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António Victorino d'Almeida: Eu dizia que se a Inês ganhasse as eleições era a “Incrível Almadense”

Tem como imagem de marca o cabelo desgrenhado, o sorriso fácil e a bengala. António Victorino d’Almeida acusa as autarquias de pagarem mal e a más horas aos músicos. Melhor, a alguns músicos. Agora a filha, Inês de Medeiros, foi eleita Presidente da Câmara de Almada.

Miguel Baltazar
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A sua filha, Inês de Medeiros, foi eleita presidente da Câmara de Almada, pelo PS. A autarquia era comunista desde 1976. Foi festejar a vitória com ela? 

Festejei ao telefone. Realmente foi uma vitória histórica. Nas autárquicas, os eleitores votam mais nas pessoas. E, em Almada, podem ter a certeza de que votaram na esquerda. A Inês é uma pessoa de esquerda e tem um grande espírito de renovação.

 

Mas acreditou desde o início que ela poderia ganhar?

Não. Eu até dizia que se ela ganhasse era a "Incrível Almadense". Mas, por outro lado, sabia que quando a Inês se mete num assunto é para o levar a sério. Ela concorreu para ganhar e penso que é uma pessoa muito capaz de conseguir um trabalho conjunto importante.

 

O maestro também já concorreu a umas eleições europeias. Foi em 1989, quando foi cabeça-de-lista, como independente, do MDP/CDE. Como é que foi essa experiência?

Foram o José Manuel Tengarrinha e a Helena Cidade Moura que me convidaram. O MDP/CDE, durante o regime anterior, foi a casa onde viveu toda a família democrática portuguesa. Depois, quando veio o 25 de Abril, os filhos saíram de casa aos poucos. O Tengarrinha pensou, e bem, que no Parlamento Europeu não havia um representante verdadeiramente vocacionado para defender a cultura portuguesa. E continua a não haver.

 

Já havia uma ligação entre os dois?

Não. Conhecia melhor a Helena Cidade Moura porque éramos amigos comuns da Natália Correia. Perdi essas eleições,  basicamente em Almada , por trezentos e poucos votos.

 

E agora a sua filha ganha a Câmara de Almada à CDU por uma diferença de pouco mais de 200 votos. Não deixa de ser irónico.

É verdade. (Risos) Felizmente estas eleições autárquicas, segundo sei, decorreram numa atmosfera muito boa. No meu tempo não foi tão bom. Se a Inês é de esquerda, o MDP/CDE era completamente de esquerda. A CDU queria eleger a quinta deputada, que era a Maria Santos, e nos últimos dias [da campanha] perderam a cabeça. Conseguiram eleger a quinta deputada e, passados quinze dias de lá estar, ela mudou-se para o PS.

 

As autarquias não têm 500 euros para pagar a um pianista e pagam 30 mil ou 40 mil euros a um músico pimba. Esta é a verdade. 

 

Qual era o seu grande objectivo? O que é que achava que podia fazer nesse cargo?

Era tornar a cultura portuguesa conhecida. Não conheço país nenhum do mundo em que a música seja tão ignorada como em Portugal. É uma coisa espantosa. Parece um defeito de nascença.

 

Mas ignorada em que sentido?

Nos órgãos de comunicação.

 

Mas está a falar de que tipo de música?

Música é cultura. O entretenimento é uma coisa importantíssima, mas não é cultura. Ir dançar para uma discoteca não é cultura. É entretenimento. Se quiserem criem o Ministério da Qualidade de Vida, onde se ponha o entretenimento, para as pessoas ficarem bem dispostas, ouvirem música e dançarem.

 

Há uma confusão entre cultura e entretenimento?

Sim, e uma tentativa de convencer as pessoas de que a única música que existe é o rock.

 

E a chamada música pimba?

Se você fizer uma análise harmónica, rítmica, melódica, tímbrica, são iguais. Se insistem em dizer que o rock é música superior ao pimba, enganam-se. Não é. São totalmente iguais. A única coisa que o rock tem a mais é uma máquina comercial obscena atrás. Estive a contabilizar e este Verão, nas várias televisões, chegava a haver um total de 16 horas por dia de publicidade gratuita aos festivais de Verão. Acredita que isto é de graça? Tudo se paga de alguma maneira. Não vamos ser tão ingénuos. Se me derem 16 horas por dia para falar de um marreco que toca pífaro, garanto-lhe que encho o Coliseu para o ouvirem. A música pop é um dos potentados do mundo. Cá em Portugal ignora-se, mas garanto-lhe que há um potentado musical maior e mais forte, que é a ópera. Ganha muito mais dinheiro, paga muito melhor e até tem muito mais gente a assistir. Em Portugal, não existe. Se eu lhe disser que em Espanha há sete ou oito teatros que têm ópera diária...

