Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Don Juan enriquece no YouTube

Os olhos revirados de uma feiticeira combinados com os guinchos de uma macaca. É a fórmula secreta para activar uma verdadeira máquina do tempo. Do século XVII para o XXI numa questão de segundos. Don Juan, o conquistador, anda por aí. Bem no meio de nós.

José Frade
17 de Novembro de 2018 às 19:00
  • ...

"Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade"
Com texto e encenação de Pedro Gil, a peça está em cena no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, até 2 de dezembro. Com Filipa Matta, Miguel Loureiro, Pedro Gil, Raquel Castro, Rita Calçada Bastos e Tónan Quito.


Não raras vezes se ouve - de vozes mais ou menos assentes em teses filosóficas - que as palavras têm o poder de criar mundo, de desenhar novos mundos. E se há lugar onde se pode confirmar a justeza dessa posição é na sala de um teatro e numa peça como "Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade".

A "máquina do teatro", como lhe chamam em cena, é posta a funcionar. Seis actores, um palco praticamente vazio e uma capacidade de activar diferentes cenários a partir das palavras. É um teatro mais bruto, mais inocente e, por isso, mais envolvente. Partindo de uma narrativa partilhada pela vasta maioria do auditório, mas desconstruindo-a, adicionando-lhe novas camadas, reescrevendo-a.


Quem nunca ouviu falar em Don Juan? Fidalgo de Sevilha facilmente dado a (múltiplos e sucessivos) prazeres carnais, eternizado pela literatura espanhola. Arquétipo no qual se enquadram muitos dos conquistadores masculinos que se seguiram depois nas linhas da História. Ele é o protagonista do que hoje chamaríamos um autêntico "road movie": a cada nova personagem com que se cruza, acaba por transformá-la, deixando uma espécie de rasto de destruição. Até chegar a Lisboa.

Na história original, Don Juan é sugado para o inferno. No palco do São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, o seu inferno é outro: a passagem, em poucos segundos, do século XVII para o século XXI - como só a magia do teatro consegue executar. Os pecados do passado de Don Juan parecem, agora, autênticas brincadeiras de criança.

A extensa lista de potenciais experiências contemporâneas, que podem deixar confuso este marialva, só é abordada pela rama. Contudo, os episódios que se desenvolvem em cena permitem ter uma ideia do que aí anda à solta no mundo: o poder da internet e das redes sociais para disseminar mentiras, o assédio (quase) descarado a quem é socialmente mais frágil ou a vivência do amor mediatizado pela tecnologia.


A cada nova situação, o humor é o elemento que permite manter "Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade" como uma peça, diríamos, apesar do intervalo a meio, una e indivisível. Um humor pelo desenrolar da acção mas, sobretudo, pela forma como desmonta a cena, como dá a ver os elementos que a constroem, pelo modo como as personagens se sucedem nos corpos dos mesmos actores. Sem desmérito para o restante elenco, um breve destaque para o trabalho de Miguel Loureiro, pela forma como modela e torna leve e fluido os diferentes textos que lhe cabem.

É tempo de fugir às macumbas alheias, às estátuas do além. É tempo de aprender com as palavras e com as figuras do passado. Porque elas, por mais longínquas que nos pareçam, podem perfeitamente andar por aí a caminhar entre nós. As mesmas personalidades em corpos diferentes, com vocábulos diferentes. Numa sala de teatro ou em plena Avenida da Liberdade. 

Ver comentários
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio