Notícia
Donald Trump, o cisne negro
Uma sociedade estilhaçada, um país profundo esquecido e desprezado, o sonho americano atirado para as urtigas. Tudo isso contribuiu para que Trump encontrasse uma planície seca desejosa de ser incendiada.
Como os cisnes negros na natureza, um cisne negro político é um acontecimento raro. Ou era. Mas Donald Trump, como o Brexit antes, tornou-se um cisne negro, imune às leis naturais da política. A sua eleição deixou meio mundo em choque porque muitos supuseram que, no final, as leis da gravidade e de algum bom senso levariam a melhor do que o vendaval feito de populismo e de arte de "reality shows" que Trump trouxe à política americana. Não levaram. Porque a vaga que atirou Trump para a Casa Branca tem raízes mais profundas. E que foram ignoradas.
Uma sociedade estilhaçada, um país profundo esquecido e desprezado, o sonho americano atirado para as urtigas, tudo isso contribuiu para que Trump encontrasse uma planície seca desejosa de ser incendiada. Contra a globalização e contra os "estranhos". Contra a falta de futuro da classe média. Contra o fim da mobilidade social. Contra o cosmopolitismo da sociedade globalizada que secou o ideal de nação e de pertença. Contra uma ordem que a revolução tecnológica dos anos 80 fomentou e que, ao mesmo tempo que criava classes médias na Ásia e ricos na China, destruía a segurança das velhas democracias ocidentais e do seu sustentáculo: as classes médias.
Trump, com um discurso básico, feito de "slogans" e banalidades, com o que aprendeu em anos de televisão, sabia o que dizer aos deserdados e aos que deixaram de ter esperança. Ao contrário de Hillary Clinton, que chegou demasiado tarde à corrida para a presidência, porque este já não era o seu tempo.
A América "profunda" está como a Europa "profunda": farta. Não sabe muito bem o que quer e para onde deve ir. Mas as liras que trouxeram Trump e Boris Johnson, e que Marine Le Pen ou a direita holandesa ou austríaca empunham, são doces. Todos eles estão mais preocupados com a invasão de estrangeiros que a globalização fomentou do que com os benefícios fiscais para sociedades de risco. É um apelo básico, mas que funciona.
O homem que veio de fora
Reince Priebus, presidente do Comité Nacional Republicano, supervisionando os aspirantes a ser candidatos pelo Partido Republicano, escreveu um "tweet": "É claro que temos os melhores qualificados e diversificados candidatos do que qualquer partido na História." E, assim, porque acabou Donald Trump por ganhar as primárias republicanas, batendo as esperanças evangélicas como Ted Cruz ou do "establishment" como Jeb Bush? Porque veio de fora, intrometendo-se na escolha republicana. O resultado está à vista. A classe dirigente norte-americana, feita de compromissos (de que Hillary Clinton era um expoente perfeito, como foi visível na campanha) e de falta de referências de futuro para os comuns americanos, foi arrasada.
A vitória de Trump é uma revolução de que ainda está para se perceber o futuro. Foi uma machadada na petulância dos dois partidos que se têm alternado no poder e que precisam de se regenerar. Só que isto veio trazer um grau de incerteza brutal para todo o mundo. A globalização comercial será a primeira vítima. Muito provavelmente, a política externa será menos afectada, devido ao peso do Pentágono, mas o isolacionismo americano pode ser terrífico para a Europa, muito dependente do guarda-chuva militar dos EUA.
Trump é também um tiro certeiro na política económica de austeridade europeia. A sua aposta nas infra-estruturas internas como forma de impulsionar a economia e o emprego será feita a contraciclo do que a Europa, liderada pela infeliz Alemanha, tem vindo a pregar nos últimos anos. Com os resultados desastrosos nas sociedades europeias, estilhaçando o seu facto de sustentabilidade política: as classes médias. Trump vai virar-se, sobretudo, para o interior dos EUA. E, por isso, o mundo vai ter de esperar. Para mal de quem tem tido a presença constante dos EUA, como pacificador (ou fomentador) de conflitos.
Interesses internos contraditórios
Muito interessante vai ser ver como Trump organizará a sua equipa. Sobretudo quem será o seu secretário da Defesa. E quem será o seu chefe de gabinete. Referenciais do que será a sua política. E que são garantes da ligação a uma maioria republicana nunca vista, mas que, em muitos casos, não gosta de Trump. Como se irão gerir estes interesses contraditórios?
Convém não esquecer que a maioria republicana do Congresso boicotou a campanha de Trump e não está muito de acordo com as suas receitas económicas para os EUA. Resta saber como o novo Presidente eleito americano vai agora lidar com a sua imagem de televisão num mundo como o da política, onde as palavras têm de ser mais bem medidas. Especialmente se vierem do Presidente dos EUA. Muitos tentam já comparar Trump a Ronald Reagan. Este saiu-se bem, mas os tempos são outros.