 

Isso é um problema de educação?

Não, de desonestidade na informação que é dada. Está-se a mentir. Em Portugal, há neste momento milhares de escolas de música e milhares de pessoas que querem estudar música por pauta. Não é aprender a cantar na banheira. Depois tem 600 bandas filarmónicas, cada uma com 80 pessoas. São outros milhares. Não há assim tantas bandas de garagem. É ignorância dizer que acabou a música.

 

Mas essas tais pessoas que estudam não têm oportunidade de se mostrar na televisão?

Claro que não. Nem na televisão, nem nos jornais. Na televisão, a divulgação de um concerto, quanto muito, é numa nota de rodapé. Ou então pagam publicidade. Acha isto honesto? Não é.

 

Isso em contraponto com os tais festivais?

Pois. Por dia eram 16 horas sem pagar nada. A guerra é feita contra nós e não é feita por nenhum artista de música pop, nem pimba, nem nada. Nós damo-nos todos bem. É feita pelas organizações empresariais que não são efectivamente limpas e por quem faz o jogo delas. É um lóbi fortíssimo. Mas comparado com o da ópera é muito menor.

 

Em Portugal, a ópera é vista como um espectáculo quase de elite.

Quando eu tinha vinte anos, o Coliseu tinha uma temporada de ópera diária durante dois meses, com quatro mil pessoas a assistir. Enchia tudo. Fora o Teatro São Carlos! Em todos os países da União Europeia, a ópera tem uma orquestra com cerca de 100 músicos, um coro com 80 a 90 cantores, um grupo de baile com 40 a 50 pessoas, depois tem os trabalhadores de palco. Um concerto qualquer no Rock in Rio não é nada ao lado disto. E é diário! Porque é que em Portugal se insiste em usar a ignorância como argumento?


 

Tem sido muito crítico na forma como o Ministério da Cultura e sobretudo as autarquias gastam dinheiro na área da música.

Se apenas um por cento do Orçamento do Estado é que vai para o Ministério da Cultura e, segundo os dados que conheço, metade desse dinheiro é para pagar a estrutura do próprio Ministério, edifícios, empregados... Está a ver onde é que isto já vai? Fica muitíssimo pouco. Se formos incluir na cultura a música pimba, a música pop e as discotecas, não há hipótese nenhuma.

 

E o papel das autarquias?

As autarquias não têm 500 euros para pagar a um pianista e pagam 30 mil ou 40 mil euros a um músico pimba. Esta é a verdade.

 

Então não é só uma questão de falta de dinheiro. Também é uma opção.

Claro.

 

Há quem diga que na música já está tudo inventado. Há cada vez mais casos de plágio. O mais recente envolveu as canções do Tony Carreira. Sempre se fez isto, mas  com as novas tecnologias torna-se mais fácil detectar estas situações?

Sempre foi assim. Aquilo tem duas ou três harmonias, numa sinfonia pode ter seiscentas ou setecentas, o ser igual a outra que tenha sido feita na Lituânia é quase inevitável. Quem é que garante que aqueles que ele alegadamente copiou também não copiaram outro? Aquela música é sempre igual! Plágio sempre existiu. Mas o plágio bem feito ninguém nota. Garanto que se me acontecesse, e pode acontecer, pôr um tema qualquer numa sonata, e de repente pensar "o Stravinsky já fez isto", ninguém se ralava, nem ninguém me insultava. Mas como é o Tony Carreira apanha porrada.

 

Este Verão, nas várias televisões, chegava a haver um total de 16 horas/dia de publicidade gratuita aos festivais. Acredita que isto é de graça? 

 

Concluiu o curso superior de Piano no Conservatório Nacional com 19 valores e ganhou uma bolsa para estudar composição em Viena. Quando chegou à Áustria, em 1960, que imagem os austríacos tinham de Portugal?

O cidadão comum não conhecia Portugal. Mas havia uma classe culturalmente mais desenvolvida que, infelizmente, conhecia e nos chamava fascistas e colonialistas. Eu fui a um café assistir ao jogo do Benfica contra o Real Madrid [na Taça dos Campeões Europeus 1961/62] e o Benfica ganhou 5-3. No dia seguinte, no meu bairro, as pessoas começaram a tratar-me por "der portugieser" (o português). Eu ganhei a minha nacionalidade nesse dia. (Risos) Depois, em 1974, com o 25 de Abril, Portugal era o país mais famoso do mundo.

 

Tinha a sua vida estabelecida na Áustria como músico. Mas, ao fim de 27 anos, decidiu vir para Portugal. Porquê?

