Notícia
Filipe Duarte Santos: Em Portugal, há a ideia de que o ambiente é um empecilho ao desenvolvimento económico
Filipe Duarte Santos é um especialista de renome internacional na área das alterações climáticas. Recentemente ganhou o prémio “Carreira pela Sustentabilidade”, nos Green Project Awards 2017. A sustentabilidade do planeta obriga-nos a encontrar novos conceitos de prosperidade, defende.
Com a experiência traumática dos incêndios, o país ficou mais desperto para as alterações climáticas?
Creio que sim. A experiência mostra que quando há uma situação de crise as pessoas acabam por ficar mais conscientes dos problemas. Em Portugal, em 2017, chegámos a uma fase dramática. Houve mais de 110 mortos em fogos florestais. Relativamente ao total das vítimas de fogos florestais no mundo, é um número significativo.
Entrámos num novo ciclo em que estas questões já fazem parte da agenda política? Agora há uma pressão social para o apuramento de responsabilidades.
Os governos são um reflexo do estado de desenvolvimento social e económico, da nossa cultura, da nossa maneira de estar no mundo. Nós somos atraídos pela obra feita, por aquilo que é visível. Um novo centro desportivo, piscinas, uma nova via rápida... Mas há outras coisas muito importantes para o país, como ter sapadores florestais, um sistema de torres de observação para vigiar a floresta... No passado, havia uma ligação estreita entre a agricultura e a floresta. E, sobretudo no centro do país, os agricultores e muita da população que existia emigraram. A floresta ficou de certo modo abandonada. Quando algo é abandonado, é porque o seu valor económico não é significativo. Esse acaba por ser o problema fulcral.
Os políticos, neste momento, já perceberam que estes temas têm de ser uma prioridade, depois de tudo o que aconteceu?
Perceberam. Mas, para ser uma prioridade, é preciso que haja disponibilidade por parte do país para investir nessas zonas do interior, que têm uma densidade demográfica baixa.
E considera que não existe?
É algo que não vai ser inteiramente fácil de resolver. Fomos evoluindo durante muitas décadas no sentido da desertificação do interior e a situação actual é difícil. Não se vai resolver depressa. Pode demorar décadas. Mas temos de ser persistentes. E a política faz-se por ciclos. Tem de ser uma política nacional. Por isso é que digo que é necessário o apoio efectivo dos portugueses.
Faz sentido falar num pacto para a floresta?
Faz sentido, sobretudo, que haja persistência nestas acções. Não pode ser um fogacho. Foi algo dramático, o Governo reagiu e está a pôr em prática medidas no bom sentido. Tem planos para os próximos anos e existe um grupo de missão que está a trabalhar. Tudo isso é extremamente positivo, mas é preciso que haja persistência. A floresta leva muito tempo a formar e nós vivemos numa civilização em que há uma aceleração do tempo. Tudo tem de ser rápido. Tudo tem de ter uma resposta quase imediata. A natureza não funciona assim.
Para um cientista, como é que tem sido lidar com a máquina do Estado?
Devo dizer, com toda a franqueza, que sinto que há progressos. O que acontece é que, em muitas áreas da ciência, aquilo que se faz tem relevância para as políticas públicas. Estou a falar sobretudo da área das ciências do ambiente, em que há uma relevância para a população. De maneira que existe uma "interface" entre a ciência e a política. Mas cada um tem de estar no seu lugar. A decisão não cabe aos cientistas. A decisão é sempre política.
É angustiante para um cientista saber que algo está correcto, tentar demonstrá-lo por A + B e não ter abertura do outro lado para aplicar esse conhecimento?
Sim, com certeza. Temos, infelizmente, hoje em dia um exemplo muito claro dessa situação – [o Presidente dos Estados Unidos]. Temos um mundo cada vez mais complexo e há muitos interesses, lóbis muito fortes e, portanto, para que os decisores políticos façam as melhores escolhas, é muito importante que tenham as suas políticas informadas pela ciência. É nisso que os cientistas podem contribuir.
É mais difícil "abrir os olhos" aos políticos ou aos empresários, em matérias ambientais?
Depende muito. Hoje em dia há empresas completamente diferentes. Temos as pequenas empresas e depois temos as cinco terríveis: Amazon, Google, Microsoft, Apple e Facebook, que são gigantes. Têm orçamentos superiores ao PIB de Portugal. São empresas que têm um poder imenso, não apenas sobre as pessoas como também sobre os países. Já existe uma maior consciência das problemáticas ambientais e, portanto, as organizações têm essa sensibilidade ou, pelo menos, algumas têm. Outras não.
Em Portugal, qual é a sua experiência?
