Notícia
A Ponte que nunca fecha
A Ponte 25 de Abril cumpre 50 anos a 6 de Agosto. A travessia que mudou a face de Lisboa tem uma equipa a cuidar dela. São pintores, serralheiros, soldadores que se movem pelo esqueleto da travessia sem que sejam notados.
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A Ponte 25 de Abril cumpre 50 anos a 6 de Agosto. A travessia que mudou a face de Lisboa, por onde passam 140 mil veículos e quase 150 comboios por dia, tem uma equipa especial a cuidar dela. Pela estrutura leve, flexível, com vida, há trilhos desconhecidos, percorridos todos os dias para garantir a sua segurança.
Júlio Vaz gosta de estar no cimo da Ponte 25 de Abril. A 120 metros de altura do tabuleiro onde o tráfego corre ininterrupto. A quase 200 das águas rápidas do Tejo. No topo do pilar Sul da travessia que há 50 anos mudou a face de Lisboa, a vista é única e exclusiva. O silêncio dá-lhe paz de espírito.
É raro o dia em que este técnico da Infraestruturas de Portugal (IP), empresa que resultou da fusão entre a Refer e a Estradas de Portugal, não se desloque àquela estrutura de betão e aço. Júlio é um dos dois elementos que hoje compõem o gabinete da ponte (já foram cinco). Acompanha diariamente a equipa de 16 pessoas do Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ), com o qual a IP tem contrato, que em permanência inspecciona e repara esta obra de arte e os seus equipamentos. São pintores, serralheiros, soldadores, electricistas que a todo o tempo se movem pelo esqueleto da travessia sem que sejam notados.
Para Júlio, o trabalho na ponte é o seu ginásio. É que chegar até ao cimo, onde a lâmpada de obstáculos aéreos de 700 volts assinala ao longe a sua existência, exige esforço físico. E está interdito a quem sofra de claustrofobia ou de vertigens.
A subida faz-se pelo interior do pilar, onde o espaço escasseia. Fechado, escuro, quente, como um submarino. No meio, um apertado elevador, bastante mais jovem do que a ponte, permite ultrapassar vagarosamente alguns andares sem esforço. Não todos. Para chegar ao topo são ainda precisos braços e pernas bem preparados para galgar mais meia dúzia de lanços de escadas de ferro na vertical, a partir de outras tantas galerias exíguas. Só a lanterna do capacete guia o caminho.
Quando a última "escotilha" se abre, o cenário corta a respiração. Dali vê-se Palmela, o cabo Espichel, a Ponte Vasco da Gama, a baía do Seixal ou a serra de Sintra. Olha-se nos olhos o Cristo Rei.
Lá em baixo o trânsito acumula-se na praça na portagem, num stress que passa despercebido. Até o som que a ponte emite em contínuo, dos pneus a passarem sobre a grelha, perde intensidade. Também a vibração característica desta ponte suspensa desaparece. A calma do local, apenas ao alcance de alguns, contrasta com a azáfama que a cidade emana.
Há 23 anos que Júlio Vaz trabalha em pontes, três dos quais na 25 de Abril. Não se cansa, assegura. Cada dia é diferente e há sempre trabalho a fazer. Conhece cada canto. Distingue cada som. Nem o ruído que se ouve do tabuleiro rodoviário é sempre igual, garante. "Quanto menos trânsito, mais alto é o barulho porque as velocidades são maiores", aponta.
Dentro de cada uma das duas torres principais da ponte não há rede de telemóvel. Lá no alto o vento faz-se sentir forte. Por isso há regras. Procedimentos de segurança a cumprir. Desde logo, ninguém pode ir sozinho à estrutura e qualquer entrada é sempre comunicada. Com muito vento e chuva, os trabalhos são deixados para o dia seguinte. A humidade torna o piso escorregadio. O mar está próximo e o Tejo é, nesta zona, um rio de águas salgadas.
Memórias de uma ponte
A dias de comemorar 50 anos, a Ponte 25 de Abril tornou-se um ex-líbris da cidade e do país. Faz parte do património e por isso está em processo de classificação como monumento nacional.