Ter trabalho no Teatro Nacional da Áustria e vir para Lisboa, teoricamente não é um tiro no pé, é um tiro na cabeça. Mas a explicação é muito simples. A minha mãe morreu, eu sou filho único, as minhas três filhas estavam em Paris, e eu dei 20 anos de vida ao meu pai ao voltar para cá.

 

E o que veio fazer?

Tudo e mais alguma coisa. Fiz televisão, escrevo livros, componho. Vai-se vivendo. As câmaras, de quem eu digo tanto mal, apesar de tudo até me têm tratado bem. No espaço de um mês eu irei a quatro concertos organizados por autarquias. Isso não impede que as critique violentamente. A queixa que todos os músicos têm é a vergonha dos pagamentos em atraso. Isso chega a criar-nos situações de insolvência.

 

Há muitos músicos em insolvência?

Há. Com dinheiro a receber. Nós não ganhamos muito, se não nos pagarem, se estivermos dois, três meses à espera e formos pagar às finanças pelo dinheiro que não recebemos... Acabam por pagar, mas demora e pedem papéis. Isso é também um grande álibi para protelar porque depois perderam o papel ou não o receberam. E nós sempre a telefonar. Não há um único músico que não se queixe disso. Os pimbas de topo, como o Quim Barreiros, de quem eu sou amigo, não vão nisso. Recebem antes. Mas se o Artur Pizarro, a Olga Prats ou eu quisermos receber antes, eles dizem: "Então boa tarde!" As bandas de rock também podem receber antes, mas aí há outro problema. Quem recebe é o agente.

 

Há uns anos fez umas declarações amargas. Revelou que tinha uma reforma de 288 euros, que o obrigava todos os dias a ir à luta. Mantém-se a viver assim?

Agora tive dois concertos em que me pagaram no dia. Estou aqui todo bem-disposto. (Risos) Se não me pagassem eu tinha problemas em pagar o meu almoço [a conversa decorreu num restaurante]. E a pessoa fica azeda com isto. A minha reforma é essa. Tenho de trabalhar.

 

Havia um piano em sua casa, mas até aos seis anos não lhe tocou. Porquê?

Não sabia tocar. O meu primeiro instrumento foi a bateria. Foi o Pai Natal que me deu. Eu ia para a cozinha, onde a minha mulher-a- dias estava a ouvir rádio, ouvia as músicas e ia acompanhando na bateria. Houve uma professora de canto da minha mãe que ouviu e achou que eu devia aprender música. A partir daí começou a aventura.

 

O facto de ser filho único fez de si um menino mimado?

Não. Se vivesse no centro de Lisboa, filho único, o mais novo de cinco netos, a tocar piano, teria muitas condições para ser mais resguardado. Mas eu nasci na Avenida 5 de Outubro, que quando acabava eram hortas. Eu ia para lá com os ranhosos, os pés-descalços.

 

Ainda há muitas coisas que quero fazer. As pessoas, quando perdem a noção de que têm uma missão a cumprir, morrem.  

 

Quando é que a bengala aparece na sua vida?

Aos 14 anos. Descobri no sótão uma bengala japonesa em cana do meu avô. Era muito bonita, tinha uma serpente e saí para a rua para a mostrar aos meus amigos. Acho que não a pensava usar. Ao segundo dia ia a atravessar a rua, veio um carro e tive de correr um bocado, meti a bengala entre as pernas e parti-a. Fiquei muito triste. Uns dias depois, a minha mãe ofereceu-me outra para me compensar. A partir daí comecei a andar de bengala, até hoje.

 

Os seus netos mostram tendência para as artes?

Alguns. Tenho sete netos. Mas sabe, aquilo que efectivamente queria ser em miúdo era zoólogo. E o que é extraordinário é que o meu neto mais velho, filho da Inês, sem que eu tenha falado com ele nesse assunto, está em França a estudar Zoologia.

 

Porquê zoólogo?

Com bichos é que eu me entendo melhor. (Risos) Neste momento tenho uma cadela. Mas tive sempre animais em casa. Até tive um burro na casa do Campo Grande. Ele estava no quintal e era levado às cavalitas por uma escada de caracol para os bailes no sótão. Éramos para aí uns cinco a levá-lo. Chegámos a trazê-lo de automóvel de Moledo para Lisboa. Também tive um macaco. Mas não aconselho nada. É perigoso. Atacou uma tia minha de 90 anos, que ia morrendo de morte macaca. (Risos) Acabámos por ir pô-lo no Jardim Zoológico. Estava melhor lá.

 

Disse numa entrevista: "Não acredito no acaso e sinto que todos temos uma determinada missão a cumprir." Qual é a sua?

É a que estou a cumprir. É escrever o que tenho a escrever, compor o que tenho a compor. Ainda há muitas coisas que quero fazer. As pessoas, quando perdem a noção de que têm uma missão a cumprir, morrem.


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