualidade. Mas isso não significa que, em muitos casos, o jornalista não trabalhe a própria História – vai buscar exemplo do passado. Também temos esse dever, mas temos de ir lá com as nossas próprias armas. Que não deixam de ser as armas do rigor. Temos essa capacidade para investigar e em muitos casos trata-se até de um dever de justiça. Trata-se de ir à História resgatar algum trabalho que o jornalista não fez ou que não pôde fazer. Porque, por exemplo, todos estes anos da PIDE foram anos de censura, muitas daquelas histórias não puderam ser relatadas…
Um dever de justiça também para com aqueles que quiseram escrever e não puderam?
Também, também. Os jornalistas também não foram só vítimas, também houve aqui responsabilidades. O que é certo é que as histórias não foram contadas. Muitas das histórias. E em grande parte isso foi outro dos motivos desse interesse, que era tentar perceber um período importante da nossa História recente, mas do qual havia muito poucos vestígios. Poucas peças nos jornais, poucas imagens, sobretudo, e muitos rostos que eram tratados nas páginas dos livros de História que ninguém os conhecia. E, como ninguém os conhecia, lá está mais uma vez um manto de silêncio, uma espécie de nevoeiro grande que vai crescendo sempre à volta da História, que à medida que a memória dos protagonistas vai desaparecendo também se vai apagando. Faz-me pensar que, daqui por uns anos, quando morrer toda esta geração dos protagonistas dos anos 60 e dos anos 70, vai acontecer a mesma coisa.
Isso é notório no episódio do seu documentário quando fala do aviador Sarmento de Beires. É uma lacuna histórica?
O caso do Sarmento de Beires não é o único, mas é bastante interessante. Todos nós conhecemos um pouco a história do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral e da sua viagem. É histórica. Isso ficou. Mas tudo o resto, aqueles que foram os pioneiros da aviação, isso praticamente desapareceu. E o Sarmento de Beires não só foi um pioneiro da aviação – posso discutir se os seus raides Milfontes-Macau e depois a tentativa de dar a volta ao mundo foram mais ou menos importantes do que a travessia nocturna do Atlântico Sul –, mas o que é certo é que tudo aquilo faz parte de um contexto. Foram heróis celebrados. Nessa altura (anos 20 e 30), os heróis eram famosos, eram celebridades como é hoje o Cristiano Ronaldo. Conto, noutro episódio, outra história, que é a do António Roquete [antigo guarda-redes da selecção nacional que foi mais tarde agente da PVDE], que é muito parecida. Vendiam-se postais do Sarmento de Beires como do Roquete. O que seria hoje se, de repente, o Cristiano Ronaldo se tornasse ou agente da polícia ou um resistente na oposição? Seria uma história fantástica. Mas foi isso que aconteceu. O Sarmento de Beires era uma figura pública, conhecidíssima, com ligações intelectuais à Seara Nova, mas ao mesmo tempo um pioneiro, um ás da aviação com retratos reproduzidos em cartazes e postais por todo o lado, e que se tornou uma figura importante da oposição ao regime. Para determinadas formas de pensar a História – factual, de eventos –, talvez não seja assim tão importante. Talvez seja mais interessante ver as coisas num contexto. Mas, do ponto de vista do jornalismo de investigação...
É uma personagem?
Estas histórias são personagens. E não deixa de ser inquietante a rapidez com que elas desaparecem da memória, do espaço público, da História, de toda essa "memorabilia", dessas comemorações que, de vez em quando, vêm às capas dos jornais. São esquecidas. Acho isso preocupante do ponto de vista da memória histórica.
Quando surgiu a ideia de fazer um documentário que resultou na série "A PIDE Antes da PIDE"?
Comecei a fazer este jornalismo de investigação histórica já há quase 16 anos, numa série documental que foi a "Crónica do Século". O projecto da "Crónica do Século" já vinha desde os anos 80, mas entretanto ficou parado por falta de meios e estava-se a aproximar a passagem do ano 2000. Então decidiu-se criar um grupo para poder "desenrascar" o projecto. Fiz um dos episódios, sobre um período que era um dos mais desconhecidos (e decidi fazê-lo precisamente por causa disso), que era o período final da República, entre o golpe do Sidónio Pais e o 28 de Maio de 1926. Fiquei fascinado porque aquele era um período quase desconhecido, pouco falado, mas muito difícil de narrar. Porque os episódios eram tantos, os governos sucediam-se de tal maneira, a confusão no país era tão grande, mesmo a fragmentação política do país era muito grande. O que tornava extraordinariamente difícil de contar aquele período.