A primeira proposta para ligar as duas margens do Tejo data de 1876, mas não chegou a sair do papel. Ao longo dos séculos XIX e XX, várias ideias foram apresentadas, desde a construção da travessia no eixo Chiado-Almada, ligando a zona do Beato ao Montijo, a partir do Alto de Santa Catarina ou da zona da Rocha Conde de Óbidos.
Apesar dos esboços, soluções e reformulações apresentadas, o projecto teve de esperar. Só em 1953 foi criada uma comissão para estudar e apresentar respostas, que concluiu pela viabilidade técnica e financeira da travessia. O lançamento do concurso foi autorizado. Das quatro propostas apresentadas, a obra foi adjudicada em 1960 à norte-americana United States Steel Export Company e, em 1962, começaram os trabalhos. Uma ponte constituída por uma estrutura metálica, suspensa, com quase 2.300 metros de comprimento (distância entre amarrações), com duas torres principais a 190,5 metros acima do nível da água, a cerca de 500 metros de cada margem, e uma altura livre de navegação de 70 metros. Na construção trabalharam directamente 14 empresas, das quais 11 portuguesas. Chegaram a estar 3.000 trabalhadores na obra no mesmo dia. Na altura, era a maior ponte suspensa da Europa e a quinta maior do mundo.
A 6 de Agosto de 1966, foi inaugurada com pompa e circunstância a então Ponte Salazar, nome rapidamente substituído com a revolução de 1974. A obra foi concluída seis meses antes do previsto e o investimento totalizou 2,2 milhões de contos (o equivalente a quase 11 milhões de euros).
Pela travessia passam hoje, em média, 140 mil veículos por dia e, nos dias úteis, mais de 70 comboios em cada sentido, que transportam quase 20 milhões de passageiros por ano.
Pela importância que tem para a mobilidade na região de Lisboa, ganhou um estatuto especial. "É a única ponte que tem um decreto-lei só para si", conta Pedro Abegão, responsável da IP pela gestão desta infra-estrutura. Explica que, em 2008, o Governo sentiu necessidade de criar legislação específica para a Ponte 25 de Abril, delimitando o âmbito de actuação das três entidades então envolvidas - Estradas de Portugal, Refer (agora fundidas na IP) e Lusoponte - para não suscitar conflitos de competência. As atribuições em matéria de manutenção, conservação, beneficiação e grande reparação da ponte e do viaduto Norte ficaram estabelecidas. O mesmo aconteceu com a coordenação e gestão integrada da segurança.
A 25 de Abril também é a única ponte do país que tem um conselho de segurança, um órgão consultivo que funciona na dependência do presidente da IP, mas que inclui ainda representantes da Lusoponte, Instituto da Mobilidade e dos Transportes, Autoridade Nacional da Protecção Civil e um representante das forças e serviços de segurança. Das sete mil obras de arte que a IP tem a seu cargo, só esta ponte está autonomizada e conta com uma equipa específica a cuidar dela.
"É inspeccionada todos os dias", explica Pedro Abegão. Apesar de as inspecções terem diferentes periodicidades, "como a ponte tem milhares de elementos, todos os dias há qualquer coisa para inspeccionar", acrescenta. Verifica-se constantemente a estrutura, do betão ao metal, aos equipamentos. Da iluminação aos parafusos e cabos, passando pelas estruturas submersas. Todos os meses são produzidos relatórios sobre o estado de conservação da travessia, essencial para a mobilidade de milhares de pessoas.
Diariamente, há intervenções. A estratégia, explica o responsável pela gestão da ponte, "é ir fazendo pequenos trabalhos de manutenção para espaçar o mais possível no tempo as grandes reparações". Tanto quanto possível, a IP procura realizar estes trabalhos de maior envergadura de cinco em cinco anos. São obras caras, realizadas à noite e aos fins-de-semana. Porque a ponte nunca fecha.
