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Cristina Branco: Há um tom menor que é tipicamente português

Em “Menina”, o seu último álbum, Cristina Branco olha para si mesma, ainda que através de letras e composições de outros. Começou a cantar quase por acaso, muito nova, e entretanto fez mais de uma dezena de discos.

Miguel Baltazar
17 de Fevereiro de 2017 às 14:00
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Começou a cantar quase por acaso, muito nova, e entretanto fez mais de uma dezena de discos. Entretanto, subiu aos palcos do mundo inteiro. Entretanto, tornou-se uma voz inesquecível da música portuguesa. Entretanto, o tempo passou. Em "Menina", o seu último álbum, Cristina Branco olha para si mesma, ainda que através de letras e composições de outros. De certa forma, é a constatação de que a música não serve para nos dar roupagens, mas para nos deixar descobertos. Em "Menina" colaboram músicos novos, de outras sonoridades, como Filho da Mãe ou André Henriques, dos Linda Martini. Mas em "Menina" também aparecem textos de fontes antigas e constantes de inspiração, como Amália Rodrigues. Cristina Branco parece gostar de caminhar nas fronteiras, mas regressa sempre ao fado, como quem regressa a um colo. No dia 25, canta no CCB, em Lisboa.


1. O palco, no fundo, é um espelho da vida, sobretudo quando se tem uma carreira longa. Lembro-me de estar em palco grávida e de ser uma coisa, e depois do pós-parto ser completamente diferente. Lembro-me de, aos 23 anos, pensar estes ténis vão ficar porreiros, de preocupar-me com uma saia, com o decote.

Isso para mim, hoje, não tem importância nenhuma. Hoje estou completamente focada naquilo que estou a dar aos outros e que não passa por nenhuma espécie de encenação.

2. A uma dada altura senti que tinha de parar. Há dois, três anos estava a fazer muita, muita estrada. Sempre a fazer discos. Mas deixei de olhar para o lado. E a verdade é que a vida em redor acontece muito mais depressa do que pensamos. Acho que perdi, de alguma maneira, a ligação com o exterior.

Precisava de parar, pensar, caminhar noutras direcções. Porque se eu falo das pessoas, se falo dos portugueses, se falo de nós, é preciso perceber o que é que está a acontecer. E é assim que surge este álbum, o "Menina".

Estava naquela fase em que se pensa que ao fim de tanto tempo já não se vai ter as bolinhas de champanhe, e de repente essas bolinhas estão a acontecer. Aos 44 anos, é fantástico.

3. Na verdade, fiz uma paragem sem parar. Fui ouvir o que outras pessoas estavam a fazer para também contextualizar a minha música. Fui ouvir autores novos. Fui ouvi-los e perceber se poderia haver alguma ligação com o meu trabalho anterior. Pensei que gente nova podia ouvir o que eu tinha feito e entender o que é que eu queria para o futuro.

Escrevi um texto sobre mim. Sentei-me e fiz quase uma escrita cega, automática. É um olhar ao espelho, mas para dentro. Escrevi um texto cru sobre a minha vida, sobre mim, até fisicamente, sobre ser mulher, sobre a passagem do tempo. A alguns músicos enviei o texto, a outros não, mas falei com eles sobre isso - e eles corresponderam todos.

Nós achamos que conseguimos o nosso tempo para pensar, mas não é verdade. Quando se tem uma carreira tão cheia, quando se tem uma família, filhos, quando se tem tanto para fazer, não sobra muito tempo para olhar para dentro.

4. Quando comecei a receber o resultado do trabalho desses autores, fiquei maravilhada.

Quando se atira uma flecha numa direcção, não se sabe que tipo de fruta vai cair.

Há uma perda de controlo, mas isso há sempre. Sei aquilo que quero na minha voz, mas só sou possessiva naquilo que consigo controlar, que é o meu instrumento, e naquilo que quero dar à interpretação. Tudo o resto prefiro delegar.

A primeira letra que recebi foi a do André Henriques, dos Linda Martini, o tema "E às vezes dou por mim", e percebi imediatamente que o caminho era aquele.
A juventude destes autores é tão grande, a voracidade de fazer bem e de fazer novo é tão grande e eles estão tão despertos - muito mais do que eu. Eu achava que não tinha perdido essa frescura, mas perde-se, nem que seja a estrada a tirar-te isso, há um certo cansaço.

Percebi também que há algo que une aquilo que eu estava a fazer antes, e até o fado tradicional, àquele género de música independente, música indie: há uma melancolia, um tom menor, que é tipicamente português e que também está neles.

5. Quando estou num processo criativo, sonho alto e canto imenso enquanto durmo.

Um dia, sonhei com o quadro do Velázquez "Las Meninas". Era um quadro que eu tinha analisado exaustivamente muitos anos antes, para um trabalho da faculdade. É um quadro com milhares de leituras dentro. Naquele sonho, o quadro aparecia e as personagens tinham vida e havia histórias à volta daquele espelho. Não costumo lembrar-me dos sonhos. Normalmente, só me lembro dos pesadelos. Mas lembrei-me desse e, ao pequeno-almoço, em casa, comentei e falámos sobre o quadro. E, de repente, pensei: se escrevi um texto sobre mim e se estou a pedir aos autores que escrevam sobre mulheres porque não chamar ao disco "Menina"?

Meninas somos todas, sempre. Vou ao café e continuam a tratar-me por menina. Pareceu-me a palavra certa.

Este "Menina" de alguma maneira está a falar das pessoas de hoje, mesmo quando utiliza textos mais antigos. Há um texto da Amália, em que a própria explora uma vertente da mulher que é intemporal: aquela dualidade tão tipicamente feminina, uma certa tristeza, uma certa melancolia.

6. No final da adolescência, quando comecei a cantar, os meus amigos diziam que o fado era careta.

O meu avô ofereceu-me um disco da Amália, justamente por causa de algumas pequenas discussões em que eu tinha dito que o fado era careta.

As pessoas perguntam-me: mas tu antes nunca tinhas ouvido fado e Amália? Sim, tinha ouvido, mas não tinha entrado. Tinha sido sempre de passagem.

Nem foi a voz, o potencial daquela voz, que é normalmente o grande impacto que a Amália tem nas pessoas. Foi a forma como ela dizia as palavras, a intensidade com que apresentava aquela história. Ela canta e tu vês a história. Sempre foi isso que me impressionou nela. E é sempre isso que eu persigo.

E isso melhora com a idade. O fado precisa de experiência, de uma densidade que não se tem aos 20 anos. Por muito que se queira. Até para cantar um texto leve. É a forma de flutuar na música. É a forma como se conta a história. Porque mesmo tentando interpretar e ser um pouco actriz, mesmo pegando num texto e tentando intensificá-lo, dar-lhe aquela carga, há um lado da nossa "persona" que não pode passar na música quando se tem 20 anos, porque não está lá: isso só a vida é que dá.

7. Desde o meu primeiro disco que habituei as pessoas a não ser estática no meu caminho. A minha árvore tem muitos ramos.

Já estou a pensar no próximo disco. O "Menina" é um disco de transição e agora vou para uma fase diferente. Mas jamais vou deixar o fado. Cada vez que me afasto - e posso afastar-me para onde quiser, posso ir para muito longe - o fado é sempre o sítio onde volto, é sempre a matriz, é sempre ali que vou beber.


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