Existe um pouco a ideia de que o ambiente é um empecilho ao desenvolvimento económico. É uma ideia errónea. Penso que é exactamente o contrário. Se não dedicarmos suficiente atenção em proteger o ambiente e usar de forma sustentável os recursos naturais, é precisamente o desenvolvimento económico que vai ficar prejudicado. Talvez o exemplo mais claro seja esta tendência muito boa em várias regiões do mundo, sobretudo nos países com economias avançadas, para a reciclagem e para a economia circular. Se não reciclarmos as matérias-primas, se não tivermos em atenção a durabilidade dos produtos, se se apostar na obsolescência, como por exemplo numa lâmpada eléctrica que funde passado pouco tempo, estamos a criar instabilidade nos preços das "commodities". Na economia circular, adaptamos o consumo de recursos naturais à sustentabilidade desses mesmos recursos.
A reciclagem é um conceito já interiorizado pelas gerações mais novas.
Uma coisa é a reciclagem que fazemos nas nossas casas, mas vou dar-lhe um exemplo. Quando deixamos de utilizar um telemóvel porque, por exemplo, comprámos um novo, ele fica na gaveta. Há uma quantidade considerável de ouro e de outros metais raros no telemóvel. Na Bélgica, existe uma instalação que permite retirar os elementos nobres. Se, por um lado, é muito importante o nosso comportamento individual, por outro, é necessário que a própria economia tenha a preocupação de consumir um mínimo de matérias-primas. Isto tem que ver com o consumismo. Estão sempre a sair modelos novos de telemóveis. Será absolutamente necessário que assim seja? E a duração dos aparelhos? Têm uma obsolescência programada. Isso será bom?
A lei em Portugal já é suficientemente forte para punir as empresas que não respeitam o ambiente?
Ainda há muito trabalho a fazer nessa matéria. Existe uma boa legislação ambiental mas, por vezes, há um défice no que diz respeito à fiscalização do cumprimento das leis. Vou dar um exemplo concreto. Temos em Portugal, relativamente aos outros países da União Europeia, o maior número de ignições. Há centenas por dia. Muitas delas são à noite. É extraordinário como o país não dedicou suficiente atenção a esclarecer as causas deste fenómeno. Em que medida é que estes fogos têm causas naturais? Ou são causas criminosas? Como é que não assumimos a necessidade de esclarecer isto? Como cidadão e como cientista, fico surpreendido com o número de incêndios que deflagram à noite. Na Galiza, foi identificada uma rede criminosa. Provavelmente, essa rede não existe em Portugal. Ou existirá! Não sabemos. É uma coisa que está completamente nebulosa. Não estou a fazer um processo de intenções. O que me surpreende é que não haja uma investigação que vá até ao fim, que seja consequente. E é a mesma coisa em relação às empresas que estão a poluir.
A indústria automóvel viu-se envolvida no chamado "dieselgate", o escândalo das emissões poluentes.
Foi um incidente deplorável, sobretudo vindo de um país como a Alemanha, que tem uma tecnologia muito avançada e uma imagem de rigor. E como é que isso foi descoberto? Foram cidadãos nos EUA que resolveram medir, eles próprios, as emissões [de CO2], que quiseram testar se era verdade. Veja a importância da sociedade civil, das pessoas e das organizações não governamentais, veja-se a importância de estarem atentas àquilo que se passa no domínio ambiental. É absolutamente crucial.
É crítico do modelo de desenvolvimento assente no consumo dos combustíveis fósseis. Temos de, efectivamente, mudar a forma como vivemos?
Uma das coisas mais preocupantes no mundo é o crescimento das desigualdades. As questões do crescimento económico e do paradigma económico têm muito que ver com o nosso conceito de prosperidade. As pessoas têm uma noção de prosperidade que é sobretudo encarada como material, económica. E, dado que vivemos num mundo profundamente desigual e em que a comunicação está presente em praticamente todo o mundo, as pessoas [dos países pobres] sabem como é que os outros vivem nos países com economias avançadas, de que nós fazemos parte. O seu ideal de vida, evidentemente, é ter a possibilidade de bem-estar e de possuir objectos acessíveis nos países com economias avançadas. De acordo com as projecções das Nações Unidas para a população global, vamos ser 9.500 milhões de pessoas em 2050 e mais de 11 mil milhões em 2100. Não vejo que seja possível atingir uma prosperidade económica, comparável à média de Portugal, para 11 mil milhões de pessoas.
Portanto, vamos ter de mudar muitos hábitos.
É preciso termos uma maior consciência de que vivemos bastante bem, comparando com 80% do mundo. E esses 80% são pessoas, humanos, exactamente como nós que, se lhes for mostrada a opulência, também querem. E esse é um caminho que não me parece de modo algum sustentável. Não podemos viver todos como se vive, em média, nos Estados Unidos. As famílias não podem ter todas dois carros, um barco e uma casa.
Também tem falado sobre a mudança nos hábitos alimentares, nomeadamente na redução do consumo de carne.
Isso tem um impacto gigante sobre o ambiente, porque é preciso ter soja para a alimentação dos animais e depois existem as emissões de metano, um gás com efeito de estufa, provocado pelo gado bovino. Também há um consumo de água e energia associado a estas explorações.
Disse, numa entrevista, que a solidariedade vai ser cada vez mais importante.