Mas mais desafiante?
Sim, mais desafiante. Ganhei um certo "bichinho" [por essa época]. E, além disso, como abandonei a investigação à beira do 28 de Maio, sempre fiquei um pouco com essa curiosidade de continuar a investigar. Porque tinha mergulhado tão profundamente naquele período entre 1910, mas mais finais de 1917, e 1926, que, depois, essa minúcia, esse rigor com que tinha lido e apreciado aqueles tempos não tinha continuidade. E tinha curiosidade em seguir o destino de alguns protagonistas que surgiram naquele tempo, mas nunca mais tive oportunidade de o fazer. Depois de alguns trabalhos, o projecto que fiz a seguir, deste género, foi a "História da Emigração Portuguesa", o "Ei-los que partem". E esse projecto veio num período em que efectivamente houve na RTP uma vontade de tornar o documentário um símbolo do serviço público.
Em que data?
Estamos a falar em 2005-2006. O "Ei-los que partem" começou a ser feito em 2005. E o projecto vem daí. Na altura, houve também a vontade de dar uma outra força à guerra [colonial] com a a série documental do Joaquim Furtado, houve a série de episódios do António Barreto, "Portugal – Um retrato social", e todos em horário nobre. Fomos incentivados a produzir documentários, a apresentarmos ideias para fazer este tipo de documentários. Eu e mais três colegas fizemos a "História da Emigração", mas aquilo era uma coisa para continuar. E eu, assim que acabei a "História da Emigração", fiz uma outra coisa parecida para os 50 anos da RTP, em 2007, que eram os "50 anos, 50 notícias", pequenos apontamentos que passavam a seguir ao telejornal – eu, a Sofia Leite e o António Louçã. Depois, apresentei logo o projecto da PIDE, que ainda vinha nesse contexto. Só que pensei que seria um trabalho, do ponto de vista documental, mais fácil de executar.
Porquê?
Porque ia trabalhar a partir da tese da professora Irene Pimentel e pensei que, partindo de uma tese de doutoramento, grande parte do trabalho já estaria feito. Só que percebi que, no caso da PIDE, era muito mais complicado. A professora Irene Pimentel fez grande parte do seu trabalho, também, com base nos arquivos da Torre do Tombo, e bem, porque em grande parte é lá que está toda a informação. Rapidamente nos apercebemos de que a parte mais difícil era a mais complicada. E a parte mais difícil era conseguir o lado visual. Um documentário televisivo tem de ter imagens e tem de ter testemunhos. Portanto, havia duas frentes muito complicadas de trabalhar, que era a frente dos testemunhos e a frente visual. A frente dos testemunhos é complicada porque, logo de início, quis entrevistar muitos dos protagonistas do outro lado. E sabia que isso era uma coisa bastante difícil.
Quando diz "do outro lado" refere-se a...?
Aos ligados à PIDE, os agentes da PIDE, os inspectores, a pessoas que estavam vivas – e mesmo algumas pessoas que não estavam ligadas à PIDE, mas que tiveram alguma relação com a PIDE. Que estiveram ligadas aos governos, por exemplo, ao Exército, que tiveram algumas responsabilidades no regime do Estado Novo. Achei que era fundamental fazer isso no documentário. Porque tem que ver com a nossa deontologia do contraditório – e, como jornalista, sentia que tinha de fazê-lo. Embora ainda houvesse um grande estigma acerca de ouvir os agentes da PIDE, porque era como estar a "lavar".
Sentiu isso? Ainda sente?
Sim, ainda sinto.
Que pode ser acusado de branquear a História, de alguma forma, pelo simples facto de ir entrevistá-los?