Turistas no tabuleiro
Na verdade, fecha. Ao trânsito. Um dia por ano, num domingo de Março, o seu tráfego perpétuo é travado durante algumas horas. A Meia Maratona de Lisboa tornou possível atravessar a ponte a pé.
Ao contrário da Golden Gate, a travessia do Tejo é interdita a peões e ciclistas. A ponte de São Francisco, que abriu em 1937, tem igual arquitectura de ponte suspensa e a mesma cor. Semelhanças que levam por vezes a que apareçam turistas no tabuleiro da 25 de Abril. Sem consciência da proibição nem dos riscos que estão a correr no passeio escolhido, acabam por ser resgatados pela polícia.
No entanto, sobre episódios mais insólitos ou radicais, como os que tentam escalar esta estrutura, ninguém quer falar porque são falhas de segurança. Estas situações, assim como os acidentes de viação, são detectadas pelo conjunto de câmaras de vigilância, instaladas em zonas nevrálgicas e em funcionamento permanente. Através de 13 câmaras de vídeo, a ponte e os seus acessos são vigiados em toda a sua extensão pela Lusoponte e pela polícia.
Na ponte existe também um sismógrafo. O pilar da torre Sul está assente na falha sísmica de Lisboa. Apesar disso, recorda Pedro Abegão, "nos anos 60 dizia-se que, em caso de haver um terramoto na capital, a ponte era o lugar mais seguro para se estar".
É que uma estrutura é tanto mais resistente a um sismo quanto mais flexível for. E a 25 de Abril é bem flexível. No ensaio de carga feito antes da sua abertura ao trânsito em 1966, com dezenas de camiões da Sonap, a petrolífera de Manuel Boullosa, a ponte cedeu três metros. Mas assim que foi retirado o peso voltou ao lugar.
Dinâmica, leve, flexível, elástica, são características que descrevem esta construção. Como a define a IP, que este ano está a ponderar fazer um simulacro ao vivo, a ponte é resiliente ao atrito, ao vento e aos movimentos tectónicos. "É segura, mas não invencível", resume Pedro Abegão.
Por questões de segurança, em 2015 a ponte foi encerrada durante cerca de duas horas. Aquilo que se revelou ser um saco de roupa suja, considerado no primeiro momento "um embrulho suspeito", causou em Maio do ano passado um dos maiores engarrafamentos de trânsito em Lisboa por ter obrigado ao corte da 25 de Abril.
Quase 21 anos antes tinha ficado para a História outro bloqueio. Desta vez protagonizado por seis camiões, mas também por automóveis e motas. A 24 de Junho de 1994, o "buzinão" contra o aumento de 50% do preço das portagens - de 100 para 150 escudos (50 para 75 cêntimos) - transformou-se numa batalha campal entre camionistas e polícias. Houve carga contra os manifestantes, pedras lançadas contra as forças de segurança e até tiros foram disparados. O aumento do preço estava previsto no contrato com a Lusoponte, a empresa que iria construir a Ponte Vasco da Gama e que passaria em 1996 a ter a concessão da 25 de Abril. O Governo acabou por recuar na subida das taxas de portagem, mas o filme daquele dia abalou o Executivo de Cavaco Silva.
Hoje, atravessar a ponte para Lisboa custa 1,70 euros (equivalente a 340 escudos) aos veículos da classe 1.
Os caminhos longe da vista
Quem passa todos os dias nesta travessia do Tejo não se apercebe do trabalho que é feito em permanência. Não vê o passadiço central, como que uma espinha dorsal, encaixado entre o tabuleiro rodoviário e o ferroviário, entre os pneus dos carros e os comboios da Fertagus. Não se apercebe da confortável dimensão dos patamares junto ao rio. Não conhece os trilhos, degraus e acessos que existem nos dois tabuleiros para que seja possível manter e cuidar.
Em 2010, foi feito um importante investimento na segurança e saúde dos que diariamente cuidam da ponte, relata Pedro Abegão. As acessibilidades que permitem levar a cabo as intervenções na estrutura estavam, até então, como nos anos 60, tendo sido substituídas escadas e passadiços, alguns dos quais eram ainda de madeira.
