Notícia
Inês Fonseca Santos: É muito importante termos tempo para nos aborrecer
Ainda se olha com desconfiança para as mulheres que pensam, diz Inês Fonseca Santos, escritora e jornalista que está a coordenar o ciclo de leituras para a infância “Poesia-me” no Teatro São Luiz. A próxima sessão acontece no dia 29 de Abril.
Ainda se olha com desconfiança para as mulheres que escrevem poesia, ainda se olha com desconfiança para as mulheres que pensam, diz Inês Fonseca Santos, escritora e jornalista que está a coordenar o ciclo de leituras para a infância "Poesia-me" no Teatro São Luiz, em Lisboa. Na próxima sessão, no dia 29 de Abril, Isabel Minhós Martins e Yara Kono serão as anfitriãs deste espaço de partilha de palavras e de silêncios, onde as crianças são convidadas a ser crianças e os adultos também. Onde os adultos podem tentar alcançar a sua "segunda e mais perigosa inocência", como escrevia Manuel António Pina, poeta estudado por Inês Fonseca Santos. Licenciada em Direito, a jornalista edita e apresenta programas como "Os Livros" e "Todas as Palavras" e publicou as obras "A Palavra Perdida" e "A Habitação de Jonas", entre outras. Seguir-se-á "Suíte sem Vista".
O meu avô lia muita poesia e, como estava sempre comigo e com a minha irmã ao colo, lia em voz alta e nós ouvíamos. Eu ficava muito intrigada com aquilo tudo, mas gostava. Ele lia muitas vezes a "Tabacaria", do Álvaro de Campos, e repetia o verso - Come chocolates, pequena/ Come chocolates! / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates - porque eu era, e sou, viciada em chocolates. O meu avô, basicamente, alimentou-me a chocolates, à revelia da família! Ele também nos lia Miguel Torga. Claro que eu não percebia tudo, mas só o facto de me cruzar com aquelas leituras alimentou-me a curiosidade e criou-me a expectativa de um dia regressar ali e compreender então aquilo na totalidade, e foi o que aconteceu.
Eu fui criada muito assim, em casas cheias de livros, lia tudo o que encontrava e despertei cedo para a literatura, mas acabei por seguir Direito. Nunca tive grandes imposições familiares, sempre escolhi o meu caminho, mas à medida que crescemos tentamos copiar determinados modelos e eu achei que queria ser advogada como o meu pai. É verdade que o curso tem coisas interessantes, desde a História à Filosofia do Direito, e foi-me útil para estruturar o raciocínio e fazer uma ponte para a vida real, já que eu passava a vida fora da realidade. Por isso, o Direito não foi totalmente em vão, mas não era para mim, de todo, nem sequer me lembro bem desses cinco anos, parece que tenho ali um buraco negro. Depois fui para Letras e curei-me de tudo.
O Pina dizia que a poesia é uma forma de salvar ou de tentar salvar a vida. Conheci-o durante o mestrado [em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea], quando comecei a fazer trabalhos sobre a sua poesia. Trocámos e-mails, um dia conhecemo-nos e nunca mais nos largámos. Ele era assim, começava logo a conversar com as pessoas e a partilhar histórias, era divertidíssimo. E é curioso, ele fazia-me lembrar o meu avô. O meu avô também ia para a rua connosco, jogava crapô, ensinava-nos a jogar xadrez, parecia que tinha sempre imenso tempo. O Pina também era assim, tinha sempre tempo para os outros, cruzava-se com alguém na rua e ficava ali horas a conversar, era amigo de todos os sem-abrigo do Porto, dos polícias, de toda a gente. E isso fascinava-me muito porque, apesar de eu ter essa curiosidade sobre as pessoas, como sou muito tímida, às vezes falta-me esse à-vontade que o Pina tinha e que o meu avô também tinha, então punha-me ao lado deles a ouvir. Eles tinham uma enorme capacidade para ouvir, apesar de falarem muito. Eles eram uma espécie de eternas crianças.
A infância tem uma relação de espanto com o mundo e com a linguagem que é algo que vamos perdendo à medida que crescemos, mas só vamos perdendo se deixarmos, porque só deixamos de aprender quando morremos. Até lá, temos de estar alerta, não podemos estar adormecidos. O Pina tem um poema que se chama "Uma segunda e mais perigosa inocência", uma citação de Nietzsche, onde diz que já não podemos ter aquela primeira inocência, mas podemos ter um segundo olhar, mais perigoso por estar mais contaminado, que tenta recuperar o primeiro. Portanto, estamos condenados à tentativa e à aproximação e acho que a leitura de poesia ou da literatura em geral é um dos modos de reaprender o nosso espanto, a nossa imaginação. E há uma coisa que adoro fazer, que é conversar com os mais novos, farto-me de aprender. Numa das últimas sessões do "Poesia-me", feita a partir de "O Mar", do Ricardo Henriques e do André Letria, havia um miúdo que sabia tudo sobre o mar, desde os mitos até aos peixes, conhecia mesmo tudo, tal era o seu encanto.