Existe uma certa ideia de que basta dar voz, porque já é estar a dar estatuto, estar a branquear. Nós, no jornalismo, não podemos ter essa ideia, não é? Porque isso, obviamente, é qualquer coisa que não faz sentido. Temos é de ter investigação suficiente para não deixarmos nenhuma pergunta por fazer. Ou para, durante a entrevista, fazermos o contraditório. E, depois, arranjar toda a informação suficiente para poder contextualizar as entrevistas. As pessoas têm uma tendência para narrativizar e reinterpretar a sua própria memória. Esse trabalho foi muito complicado e difícil, contactei muita gente, mas muita gente se recusou a falar – mesmo quando já tinha escrito livros e já se tinha assumido como tendo pertencido à PIDE – quando chegou a altura do documentário. Não sei se foi por terem percebido que a coisa ia muito além da rama. Mas esse processo foi todo demorado, como foi o processo das imagens. Outro dos problemas era a imagem dos rostos da PIDE. Porque eles eram funcionários públicos e, como tal, tinham as suas fichas de cadastro. Mas qual foi o meu espanto quando percebi que esses processos não estavam abertos à consulta, tal como estavam os restantes processos – de alguma forma, era uma coisa injusta. Porque mesmo muitos dos processos que estavam abertos para consulta e que eram expurgados, como são os processos dos detidos, dos presos políticos e pela PIDE, nós podemos consultá-los.
Mas, no caso da informação dos funcionários públicos que fizeram parte da PIDE, não foi assim?
Eu precisava deles. Porque, tirando o Silva Pais e mais três ou quatro agentes que eram relativamente conhecidos, ninguém conhecia outras caras que eram faladíssimas das entrevistas, como era do inspector Sachetti, do Gouveia, do Mortágua, do José Gonçalves. Eram rostos que não conhecíamos e eram necessários para a minha história. Como é que eu ia contar a história? Depois, precisava de os conhecer para os poder identificar noutras imagens. Essa foi uma grande batalha, que terminou na Assembleia da República, com vários pedidos e que demorou vários anos. Aliás, já estava em edição desta série quando chegou a autorização para poder aceder aos ficheiros.
Considerou isso uma vitória?
Considerei. E é curioso que, há pouco tempo, estive com um deputado da Assembleia da República na apresentação de um documentário que fiz no ano passado, chamado "Os últimos dias da PIDE" (no 25 de Abril), e ele contou-me que ia pela primeira vez ver o documentário para o qual tinha lutado em tantas sessões da comissão [da Assembleia] – quase seis meses de discussão, em que a coisa estava dividida. Ainda havia um grande temor porque as famílias estavam vivas e não mereciam ser incomodadas – nunca o foram! Fiz muitas e muitas vezes essa pergunta às pessoas que foram presas pela PIDE, se voltaram a encontrar as pessoas que os interrogaram e que os torturaram. E, nalguns casos, sim, cruzaram-se com eles. E diziam que tinham vontade de fazer, mas portaram-se de forma muito civilizada. Logo a seguir ao 25 de Abril, houve a oportunidade para fazer vingança pelas suas próprias mãos. Na maior parte dos casos, as pessoas que sofreram torturas – e foram torturadas, e a tortura não é desculpável à luz de nenhum regime e de nenhuma situação e de nenhuma ideia –, mesmo essas, clamaram sempre por justiça. Mas por uma justiça legal e não por nenhum outro tipo de justiça.
O que impedia o acesso aos processos era a vergonha das famílias, dos descendentes dos antigos funcionários da PIDE?
A vergonha, ou então, mesmo que não fossem as famílias, o receio dos responsáveis, se calhar, de serem um pouco mais papistas que o papa, de acharem que poderiam estar ali a abrir uma caixa de Pandora e de reiniciar agora um processo de perseguições, que acho que nunca existiu. Os portugueses têm o direito de saber. Têm o direito de saber quem é que fez, porque é que fez – isso é um caso de justiça elementar. Ainda que não se vá mais longe e repetir os julgamentos, pelo menos ao nível do conhecimento, do que aconteceu. Não há o direito a limitar a História nesse sentido, da investigação. É óbvio que tem de haver cuidados. Também não queremos, a partir daqui, dar origem a outros processos de vingança pessoal e de perseguições. Mas essa situação está posta de lado. E, possivelmente, muitos dos agentes também têm as suas coisas a dizer, também se podem sentir prejudicados e têm o direito a falar, têm o direito a que a sua palavra seja julgada da mesma maneira, pelas outras pessoas.
Mas fingir que não aconteceu é que não é o melhor caminho?