Num dos seus livros fundamentais, "Strategic Vision: America and the Crisis of Global Power", Zbigniew Brzezinski, uma das figuras mais poderosas da política norte-americana e global, diz que os EUA deveriam apoiar a Europa a trazer a Rússia e a Turquia para uma noção mais vasta de Ocidente. Mas, para que tudo corra bem, os EUA necessitam de revitalizar a sua economia, para evitarem o declínio. Segundo este cientista político, "se os EUA não se revitalizarem em casa, falharão internacionalmente".
As eleições americanas ganham-se em casa e não na Europa. Trump entendeu isso. O seu fraquíssimo discurso de celebração da vitória teve um momento de claridade: ele vai apostar na economia interna, focando-se nas infra-estruturas como motor. Isso significa muito emprego e mais dívida federal. Trump sabe que imprimir dinheiro não é problema: a dívida americana continua a ser muito apetecível. E a aposta de crescimento dos EUA (ao contrário da Europa, que apostou na austeridade pura e dura) deu alguma estabilidade à economia. Ele percebeu que o mal-estar da força de trabalho americano era não só um trunfo eleitoral, mas também algo que um país não pode perder. Criar emprego depressa, como fez Roosevelt, é uma prioridade política. A América volta a comportar-se como muitas vezes se comportou a América: desconhece os oceanos e olha para o interior. Vai recentrar-se nela própria. Vai apostar no reforço do orçamento militar e na tecnologia, não o duvidemos.
Tempos de transição
Estes são tempos de transição que não nos dizem ainda muito sobre qual a rota que segue o planeta. E o mundo vai ficar mais fechado e mais nacionalista. Menos globalizado. Isso vai notar-se primeiro nos sonhos do comércio internacional total. Mas a influência desta eleição de Trump vai sobretudo ver-se na Europa que foi incapaz de criar uma alma própria, fechada na sua comezinha austeridade onde não há lógicas estratégicas comuns. E vai ver-se na Ásia e no Médio Oriente, já que, nos próximos meses, se entenderá como serão as relações com a Rússia e a China, potências que desejam mostrar o seu poder global.
Era, de todo, improvável que Trump pudesse derrotar os pré-candidatos republicanos. E, depois, arrasar Hillary Clinton. Mas o cisne negro conseguiu surpreender tudo e todos. Abrindo as portas para um novo paradigma, sinal do fim de um ciclo político e económico. Resta saber agora para onde darão essas portas. Porque, aparentemente, ninguém sabe. Nem Donald Trump, nem os americanos, nem a Europa, nem a Ásia, nem a África. A incógnita está aí à frente. Depois dos discursos radicais e fáceis de entender, chega agora o momento em que a forma tem de se transformar em conteúdo.
Uma sociedade estilhaçada, um país profundo esquecido e desprezado, o sonho americano atirado para as urtigas, tudo isso contribuiu para que Trump encontrasse uma planície seca desejosa de ser incendiada. Contra a globalização e contra os "estranhos". Contra a falta de futuro da classe média. Contra o fim da mobilidade social. Contra o cosmopolitismo da sociedade globalizada que secou o ideal de nação e de pertença. Contra uma ordem que a revolução tecnológica dos anos 80 fomentou e que, ao mesmo tempo que criava classes médias na Ásia e ricos na China, destruía a segurança das velhas democracias ocidentais e do seu sustentáculo: as classes médias.
A América "profunda" está como a Europa "profunda": farta. Não sabe muito bem o que quer e para onde deve ir. Mas as liras que trouxeram Trump e Boris Johnson, e que Marine Le Pen ou a direita holandesa ou austríaca empunham, são doces. Todos eles estão mais preocupados com a invasão de estrangeiros que a globalização fomentou do que com os benefícios fiscais para sociedades de risco. É um apelo básico, mas que funciona.
O homem que veio de fora
Reince Priebus, presidente do Comité Nacional Republicano, supervisionando os aspirantes a ser candidatos pelo Partido Republicano, escreveu um "tweet": "É claro que temos os melhores qualificados e diversificados candidatos do que qualquer partido na História." E, assim, porque acabou Donald Trump por ganhar as primárias republicanas, batendo as esperanças evangélicas como Ted Cruz ou do "establishment" como Jeb Bush? Porque veio de fora, intrometendo-se na escolha republicana. O resultado está à vista. A classe dirigente norte-americana, feita de compromissos (de que Hillary Clinton era um expoente perfeito, como foi visível na campanha) e de falta de referências de futuro para os comuns americanos, foi arrasada.
