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Filipa Melo: O amor romântico é uma insanidade

Em “Dicionário Sentimental do Adultério”, Filipa Melo cruza referências, histórias ouvidas, histórias esquecidas e reencontradas. É o seu terceiro livro, depois de um livro de reportagem e um romance.

14 de Julho de 2017 às 13:00
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Quando foi convidada pela Quetzal para escrever um título da colecção de Dicionários Sentimentais, Filipa Melo pensou logo que era preciso um guia para a história do adultério. A história do adultério é também a história da paixão, do casamento, e do poder do homem sobre a mulher, que ainda está por equilibrar. É uma história afectiva e cultural de um tema que ninguém gosta de falar publicamente. Filipa Melo cruza referências, histórias ouvidas, histórias esquecidas e reencontradas.

É o seu terceiro livro, depois de um livro de reportagem e um romance. É crítica literária, professora de escrita criativa e está prestes a lançar a primeira pós-graduação em escrita de ficção na Universidade Lusófona. Os seus livros foram publicados com intervalos grandes de tempo, mas Filipa Melo não parece ter pressa. Antes, parece preferir esperar pela altura certa, deixar que a vida a prepare para poder mergulhar nos temas mais improváveis. É assim que vê o trabalho da escrita, primeiro que tudo uma investigação, um acto de conhecimento.


1. É habitualmente o que me move nos meus trabalhos e que me moveu nos meus três livros: perceber mais alguma coisa sobre um tema, ir à procura de.

Havia uma ideia logo de início - e algumas frases que tinha na cabeça quando comecei a fazer a pesquisa -, que era a ideia de que o amor é, acima de tudo, uma insanidade. É uma forma de insanidade o amor romântico, como o conceberam no século XIX. A ideia de viver para sempre com a mesma pessoa, de amar a mesma pessoa, de conseguir fazer uma fusão profunda a muitos níveis de si mesmo e em vários planos da vida com outra pessoa. Essa ideia de amor é insana e o adultério prova-o. E é uma prova muito brutal.

2. Sou muito rato de biblioteca e uso muito a minha própria biblioteca como, se calhar, outras pessoas usam a internet: salto deste livro para outro e depois esse remete para outro. Faço uma espécie de hipertexto dentro das minhas fontes. Comecei por encomendar bibliografia sobre adultério de todos os géneros. Criei uma estante para a bibliografia e andei ali dentro a navegar, a relacionar as coisas.

Depois, o tema permitiu-me um tom de ironia que é muito saboroso. E, a certa altura, quando a questão da opressão sobre as mulheres se tornou cada vez mais evidente e importante na pesquisa, esse meu tom irónico foi-se tornando também, em algumas das entradas, mais pesado. A entrada do dicionário referente a Calipso é talvez a mais poética. Na verdade, a mais denunciadora ou a mais sofrida relativamente àquilo que é a condição da mulher. Calipso, depois de ter cuidado de Ulisses, deixa-o partir por amor. No livro escrevi: "[Calipso] Deixa uma frase gravada no coração das mortais: amar é deixar ir. Atrás desta ideia falsa, se esconderão os adúlteros e as lágrimas das mulheres."


Antes, era uma pessoa para sempre. Agora, é uma pessoa para sempre de cada vez. 


À parte desta investigação livresca, conversei muito com várias pessoas a pedir-lhes casos, histórias. E as histórias que aparecem no livro são todas reais. Incluindo casos que aparecem como entrada única de dicionário e que parecem anedotas, mas não são, são casos verdadeiros. Em vários testemunhos surgia esta ideia da mulher que sabe que é traída, mas que consente porque amar é deixar ir.

No caso dos homens, os homens não dão conta, ao que diz o detective Santos [que aparece no livro]. O livro dá uma definição nova de "cornudo", que é muito engraçada: "Cornudo é um marido distraído que tem a mulher feliz."