Fingir que não aconteceu, estender um manto de silêncio e, com isso, não criar condições nenhumas para que mais tarde a memória não se torne História – isso, eu acho preocupante. Lá está outra das tarefas do jornalismo: o jornalismo cria fontes primárias. Com este trabalho, uma das principais missões, que é uma missão do serviço público, é criar essas fontes primárias, que é entrevistar as pessoas. Aquelas entrevistas ficam. Algumas delas têm oito, nove horas de duração. Gostaria de ter essas entrevistas em relação aos anos 30 e 40. Se hoje temos esses meios que não havia naquele tempo, é uma tarefa do serviço público. É uma das tarefas fundamentais do serviço público de televisão, criar condições para que exista esse dever de memória. De manter lá o arquivo e disponibilizar depois à comunidade de investigadores, para que daqui a 100 anos eles possam ter as entrevistas do Dr. Cunhal, do Dr. Mário Soares, do Edmundo Pedro, do Joaquim Gomes, das pessoas mais e menos conhecidas. Que possam ter ali uma base para que possam fazer outro tipo de reflexões, perceber quem eram aquelas pessoas, a sua linha de pensamento, de argumentação – acho isso fundamental.
O que leva à questão do financiamento dos documentários e ao que já chamou noutra altura a "desertificação de géneros à volta da notícia" a propósito do que é hoje o contexto das redacções na comunicação portuguesa. Quanto é que custa um documentário destes?
Custa muito menos dinheiro do que aquilo que se imagina. Aliás, essa questão devia ser pública, e não é – os portugueses não sabem quanto é que custa uma telenovela, uma série ou o telejornal. Mas deviam discutir. O custo depende. Tem custos directos e tem custos indirectos. Não consigo dizer quanto é que ele custou – custaria normalmente entre 150 a 200 mil euros. Sei que há determinadas coisas em que, nem de perto nem de longe, esgotei aquilo que tinha orçamentado. Mas, possivelmente, noutras coisas que são os meios, por exemplo, a ocupação de salas de edição, possa ter tido um outro custo. Isso também tem que ver com a maneira de quem faz as suas próprias contas. Mas a justiça deste tipo de avaliação devia ser feita no total. O problema dos documentários na RTP é que também precisam de uma máquina, de uma estrutura montada.
Que não há?
Não existe e já existiu alguma. Quando a RTP surgiu nos anos 50, criou uma pequena estrutura em que havia realizadores especializados, havia guionistas, havia pesquisadores. O problema de fazer o documentário é que, em grande parte, tudo se concentra muito sobre a pessoa, que faz tudo: as entrevistas, que realiza, tem de editar tudo, tem de fazer a gestão final, a correcção e tudo isso. As pessoas que trabalharam comigo, desde a imagem à pós-produção áudio, à edição, todas elas foram extraordinárias. Mas a questão é que aquilo tem de estar centrado sobre uma pessoa que tem de, de alguma forma, substituir a estrutura que não existe. E, não existindo essa estrutura, supostamente ela seria mais cara, mas poderia ser rentabilizada havendo mais trabalhos. Para que estes trabalhos não sejam tão episódicos.
E acha que há possibilidade de haver uma estrutura desse género na RTP?
Não vejo muitos sinais disso, sinceramente. Existe vontade, porque veio num contrato de serviço público. Mas o que é certo é que estas coisas pagam-se, quando se fazem investimentos numa determinada área, no sentido dos directos, por exemplo. É óbvio que todas as outras ficam penalizadas.
Mas não é por falta de apetência do público, é?
Isso sempre foi a minha defesa e de quatro ou cinco colegas, como a Anabela Saint-Maurice, a Margarida Metello, a Sofia Leite, que acabou agora de ganhar o prémio Gazeta, com um trabalho deste núcleo dos documentários [ reportagem "Água vai, pedra leva"]. Penso que traz prestígio para a RTP, apesar de nós próprios, ao longo destes anos todos, termos sido sempre, de alguma forma, pressionados. Houve um certo "bullying" com o tipo de discurso de que isto são coisas que não fazem audiências, que não interessam muito...
Mas quando diz "bullying"...
"Bullying" é talvez uma expressão demasiado forte. Sentimos que somos apanhados por várias armadilhas. Como não temos meios, demoramos mais tempo a fazer os trabalhos, e isso também nos penaliza lá dentro, não é? Porque também, numa casa onde toda a gente trabalha para o instante, as pessoas que não trabalham da mesma maneira, sentem ...