De acordo com o responsável, o mais importante na ponte é a protecção anticorrosiva da estrutura, exposta permanentemente a um ambiente agressivo, não só por estar próxima do mar, mas também porque sofre com a poluição atmosférica.
Para 2017, revela Pedro Abegão, está previsto o lançamento de uma empreitada de conservação e reparação, pelo valor base de 18 milhões e duração de dois anos, abrangendo a estrutura, parte metálica e betão.
Para quem trabalha na ponte é importante aceder a todos os locais. Mesmo pela curta distância a que passam carros e camiões, é pelo tabuleiro rodoviário que entra quem vem do estaleiro localizado na margem sul. É possível descer ao ferroviário e circular ao lado da linha. De cada vez que passa um comboio - à hora de ponta, a uma cadência de 10 em 10 minutos em cada sentido -, a regra é encostar esses segundos ao guarda-corpos.
Os dois elevadores da ponte tanto permitem subir ao topo das torres, como descer ao rio. Aí, junto às plataformas de betão onde foram desenhados golfinhos, há polvos e mexilhões. E pescadores que ali os vão apanhar. Abaixo da superfície, o pilar Sul tem ainda mais 80 metros até tocar no leito do rio, enquanto o pilar Norte tem 35 metros.
A algumas zonas da ponte, o acesso é impossível para os trabalhadores habituais. "Ao exterior das torres não conseguimos aceder", exemplifica Pedro Abegão, explicando que a inspecção a esse local é por isso feita de binóculos. Se é preciso pintar, recorre-se a alpinistas. Também não é possível alcançar o interior do tabuleiro do viaduto Norte. "Há serviços para os quais temos de recorrer a equipamento especial, é a única forma", afirma.
O responsável da IP pela gestão da Ponte 25 de Abril não tem dúvidas de que, para quem lá trabalha, "o risco está sempre presente". "A ponte apresenta os riscos mais elevados de electrocussão, atropelamento e queda, mas felizmente tal nunca aconteceu", assinala Pedro Abegão. Oficialmente, houve quatro mortes na construção da ponte.
Ponte cresce com a região
"Cem milhões de europeus viram pela televisão a maior e mais bela ponte do Velho Continente." Esta foi a manchete do Diário de Notícias de 7 de Agosto de 1966. Quando abriu ao trânsito, a travessia tinha duas vias em cada sentido, com um separador central. O pagamento da portagem era feito no sentido Lisboa-Almada e tinha um custo de 20 escudos (10 cêntimos). A praça da portagem era composta por cinco cabinas.
A ponte cresceu com a região de Lisboa. Em 1960, viviam nesta área metropolitana 1,5 milhões de pessoas, em 1991 mais um milhão e em 2014 já eram 2,8 milhões de pessoas.
Em 1990, por causa do já então elevado volume de tráfego, a ponte passou a ter uma quinta via reversível, onde antes estava o separador central. De manhã funcionava para quem entrava em Lisboa, ao fim da tarde para os que estavam de saída. Ficou conhecida como a "noiva", por estar pintada de branco. A praça da portagem foi então também reformulada e o sentido de cobrança das portagens invertido, passando a ser feito no sentido Sul-Norte.
Em 1998, entrou em serviço a sexta via rodoviária, apenas alguns meses antes de ser inaugurada a ligação ferroviária. O comboio na ponte estava previsto no projecto inicial, mas só em 1999 se tornou realidade. A estrutura da ponte teve de ser reforçada para suportar esse segundo tabuleiro, com 917 metros.
Além dos cabos primários de origem - que pesam 8.000 toneladas e foram construídos "in loco" - foram colocados cabos secundários por cima. Os primeiros têm mais de 58 centímetros de diâmetro, e cada um conta com 11.248 fios de aço. Já os cabos secundários têm mais de 35 centímetros de diâmetro e 4.104 fios de aço. No total, os fios de aço nestes cabos ultrapassam os 74 mil quilómetros.