Sim, e não só a solidariedade intrageracional. Nos EUA, a escritora Ayn Rand teve uma influência surpreendente sobre os políticos. Ela escreveu um livro em 1957 que foi publicado em Portugal com o nome "A revolta de Atlas", onde defende o chamado egoísmo racional e o egoísmo ético. Diz que as nossas acções só são moralmente justificadas se forem no nosso próprio interesse e, portanto, nega o altruísmo como uma forma de comportamento humano. Isto é algo que se enquadra no tipo de políticas de certos sectores na América. A tal solidariedade desaparece ou, pelo menos, não se manifesta como devia. É muito importante que as pessoas tenham consciência de que é do seu interesse lutarem e contribuírem para uma sociedade mais justa, com menos desigualdades. Essa tendência que há para a prática do egoísmo enquadra-se bem no fenómeno à escala mundial, da corrupção. O querer mais e mais. As pessoas não têm limite para a sua ambição.
Donald Trump admitiu que os EUA podem, "em teoria", retornar ao Acordo de Paris. Como interpretou as suas palavras?
Os EUA são o único país que quer sair do acordo das Nações Unidas, no qual estão todos os países do mundo. Há muitas pessoas nos EUA que estão inconfortáveis porque, ao saírem, deixam de saber o que é que se está a passar. Se o país continua a ter interesses [ligados ao ambiente], importa-lhe estar presente para poder influenciar.
Trump teve medo de perder protagonismo? O presidente francês, Emmanuel Macron, e o presidente chinês, Xi Jinping, ganharam relevo neste processo.
Sim, é isso. A China tem sido muito inteligente porque está, efectivamente e de forma pragmática e persistente, a fazer a transição para uma economia mais descarbonizada, através de um enorme investimento nas energias renováveis. Eles têm a maior indústria de energia solar do mundo e estão empenhados em cumprir o Acordo de Paris.
Daqui a uns dias, decorre o Fórum Económico Mundial, em Davos. O que espera do encontro que junta as elites mundiais?
Davos é um espaço de diálogo em que as grandes empresas que estão presentes têm uma voz bastante preponderante e também lá estão políticos, mas a contribuição desse encontro para alcançar um caminho sustentável é limitada. Estas questões estão todas enunciadas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Algo que as Nações Unidas têm na sua agenda há imensos anos.
Está a ser difícil colocá-las em prática.
Esse caminho vai depender das próprias pessoas. É necessário procurar novos conceitos de prosperidade, que não sejam exclusivamente de natureza económica, de riqueza, mas de simplicidade voluntária. Esta é uma expressão proferida pela primeira vez por um filósofo americano que se inspirou muito no Gandhi. A simplicidade voluntária é a pessoa estar satisfeita com a sua vida, dando espaço a um maior bem-estar físico, mas também espiritual. Ter tempo para reflectir, para ter uma relação mais próxima com a natureza. As coisas simples da vida deveriam ter uma importância maior do que esta ânsia, que por vezes o sistema procura incutir, de consumismo. Temos de equilibrar as coisas e devemos ter maior preocupação com a sustentabilidade. Pensarmos nos nossos interesses pessoais de agora, mas também nos interesses futuros e, sobretudo, nos interesses das pessoas que estão à nossa volta. Enquanto, no passado, "à nossa volta" era a nossa família, a nossa aldeia, o nosso país, agora temos de pensar em todos. O que se passa no outro canto do mundo está a influenciar-nos. Se não tivermos consciência disso, pode ser complicado.
A seca vai ser a nossa maior luta nos próximos anos?
Penso que sim. A seca e os fogos florestais, que vão continuar a ser um problema complicado. Terá de haver um cuidado essencial com a gestão da água. Num país em que falta água, ter um sistema de distribuição que, em alguns municípios, tem perdas muito superiores a 40%, é algo que não é aceitável. Alguma coisa não está a funcionar.
A natureza é um ambiente que procura com frequência?
Sim. Desde pequeno que gosto muito de orquídeas silvestres. Tenho impressão de que sou um botânico falhado. (risos) Faço parte da Associação de Orquídeas Silvestres – Portugal. Fazemos passeios por todo país e às vezes também fora de Portugal. Aí está! Quando eu estava a falar em outros conceitos de prosperidade, porque não levar as pessoas a usufruir desse prazer que é o contacto com a natureza?
Também gosta de pintar e de desenhar.
O meu pai era o escultor António Duarte e a minha mãe era pintora. Vivi sempre num ambiente de arte. Fui um privilegiado nesse aspecto, porque estou convencido de que a arte, nas suas diferentes formas, é um bem muito grande. Lá está, é outra forma de prosperidade. Por exemplo, quando alguém vai a uma cidade estrangeira, para ter uma reunião, geralmente depois vai para as lojas. Porque não ir para um museu, em vez de ir comprar mais uma coisa de que, se calhar, não precisa? É a isso que eu chamo a tal simplicidade voluntária.