A vitória de Trump é uma revolução de que ainda está para se perceber o futuro. Foi uma machadada na petulância dos dois partidos que se têm alternado no poder e que precisam de se regenerar. Só que isto veio trazer um grau de incerteza brutal para todo o mundo. A globalização comercial será a primeira vítima. Muito provavelmente, a política externa será menos afectada, devido ao peso do Pentágono, mas o isolacionismo americano pode ser terrífico para a Europa, muito dependente do guarda-chuva militar dos EUA.
Trump é também um tiro certeiro na política económica de austeridade europeia. A sua aposta nas infra-estruturas internas como forma de impulsionar a economia e o emprego será feita a contraciclo do que a Europa, liderada pela infeliz Alemanha, tem vindo a pregar nos últimos anos. Com os resultados desastrosos nas sociedades europeias, estilhaçando o seu facto de sustentabilidade política: as classes médias. Trump vai virar-se, sobretudo, para o interior dos EUA. E, por isso, o mundo vai ter de esperar. Para mal de quem tem tido a presença constante dos EUA, como pacificador (ou fomentador) de conflitos.
Interesses internos contraditórios
Muito interessante vai ser ver como Trump organizará a sua equipa. Sobretudo quem será o seu secretário da Defesa. E quem será o seu chefe de gabinete. Referenciais do que será a sua política. E que são garantes da ligação a uma maioria republicana nunca vista, mas que, em muitos casos, não gosta de Trump. Como se irão gerir estes interesses contraditórios?
Convém não esquecer que a maioria republicana do Congresso boicotou a campanha de Trump e não está muito de acordo com as suas receitas económicas para os EUA. Resta saber como o novo Presidente eleito americano vai agora lidar com a sua imagem de televisão num mundo como o da política, onde as palavras têm de ser mais bem medidas. Especialmente se vierem do Presidente dos EUA. Muitos tentam já comparar Trump a Ronald Reagan. Este saiu-se bem, mas os tempos são outros.
Num dos seus livros fundamentais, "Strategic Vision: America and the Crisis of Global Power", Zbigniew Brzezinski, uma das figuras mais poderosas da política norte-americana e global, diz que os EUA deveriam apoiar a Europa a trazer a Rússia e a Turquia para uma noção mais vasta de Ocidente. Mas, para que tudo corra bem, os EUA necessitam de revitalizar a sua economia, para evitarem o declínio. Segundo este cientista político, "se os EUA não se revitalizarem em casa, falharão internacionalmente".
As eleições americanas ganham-se em casa e não na Europa. Trump entendeu isso. O seu fraquíssimo discurso de celebração da vitória teve um momento de claridade: ele vai apostar na economia interna, focando-se nas infra-estruturas como motor. Isso significa muito emprego e mais dívida federal. Trump sabe que imprimir dinheiro não é problema: a dívida americana continua a ser muito apetecível. E a aposta de crescimento dos EUA (ao contrário da Europa, que apostou na austeridade pura e dura) deu alguma estabilidade à economia. Ele percebeu que o mal-estar da força de trabalho americano era não só um trunfo eleitoral, mas também algo que um país não pode perder. Criar emprego depressa, como fez Roosevelt, é uma prioridade política. A América volta a comportar-se como muitas vezes se comportou a América: desconhece os oceanos e olha para o interior. Vai recentrar-se nela própria. Vai apostar no reforço do orçamento militar e na tecnologia, não o duvidemos.
Tempos de transição
Estes são tempos de transição que não nos dizem ainda muito sobre qual a rota que segue o planeta. E o mundo vai ficar mais fechado e mais nacionalista. Menos globalizado. Isso vai notar-se primeiro nos sonhos do comércio internacional total. Mas a influência desta eleição de Trump vai sobretudo ver-se na Europa que foi incapaz de criar uma alma própria, fechada na sua comezinha austeridade onde não há lógicas estratégicas comuns. E vai ver-se na Ásia e no Médio Oriente, já que, nos próximos meses, se entenderá como serão as relações com a Rússia e a China, potências que desejam mostrar o seu poder global.
Era, de todo, improvável que Trump pudesse derrotar os pré-candidatos republicanos. E, depois, arrasar Hillary Clinton. Mas o cisne negro conseguiu surpreender tudo e todos. Abrindo as portas para um novo paradigma, sinal do fim de um ciclo político e económico. Resta saber agora para onde darão essas portas. Porque, aparentemente, ninguém sabe. Nem Donald Trump, nem os americanos, nem a Europa, nem a Ásia, nem a África. A incógnita está aí à frente. Depois dos discursos radicais e fáceis de entender, chega agora o momento em que a forma tem de se transformar em conteúdo.