A construção da Ponte Vasco de Gama, que abriu em 1998, pretendia aliviar o trânsito sobre a travessia que está em vias de se tornar cinquentenária, o que não aconteceu. O debate sobre a construção de uma terceira ligação de Lisboa à margem sul era intenso há mais de 10 anos, mas foi travado pela crise.
A Ponte 25 de Abril chegou ao limite da capacidade de alargamento. Não há espaço para criar nem mais uma faixa de circulação automóvel nem de via férrea. Mas ainda pode ter mais movimento, garante Pedro Abegão. A estrutura tem capacidade de receber ainda mais carros e mais comboios por dia. Será por aí que evoluirá nos próximos 50 anos.
Júlio Vaz gosta de estar no cimo da Ponte 25 de Abril. A 120 metros de altura do tabuleiro onde o tráfego corre ininterrupto. A quase 200 das águas rápidas do Tejo. No topo do pilar Sul da travessia que há 50 anos mudou a face de Lisboa, a vista é única e exclusiva. O silêncio dá-lhe paz de espírito.
Para Júlio, o trabalho na ponte é o seu ginásio. É que chegar até ao cimo, onde a lâmpada de obstáculos aéreos de 700 volts assinala ao longe a sua existência, exige esforço físico. E está interdito a quem sofra de claustrofobia ou de vertigens.
A subida faz-se pelo interior do pilar, onde o espaço escasseia. Fechado, escuro, quente, como um submarino. No meio, um apertado elevador, bastante mais jovem do que a ponte, permite ultrapassar vagarosamente alguns andares sem esforço. Não todos. Para chegar ao topo são ainda precisos braços e pernas bem preparados para galgar mais meia dúzia de lanços de escadas de ferro na vertical, a partir de outras tantas galerias exíguas. Só a lanterna do capacete guia o caminho.
Quando a última "escotilha" se abre, o cenário corta a respiração. Dali vê-se Palmela, o cabo Espichel, a Ponte Vasco da Gama, a baía do Seixal ou a serra de Sintra. Olha-se nos olhos o Cristo Rei.
Lá em baixo o trânsito acumula-se na praça na portagem, num stress que passa despercebido. Até o som que a ponte emite em contínuo, dos pneus a passarem sobre a grelha, perde intensidade. Também a vibração característica desta ponte suspensa desaparece. A calma do local, apenas ao alcance de alguns, contrasta com a azáfama que a cidade emana.
Há 23 anos que Júlio Vaz trabalha em pontes, três dos quais na 25 de Abril. Não se cansa, assegura. Cada dia é diferente e há sempre trabalho a fazer. Conhece cada canto. Distingue cada som. Nem o ruído que se ouve do tabuleiro rodoviário é sempre igual, garante. "Quanto menos trânsito, mais alto é o barulho porque as velocidades são maiores", aponta.
Dentro de cada uma das duas torres principais da ponte não há rede de telemóvel. Lá no alto o vento faz-se sentir forte. Por isso há regras. Procedimentos de segurança a cumprir. Desde logo, ninguém pode ir sozinho à estrutura e qualquer entrada é sempre comunicada. Com muito vento e chuva, os trabalhos são deixados para o dia seguinte. A humidade torna o piso escorregadio. O mar está próximo e o Tejo é, nesta zona, um rio de águas salgadas.
Memórias de uma ponte
A dias de comemorar 50 anos, a Ponte 25 de Abril tornou-se um ex-líbris da cidade e do país. Faz parte do património e por isso está em processo de classificação como monumento nacional.
A primeira proposta para ligar as duas margens do Tejo data de 1876, mas não chegou a sair do papel. Ao longo dos séculos XIX e XX, várias ideias foram apresentadas, desde a construção da travessia no eixo Chiado-Almada, ligando a zona do Beato ao Montijo, a partir do Alto de Santa Catarina ou da zona da Rocha Conde de Óbidos.