Quando nos tornamos adultos, andamos sempre com metas e objectivos e deixamos de ter esse espaço e esse tempo para nos encantarmos assim por algo. Olhamos demasiadas vezes para as coisas e esquecemo-nos de reparar nelas por estarmos, a partir de determinada altura, sujeitos às regras - podem ser as regras gramaticais na linguagem, podem ser as convenções do nosso dia-a-dia. Olhar para o mundo e não reparar nele é como viver numa casa com uma vista espantosa e nem sequer nos lembrarmos de abrir a janela. Esta nossa forma de vida vai-nos amputando. E depois há a escola, onde os miúdos são obrigados a entrar numa grelha e a preencher essa grelha e onde a imaginação tem cada vez menos espaço, sendo que há óptimas experiências de professores que levam os alunos ao teatro e que tentam despertar-lhes a curiosidade para a literatura.
Acho que vivemos tempos especialmente empobrecidos. Por um lado, as pessoas têm imensas solicitações e têm vidas difíceis, ganham mal, trabalham muito, andam a correr de um lado para o outro e, no meio disso tudo, é complicado arranjar um espaço para parar e respirar. E depois temos uma cultura de consumo de lixo, em que as pessoas são tratadas como sendo incapazes de pensar e, portanto, são alimentadas com livros, discos e programas de televisão que as põem num estado de sonolência. Quando fiz o programa "Os Livros", na RTP3, algumas pessoas diziam-me: finalmente, li um livro de poesia, não fazia a mínima ideia de que gostava.
Faz-nos falta alguma lentidão para termos momentos de pausa e reflexão. Os próprios miúdos estão a desaprender essa coisa absolutamente elástica que é o tempo na infância. Lembro-me de ter férias grandes que nunca mais acabavam, lembro-me de que um dia nas férias grandes era um dia tão longo que eu até tinha tempo para me aborrecer, e hoje sinto que os miúdos estão sempre ansiosos, sinto que estão a desaprender o tempo da espera. Nós coleccionávamos cromos e tínhamos de esperar por uma nova carteirinha, hoje é possível ter tudo neste instante e as crianças são quase obrigadas a estar sempre entretidas a fazer qualquer coisa quando às vezes não é preciso, podem estar só por estar, acho que é muito importante termos tempo para nos aborrecer. Para esperar. Costumo dizer que o meu tempo é o da espera, até mesmo para escrever.
Ainda se olha com desconfiança para as mulheres que escrevem poesia, ainda se olha com desconfiança para as mulheres que pensam. O meio literário ainda é muito machista, como todos os meios, e há uma espécie de condescendência para com as mulheres. Se aparece uma mulher que escreve poesia e se destaca, é comum ouvir o comentário: ela até é boa poeta. Isso nunca se diria de um homem. Uma vez perguntaram-me qual a diferença entre poesia no feminino e poesia no masculino, respondi que a única diferença é que se uma mulher escrever a palavra amor é rotulada como delicodoce, se for um homem é porque é sensível. É preciso desconstruir os preconceitos.
O meu avô lia muita poesia e, como estava sempre comigo e com a minha irmã ao colo, lia em voz alta e nós ouvíamos. Eu ficava muito intrigada com aquilo tudo, mas gostava. Ele lia muitas vezes a "Tabacaria", do Álvaro de Campos, e repetia o verso - Come chocolates, pequena/ Come chocolates! / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates - porque eu era, e sou, viciada em chocolates. O meu avô, basicamente, alimentou-me a chocolates, à revelia da família! Ele também nos lia Miguel Torga. Claro que eu não percebia tudo, mas só o facto de me cruzar com aquelas leituras alimentou-me a curiosidade e criou-me a expectativa de um dia regressar ali e compreender então aquilo na totalidade, e foi o que aconteceu.