Que não produzem tanto?
Que não produzem tanto. Porque ninguém consegue perceber que eu posso estar ali cinco dias, mas trabalho cinco dias duros, todos os dias cinco, seis, sete horas, na sala de edição, para montar dois ou três minutos – ninguém está lá para ver, não é? É muito difícil traduzir esse produto final em trabalho. Penso que a série, afinal, até mostrou, o trabalho. A pintura das fotografias, todo aquele trabalho para rentabilizar, e tornar aquilo com alguma qualidade visual, penso que quem percebe um pouco de televisão entende o trabalho que ali está.
Mas até à saída do produto final, há uma caminhada no deserto?
Há uma caminhada terrível. Eu chamo, para mim, o mito de Sísifo. Ou seja, mesmo que a gente chegue lá e atinja um certo patamar de reconhecimento, rapidamente a pedra volta a cair e volta a ser necessário empurrá-la até lá cima. É sempre a mesma coisa.
Mesmo assim, não desiste? Não o faz desistir deste género jornalístico?
Não desisto por duas razões: para já, porque tenho quase 30 anos de carreira e já fiz tudo na televisão. Comecei por "breaking news", estive numa delegação, trabalhei e geri a delegação [de Faro], cheguei a fazer quatro, cinco peças por dia, do desporto à economia e à política. Fiz jornalismo de investigação, com muitas histórias, que me deram muitas dores de cabeça e muito trabalho. E, às tantas, quando uma pessoa está na RTP e é serviço público, olha para a sua carreira e para a sua profissão e pensa: "Mas o que é que, em termos de objectivos e de missão, me falta fazer?" Falta fazer isso. É preciso ter a ideia de que, em muitos casos, é preciso resistir dentro da própria casa, haver gente, mesmo que seja considerada chata, mas que tenha no rosto o cunho "lá vêm os chatos dos documentários". Porque, se não fosse de dentro, de uma série de pessoas que lá estão a defender a possibilidade de fazer um outro tipo de produto, um outro tipo de trabalho, mesmo na informação, não sei o que aconteceria.
Quando dá aulas, e passa os seus receios sobre o jornalismo actual, do outro lado, o que é que recebe? Ainda há muita gente a querer vir para jornalismo?
Há muita gente a querer vir, embora hoje em dia exista um problema – esse sim, que é um problema que tem que ver com a cultura. Que é o facto de muita gente, muitos miúdos, procurarem o curso que lhes dá mais emprego. A questão…
Do mercantilismo da formação académica?
Eu acho isso terrível. Acho que é uma preocupação pragmática, mas acho que mata tudo aquilo que é, que deveria ser, a busca de uma formação. E de uma formação universitária. A aprendizagem não é ir atrás daquilo que já se sabe. A aprendizagem é preparar a cabeça, é estar disponível. É um estar de disponibilidade para aquilo que não se conhece. É ter a curiosidade. Isto desafia-me, isto incomoda-me, mas vou tentar perceber. A atitude dos bons alunos sempre foi esta. Estar a fazer constantemente esta avaliação. Há aqui uma espécie de materialismo que logo à partida mata a paixão.
E o jornalismo precisa de paixão?
Precisa de muita paixão. Mas não é uma paixão doida, romântica, utópica. É a paixão pela coisa pública, uma paixão por conhecer o outro, pela curiosidade. Acho que é muito difícil querer ser jornalista, querer fazer jornalismo, querendo em primeiro lugar ser jornalista. O querer ser jornalista é estar já a pensar naquilo em que me vou tornar se for jornalista: ficar conhecido, vou aparecer nas páginas dos jornais, nas eventuais benesses. Fazer jornalismo não é nada disso.
Para si, o que é fazer jornalismo?
Fazer jornalismo é ter uma preocupação total com a coisa pública…
É uma noção muito de serviço público, não?
Não, não. Não tem que ver com serviço. Não tem que ver com essa coisa missionária. Tem que ver com uma curiosidade em relação ao outro, em relação à sociedade. Uma vontade de conhecer, de perceber o diferente, de contar histórias. E esperar aceitar também essa cultura e essa curiosidade pelos outros. Porque, se não tivermos leitores curiosos, com vontade de saber, também dificilmente lá chegaremos. Já estava preparado por causa do discurso com que me foram – até às vezes de uma forma subliminar –, nestes últimos anos, preparando na RTP, para que a série não tivesse grande aceitação. Ela começou por ser uma série do Canal 1…
Não tivesse grande aceitação dentro ou fora da RTP?