Apesar dos esboços, soluções e reformulações apresentadas, o projecto teve de esperar. Só em 1953 foi criada uma comissão para estudar e apresentar respostas, que concluiu pela viabilidade técnica e financeira da travessia. O lançamento do concurso foi autorizado. Das quatro propostas apresentadas, a obra foi adjudicada em 1960 à norte-americana United States Steel Export Company e, em 1962, começaram os trabalhos. Uma ponte constituída por uma estrutura metálica, suspensa, com quase 2.300 metros de comprimento (distância entre amarrações), com duas torres principais a 190,5 metros acima do nível da água, a cerca de 500 metros de cada margem, e uma altura livre de navegação de 70 metros. Na construção trabalharam directamente 14 empresas, das quais 11 portuguesas. Chegaram a estar 3.000 trabalhadores na obra no mesmo dia. Na altura, era a maior ponte suspensa da Europa e a quinta maior do mundo.
A 6 de Agosto de 1966, foi inaugurada com pompa e circunstância a então Ponte Salazar, nome rapidamente substituído com a revolução de 1974. A obra foi concluída seis meses antes do previsto e o investimento totalizou 2,2 milhões de contos (o equivalente a quase 11 milhões de euros).
Pela travessia passam hoje, em média, 140 mil veículos por dia e, nos dias úteis, mais de 70 comboios em cada sentido, que transportam quase 20 milhões de passageiros por ano.
Pela importância que tem para a mobilidade na região de Lisboa, ganhou um estatuto especial. "É a única ponte que tem um decreto-lei só para si", conta Pedro Abegão, responsável da IP pela gestão desta infra-estrutura. Explica que, em 2008, o Governo sentiu necessidade de criar legislação específica para a Ponte 25 de Abril, delimitando o âmbito de actuação das três entidades então envolvidas - Estradas de Portugal, Refer (agora fundidas na IP) e Lusoponte - para não suscitar conflitos de competência. As atribuições em matéria de manutenção, conservação, beneficiação e grande reparação da ponte e do viaduto Norte ficaram estabelecidas. O mesmo aconteceu com a coordenação e gestão integrada da segurança.
A 25 de Abril também é a única ponte do país que tem um conselho de segurança, um órgão consultivo que funciona na dependência do presidente da IP, mas que inclui ainda representantes da Lusoponte, Instituto da Mobilidade e dos Transportes, Autoridade Nacional da Protecção Civil e um representante das forças e serviços de segurança. Das sete mil obras de arte que a IP tem a seu cargo, só esta ponte está autonomizada e conta com uma equipa específica a cuidar dela.
"É inspeccionada todos os dias", explica Pedro Abegão. Apesar de as inspecções terem diferentes periodicidades, "como a ponte tem milhares de elementos, todos os dias há qualquer coisa para inspeccionar", acrescenta. Verifica-se constantemente a estrutura, do betão ao metal, aos equipamentos. Da iluminação aos parafusos e cabos, passando pelas estruturas submersas. Todos os meses são produzidos relatórios sobre o estado de conservação da travessia, essencial para a mobilidade de milhares de pessoas.
Diariamente, há intervenções. A estratégia, explica o responsável pela gestão da ponte, "é ir fazendo pequenos trabalhos de manutenção para espaçar o mais possível no tempo as grandes reparações". Tanto quanto possível, a IP procura realizar estes trabalhos de maior envergadura de cinco em cinco anos. São obras caras, realizadas à noite e aos fins-de-semana. Porque a ponte nunca fecha.
Turistas no tabuleiro
Na verdade, fecha. Ao trânsito. Um dia por ano, num domingo de Março, o seu tráfego perpétuo é travado durante algumas horas. A Meia Maratona de Lisboa tornou possível atravessar a ponte a pé.
Ao contrário da Golden Gate, a travessia do Tejo é interdita a peões e ciclistas. A ponte de São Francisco, que abriu em 1937, tem igual arquitectura de ponte suspensa e a mesma cor. Semelhanças que levam por vezes a que apareçam turistas no tabuleiro da 25 de Abril. Sem consciência da proibição nem dos riscos que estão a correr no passeio escolhido, acabam por ser resgatados pela polícia.