O Pina dizia que a poesia é uma forma de salvar ou de tentar salvar a vida. Conheci-o durante o mestrado [em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea], quando comecei a fazer trabalhos sobre a sua poesia. Trocámos e-mails, um dia conhecemo-nos e nunca mais nos largámos. Ele era assim, começava logo a conversar com as pessoas e a partilhar histórias, era divertidíssimo. E é curioso, ele fazia-me lembrar o meu avô. O meu avô também ia para a rua connosco, jogava crapô, ensinava-nos a jogar xadrez, parecia que tinha sempre imenso tempo. O Pina também era assim, tinha sempre tempo para os outros, cruzava-se com alguém na rua e ficava ali horas a conversar, era amigo de todos os sem-abrigo do Porto, dos polícias, de toda a gente. E isso fascinava-me muito porque, apesar de eu ter essa curiosidade sobre as pessoas, como sou muito tímida, às vezes falta-me esse à-vontade que o Pina tinha e que o meu avô também tinha, então punha-me ao lado deles a ouvir. Eles tinham uma enorme capacidade para ouvir, apesar de falarem muito. Eles eram uma espécie de eternas crianças.
A infância tem uma relação de espanto com o mundo e com a linguagem que é algo que vamos perdendo à medida que crescemos, mas só vamos perdendo se deixarmos, porque só deixamos de aprender quando morremos. Até lá, temos de estar alerta, não podemos estar adormecidos. O Pina tem um poema que se chama "Uma segunda e mais perigosa inocência", uma citação de Nietzsche, onde diz que já não podemos ter aquela primeira inocência, mas podemos ter um segundo olhar, mais perigoso por estar mais contaminado, que tenta recuperar o primeiro. Portanto, estamos condenados à tentativa e à aproximação e acho que a leitura de poesia ou da literatura em geral é um dos modos de reaprender o nosso espanto, a nossa imaginação. E há uma coisa que adoro fazer, que é conversar com os mais novos, farto-me de aprender. Numa das últimas sessões do "Poesia-me", feita a partir de "O Mar", do Ricardo Henriques e do André Letria, havia um miúdo que sabia tudo sobre o mar, desde os mitos até aos peixes, conhecia mesmo tudo, tal era o seu encanto.
Quando nos tornamos adultos, andamos sempre com metas e objectivos e deixamos de ter esse espaço e esse tempo para nos encantarmos assim por algo. Olhamos demasiadas vezes para as coisas e esquecemo-nos de reparar nelas por estarmos, a partir de determinada altura, sujeitos às regras - podem ser as regras gramaticais na linguagem, podem ser as convenções do nosso dia-a-dia. Olhar para o mundo e não reparar nele é como viver numa casa com uma vista espantosa e nem sequer nos lembrarmos de abrir a janela. Esta nossa forma de vida vai-nos amputando. E depois há a escola, onde os miúdos são obrigados a entrar numa grelha e a preencher essa grelha e onde a imaginação tem cada vez menos espaço, sendo que há óptimas experiências de professores que levam os alunos ao teatro e que tentam despertar-lhes a curiosidade para a literatura.
Acho que vivemos tempos especialmente empobrecidos. Por um lado, as pessoas têm imensas solicitações e têm vidas difíceis, ganham mal, trabalham muito, andam a correr de um lado para o outro e, no meio disso tudo, é complicado arranjar um espaço para parar e respirar. E depois temos uma cultura de consumo de lixo, em que as pessoas são tratadas como sendo incapazes de pensar e, portanto, são alimentadas com livros, discos e programas de televisão que as põem num estado de sonolência. Quando fiz o programa "Os Livros", na RTP3, algumas pessoas diziam-me: finalmente, li um livro de poesia, não fazia a mínima ideia de que gostava.
Faz-nos falta alguma lentidão para termos momentos de pausa e reflexão. Os próprios miúdos estão a desaprender essa coisa absolutamente elástica que é o tempo na infância. Lembro-me de ter férias grandes que nunca mais acabavam, lembro-me de que um dia nas férias grandes era um dia tão longo que eu até tinha tempo para me aborrecer, e hoje sinto que os miúdos estão sempre ansiosos, sinto que estão a desaprender o tempo da espera. Nós coleccionávamos cromos e tínhamos de esperar por uma nova carteirinha, hoje é possível ter tudo neste instante e as crianças são quase obrigadas a estar sempre entretidas a fazer qualquer coisa quando às vezes não é preciso, podem estar só por estar, acho que é muito importante termos tempo para nos aborrecer. Para esperar. Costumo dizer que o meu tempo é o da espera, até mesmo para escrever.
Ainda se olha com desconfiança para as mulheres que escrevem poesia, ainda se olha com desconfiança para as mulheres que pensam. O meio literário ainda é muito machista, como todos os meios, e há uma espécie de condescendência para com as mulheres. Se aparece uma mulher que escreve poesia e se destaca, é comum ouvir o comentário: ela até é boa poeta. Isso nunca se diria de um homem. Uma vez perguntaram-me qual a diferença entre poesia no feminino e poesia no masculino, respondi que a única diferença é que se uma mulher escrever a palavra amor é rotulada como delicodoce, se for um homem é porque é sensível. É preciso desconstruir os preconceitos.