3. Já tinha a ideia de que a história do adultério está intimamente ligada à história do domínio do homem sobre a mulher. Desde as leis de Augusto, o adultério é commumente tido como relações sexuais com uma mulher casada. A mulher casada é o epicentro da transgressão. E se se coloca a mulher no centro é porque é o corpo dela que está em causa, é a capacidade de definir a paternidade do filho, é a liberdade do uso do seu corpo e do uso do seu coração.

O que fui verificando é que, ao longo da história, foi sempre assustador para os homens a ideia de que as mulheres podiam atraiçoá-los, primeiro num plano genético, de transmissão dos genes, e depois corrompendo a ideia da mulher ligada ao lar, à casa, à família. A mulher no lar e o casamento foram uma cola social em todos os momentos, sobretudo nos regimes autoritários.


Em vários testemunhos surgia esta ideia da mulher que sabe que é traída, mas que consente porque amar é deixar ir. 


Continua a haver dois pesos e duas medidas relativamente ao homem e à mulher. Tem de se diferenciar aquilo que é a prática de adultério, que eu acho que é praticada tanto pelos homens como pelas mulheres, e o que é a aceitação social do acto. É ainda muitíssimo recriminado [o adultério das mulheres] e talvez por isso as mulheres não alardeiem as suas conquistas.

Para os dois sexos existe hoje muito maior liberdade. A reordenação da vida afectiva, com o divórcio, com o casamento em todas as combinações que existem hoje em dia, permite à própria pessoa reordenar-se ao longo da vida e consoante a fase da vida em que está. O paradigma mudou.

Antes, era uma pessoa para sempre. Agora, é uma pessoa para sempre de cada vez.

4. No meu romance ["Este é o Meu Corpo", de 2001], quis fazer uma investigação sobre a morte muito centrada no corpo. E o corpo é a base também deste livro: tem que ver com o corpo da mulher e a capacidade de fruição do corpo da mulher.

Para o romance, apareceu-me primeiro a ideia de um corpo de uma mulher que tinha sido sujeita a uma violência tão inusitada que tinha perdido qualquer tipo de identidade. Só se podia identificá-la através de uma autópsia o mais interna possível. O livro conta o momento em que o médico-legista faz a autópsia e vai intercalando com a história do que é que aconteceu para que aquela mulher fosse morta e sujeita àquele tipo de violência.

Nunca tinha pensado nisso, mas a base dessa história é um adultério. É o amante que a mata. Ele é um homem que tem um casamento convencional e que, com a sua mulher, não conseguiu ter filhos. Ela engravidou deste homem, mas não queria que ele fosse o pai.

Logo no início do "Dicionário Sentimental do Adultério" digo que aquilo que move o adultério é a angústia de não deixar filhos e a angústia do envelhecimento. E o crime que está no "Este é o Meu Corpo" é a angústia de não deixar filhos.

5. Acho que os livros têm que ver com o que se vai passando na nossa vida, com o que vamos vivendo. Escrever sobre o adultério talvez só seja possível aos 45 anos. Aos 45 anos, divorciada, com dois filhos. Tem que ver com uma experiência de vida, uma experiência afectiva que permite abordar determinados temas.

Mas, antes disto, fiz um livro de reportagem sobre marinheiros. Um tema completamente diferente. Andei num navio de pesca por arrasto e num navio de carga.

Fico muito contente por os meus três livros, com os hiatos que têm, serem de três géneros diferentes: um de ficção, um claramente de não-ficção e um de reportagem.

Continuei sempre a escrever ficção e, entretanto, a trabalhar como "freelancer" e a ganhar a minha vida. Não tive grande possibilidade de me dedicar à ficção de forma que sentisse que podia publicar outro romance. Mas nunca deixei de escrever. Agora estou numa outra fase de vida. Quem sabe... Este livro foi um livro de desbloqueio, foi um regresso. Sentia-me bloqueada, mas bloqueada pela vida. 


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