No entanto, sobre episódios mais insólitos ou radicais, como os que tentam escalar esta estrutura, ninguém quer falar porque são falhas de segurança. Estas situações, assim como os acidentes de viação, são detectadas pelo conjunto de câmaras de vigilância, instaladas em zonas nevrálgicas e em funcionamento permanente. Através de 13 câmaras de vídeo, a ponte e os seus acessos são vigiados em toda a sua extensão pela Lusoponte e pela polícia.
Na ponte existe também um sismógrafo. O pilar da torre Sul está assente na falha sísmica de Lisboa. Apesar disso, recorda Pedro Abegão, "nos anos 60 dizia-se que, em caso de haver um terramoto na capital, a ponte era o lugar mais seguro para se estar".
É que uma estrutura é tanto mais resistente a um sismo quanto mais flexível for. E a 25 de Abril é bem flexível. No ensaio de carga feito antes da sua abertura ao trânsito em 1966, com dezenas de camiões da Sonap, a petrolífera de Manuel Boullosa, a ponte cedeu três metros. Mas assim que foi retirado o peso voltou ao lugar.
Dinâmica, leve, flexível, elástica, são características que descrevem esta construção. Como a define a IP, que este ano está a ponderar fazer um simulacro ao vivo, a ponte é resiliente ao atrito, ao vento e aos movimentos tectónicos. "É segura, mas não invencível", resume Pedro Abegão.
Por questões de segurança, em 2015 a ponte foi encerrada durante cerca de duas horas. Aquilo que se revelou ser um saco de roupa suja, considerado no primeiro momento "um embrulho suspeito", causou em Maio do ano passado um dos maiores engarrafamentos de trânsito em Lisboa por ter obrigado ao corte da 25 de Abril.
Quase 21 anos antes tinha ficado para a História outro bloqueio. Desta vez protagonizado por seis camiões, mas também por automóveis e motas. A 24 de Junho de 1994, o "buzinão" contra o aumento de 50% do preço das portagens - de 100 para 150 escudos (50 para 75 cêntimos) - transformou-se numa batalha campal entre camionistas e polícias. Houve carga contra os manifestantes, pedras lançadas contra as forças de segurança e até tiros foram disparados. O aumento do preço estava previsto no contrato com a Lusoponte, a empresa que iria construir a Ponte Vasco da Gama e que passaria em 1996 a ter a concessão da 25 de Abril. O Governo acabou por recuar na subida das taxas de portagem, mas o filme daquele dia abalou o Executivo de Cavaco Silva.
Hoje, atravessar a ponte para Lisboa custa 1,70 euros (equivalente a 340 escudos) aos veículos da classe 1.
Os caminhos longe da vista
Quem passa todos os dias nesta travessia do Tejo não se apercebe do trabalho que é feito em permanência. Não vê o passadiço central, como que uma espinha dorsal, encaixado entre o tabuleiro rodoviário e o ferroviário, entre os pneus dos carros e os comboios da Fertagus. Não se apercebe da confortável dimensão dos patamares junto ao rio. Não conhece os trilhos, degraus e acessos que existem nos dois tabuleiros para que seja possível manter e cuidar.
Em 2010, foi feito um importante investimento na segurança e saúde dos que diariamente cuidam da ponte, relata Pedro Abegão. As acessibilidades que permitem levar a cabo as intervenções na estrutura estavam, até então, como nos anos 60, tendo sido substituídas escadas e passadiços, alguns dos quais eram ainda de madeira.
De acordo com o responsável, o mais importante na ponte é a protecção anticorrosiva da estrutura, exposta permanentemente a um ambiente agressivo, não só por estar próxima do mar, mas também porque sofre com a poluição atmosférica.
Para 2017, revela Pedro Abegão, está previsto o lançamento de uma empreitada de conservação e reparação, pelo valor base de 18 milhões e duração de dois anos, abrangendo a estrutura, parte metálica e betão.