Fora, fora. Disseram-me uma vez, numa reunião, que aquilo era uma coisa muito boa, mas para o canal História – porque qualquer produto da RTP tem de lidar com as audiências, mesmo que não lide absolutamente nada. Tem havido aí investimentos simplesmente desastrosos ao nível de séries e telenovelas. Já é uma espécie de cultura de auto-aceitação. Aceitei muito bem que a Teresa Paixão e o Canal 2 [RTP2] me dessem a oportunidade de acabar a série, foi óptimo para mim. Considero que o público do Canal 2 é um público idóneo, culto, e aceitei muito bem que a série fosse para o Canal 2. Para ver uma série daquelas é preciso entrar e estar lá completamente concentrado. Esse tipo de cultura nas massas de espectadores foi desaparecendo. O facto de ter havido, em média, 100 mil espectadores no Canal 2 a ver, e mesmo agora [a entrevista foi realizada durante a segunda passagem da série documental, que acabou na passada semana, na RTP3], é quase sempre o melhor programa da RTP Informação e só não o foi quando houve ciclismo. Ter à volta de 50 mil espectadores entra nas tabelas dos canais de informação, é realmente elucidativo. Demonstra bem que existe um nicho muito importante, que o serviço público não deve desprezar e que precisa de um produto com um certo investimento e maior qualidade, mas que é extraordinariamente importante. Mas é por aí que se tem trabalhar. Que se deve ir.
Usando a sua expressão, que quando um jornalista acaba um trabalho está "em convalescença", já passou esse período para si?
O último episódio da série foi entregue três dias antes de ir para o ar. Começou [a ser transmitida] a 29 de Maio [na RTP2]. Como não estou nas redes sociais, as pessoas que tiveram mesmo vontade de discutir comigo contactaram-me. Por e-mail. E apresentaram-se argumentos excelentes. A série é uma série sobre a PIDE, nunca acabaria em 1945 [como acaba esta série de nove episódios]. Só que, numa primeira fase, fiz as entrevistas, e às tantas estava a fazer entrevistas sobre coisas de 1974 misturando coisas de 1973 – aquilo era um peso tremendo. Por isso, decidi arrumar primeiro esta parte da História. Mas a série era para começar com um episódio de introdução, do que seria a PIDE hoje. E que praticamente tenho filmado. Tenho tudo. Mostrando alguns agentes da PIDE como vivem hoje, o que são os arquivos, e que percepção é que as pessoas hoje têm da PIDE. Era preciso fazer também uma sondagem, um inquérito.
Mas é material que pode vir a ser usado?
Pode, pode. Não fiz esse episódio porque uma das bases, que seria fazer o inquérito, não tinha dinheiro para o fazer. Tentar perceber, entre as pessoas do povo, sobretudo as mais novas, o que é para elas a PIDE hoje. O que é que significa, que nomes, que episódios conheciam. Era ir um pouco em busca de tentar perceber o que é que existe do mito e da lenda negra da PIDE.
Ainda vê sinais da PIDE e do pensamento da PIDE na sociedade portuguesa de hoje?
Se pensarmos que, em grande parte, a marca da PIDE está associada à infâmia da tortura – essa imagem que existe da PIDE como os torturadores silenciosos, na obscuridade… só que a PIDE não era só isso. A PIDE era sobretudo a rede tentacular e clientelar das informações. Que ao mesmo tempo liga com outra coisa que estruturou também o Estado Novo e muitos dos poderes em Portugal, que é a estrutura clientelar, das cunhas. Do pequeno favor. Um trabalho histórico que valia a pena fazer era ver como é que, ao longo dos anos, as várias estruturas políticas e poderes conseguiram sobreviver e predominar na sociedade à conta da rede clientelar que foram produzindo. E que o Estado Novo, e a figura do próprio Salazar, é o exemplo típico disso. Se calhar, é o que o aproxima também da forma moderna de fazer poder, porque nós vimos que todos esses casos que estão aí a ser discutidos de corrupção têm muito a ver com isso.