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A nova Turquia

Erdogan tem um desafio histórico: irá conseguir que esta unidade nacional propiciada pelo golpe envolva todas as correntes da sociedade turca? Ou esta unidade agora é apenas simbólica?

Umit Bektas/Reuters
12 de Agosto de 2016 às 14:00
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Pareceu-se com uma unanimidade nacional. Os milhões de turcos que, há dias, se juntaram em Istambul para protestar contra a tentativa de golpe de 15 de Julho e para celebrar a democracia demonstraram uma união quase perfeita. Tal como a que era visível no palco: líderes de três partidos políticos acederam ao pedido de Recep Tayyip Erdogan e deixaram, por momentos, de lado as suas diferenças políticas. O primeiro-ministro, Binali Yildirim, não poderia ser mais claro: "Istambul é grande." E foi realmente na cidade que une a Europa e a Ásia que o golpe foi travado. Nas ruas. O líder do CHP foi ainda mais claro: "O 15 de Julho abriu a porta para um novo consenso para a Turquia."

Esse é, realmente, o grande desafio: limpando-se a administração pública e o sector militar dos activistas do clérigo Fethullah Gülen, que consenso existirá para a Turquia? E que novas alianças poderão forjar-se, devido à desconfiança com que Erdogan olha agora para o Ocidente (a Alemanha diz que os vistos para cidadãos turcos não são para já). Há poucos dias, Yildirim foi taxativo ao afirmar, defronte da tumba de Mustafa Kemal Atatürk, que o povo tinha ganho a sua segunda guerra de independência. Como se tudo indicasse que estamos a assistir ao nascimento de uma nova Turquia.

Há pontos de contacto: a guerra da independência de 1919, liderada por Atatürk, foi uma luta contra os ocupantes estrangeiros depois da assinatura do humilhante Armistício de Mudros, que levou à partilha do Império Otomano. A guerra terminou com uma vitória três anos depois e nascia então uma nova Turquia. E nela os militares eram os defensores activos da nova República.


Atatürk pretendia uma república nacionalista e centralizada em busca de conseguir o progresso e a justiça. As instituições religiosas foram afastadas da administração pública e controladas. Essa tarefa, concluída nos anos de 1930 (ainda antes do desaparecimento de Atatürk), revelou ter pés de barro, sobretudo quando se tornou difícil passar de um regime de partido único para uma democracia pluralista. A vitória de Adnan Menderes, em 1950, com o Partido Democrático, parecia abrir as portas para esta Turquia pluralista. Mas os 10 anos de poder viriam a terminar tragicamente: seria enforcado pelos militares, após mais um golpe.

As reformas feitas a partir de meados da década de 1980 pelo presidente Turgut Özal reflectiram-se decisivamente na sociedade: uma nova classe média emergiu. Ficou pavimentado o caminho para a chegada ao poder de Erdogan e do AKP. Que, depois de barrado o sonho europeu e confrontado com um declínio do poder turco nas suas zonas de influência histórica (Ásia central e Médio Oriente), conheceu algum isolamento.

O "querido amigo" Putin

A tentativa de golpe acaba por transformar este tempo numa era de recentramento da estratégia da Turquia. O Ocidente está mais longe (tal como os seus aliados árabes, especialmente a Arábia Saudita). E a Rússia, e mesmo o Irão, parece mais próxima, num redesenhar de alianças na zona que vai ganhando peso. No encontro desta semana com Vladimir Putin, Erdogan referiu-se, várias vezes, ao Presidente russo como "o meu querido amigo", agradecendo o seu apoio após a tentativa de golpe de 15 de Julho. Também a reunião em Baku, de Putin com os Presidentes do Azerbaijão e do Irão, mostra que novas cumplicidades estarão a forjar-se. Se a Turquia se abstiver, Bashar al-Assad poderá mais facilmente manter-se na Síria. Afinal, a Europa incitou a Turquia a criar e financiar a "oposição" do Exército Livre sírio ao regime de Damasco e alimentou as esperanças de Ancara porque desejava que esta fosse o contraponto ao poder de Teerão. Resta saber como Riade, Telavive e Washington assistirão a tudo isto.

A Turquia vive um dos seus momentos cruciais. A "limpeza" das Forças Armadas e da administração pública e do sector educativo privado vai criar um novo pólo de poder, mais centralizado. E, aí, Erdogan tem um desafio histórico: irá conseguir que esta unidade nacional propiciada pelo golpe envolva todas as correntes da sociedade turca? Ou esta unidade é agora apenas simbólica? A Turquia busca redefinir a sua identidade e isso tem que ver com a forma como irá reformar o Estado, a educação, o sector judiciário e o militar. E precisa de definir o seu lugar na zona e no mundo. É aí que poderá centrar-se outro problema: como conciliar isso com a herança do Estado legado por Atatürk? Será uma tarefa titânica, se o poder turco desejar fazer isso. Mas também terá de conviver com a imagem de desconfiança que o Ocidente criou da Turquia e de Erdogan depois da tentativa de golpe.

Em vez de encorajar a democracia, Bruxelas (ou Washington) preferiu pedir o respeito pela lei, deixando no ar que ficaram desconfortáveis com tudo o que se estava a passar. Não admira que, junto dos cidadãos turcos, Erdogan tenha reforçado o seu poder. Só que a Europa precisa da Turquia para conter as massas de migrantes que vêm do continente africano, porque as suas políticas erradas desestabilizaram por completo os países-tampão (Síria, Líbia, Iraque). É no meio de todas estas dúvidas estratégicas que se está a assistir ao nascimento de uma outra Turquia, diferente daquela que era conhecida até agora. Resta saber qual será o rebento do que foi semeado pelo golpe.

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