Para quem trabalha na ponte é importante aceder a todos os locais. Mesmo pela curta distância a que passam carros e camiões, é pelo tabuleiro rodoviário que entra quem vem do estaleiro localizado na margem sul. É possível descer ao ferroviário e circular ao lado da linha. De cada vez que passa um comboio - à hora de ponta, a uma cadência de 10 em 10 minutos em cada sentido -, a regra é encostar esses segundos ao guarda-corpos.
Os dois elevadores da ponte tanto permitem subir ao topo das torres, como descer ao rio. Aí, junto às plataformas de betão onde foram desenhados golfinhos, há polvos e mexilhões. E pescadores que ali os vão apanhar. Abaixo da superfície, o pilar Sul tem ainda mais 80 metros até tocar no leito do rio, enquanto o pilar Norte tem 35 metros.
A algumas zonas da ponte, o acesso é impossível para os trabalhadores habituais. "Ao exterior das torres não conseguimos aceder", exemplifica Pedro Abegão, explicando que a inspecção a esse local é por isso feita de binóculos. Se é preciso pintar, recorre-se a alpinistas. Também não é possível alcançar o interior do tabuleiro do viaduto Norte. "Há serviços para os quais temos de recorrer a equipamento especial, é a única forma", afirma.
O responsável da IP pela gestão da Ponte 25 de Abril não tem dúvidas de que, para quem lá trabalha, "o risco está sempre presente". "A ponte apresenta os riscos mais elevados de electrocussão, atropelamento e queda, mas felizmente tal nunca aconteceu", assinala Pedro Abegão. Oficialmente, houve quatro mortes na construção da ponte.
Ponte cresce com a região
"Cem milhões de europeus viram pela televisão a maior e mais bela ponte do Velho Continente." Esta foi a manchete do Diário de Notícias de 7 de Agosto de 1966. Quando abriu ao trânsito, a travessia tinha duas vias em cada sentido, com um separador central. O pagamento da portagem era feito no sentido Lisboa-Almada e tinha um custo de 20 escudos (10 cêntimos). A praça da portagem era composta por cinco cabinas.
A ponte cresceu com a região de Lisboa. Em 1960, viviam nesta área metropolitana 1,5 milhões de pessoas, em 1991 mais um milhão e em 2014 já eram 2,8 milhões de pessoas.
Em 1990, por causa do já então elevado volume de tráfego, a ponte passou a ter uma quinta via reversível, onde antes estava o separador central. De manhã funcionava para quem entrava em Lisboa, ao fim da tarde para os que estavam de saída. Ficou conhecida como a "noiva", por estar pintada de branco. A praça da portagem foi então também reformulada e o sentido de cobrança das portagens invertido, passando a ser feito no sentido Sul-Norte.
Em 1998, entrou em serviço a sexta via rodoviária, apenas alguns meses antes de ser inaugurada a ligação ferroviária. O comboio na ponte estava previsto no projecto inicial, mas só em 1999 se tornou realidade. A estrutura da ponte teve de ser reforçada para suportar esse segundo tabuleiro, com 917 metros.
Além dos cabos primários de origem - que pesam 8.000 toneladas e foram construídos "in loco" - foram colocados cabos secundários por cima. Os primeiros têm mais de 58 centímetros de diâmetro, e cada um conta com 11.248 fios de aço. Já os cabos secundários têm mais de 35 centímetros de diâmetro e 4.104 fios de aço. No total, os fios de aço nestes cabos ultrapassam os 74 mil quilómetros.
A construção da Ponte Vasco de Gama, que abriu em 1998, pretendia aliviar o trânsito sobre a travessia que está em vias de se tornar cinquentenária, o que não aconteceu. O debate sobre a construção de uma terceira ligação de Lisboa à margem sul era intenso há mais de 10 anos, mas foi travado pela crise.
A Ponte 25 de Abril chegou ao limite da capacidade de alargamento. Não há espaço para criar nem mais uma faixa de circulação automóvel nem de via férrea. Mas ainda pode ter mais movimento, garante Pedro Abegão. A estrutura tem capacidade de receber ainda mais carros e mais comboios por dia. Será por aí que evoluirá nos próximos 50 anos.