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A história da marchand de apelido Gulbenkian acusada de fraude

Angela Gulbenkian, mulher do sobrinho-bisneto de Calouste Gulbenkian, apresentou-se ao Negócios como negociadora de arte. Os últimos meses foram marcados por acusações de fraude, de Hong Kong a Nova Iorque, com destaque para a venda de uma peça de uma artista japonesa. O Negócios desenrola o novelo desta história, numa longa investigação.

Esta fotografia de Angela Gulbenkian foi tirada em Maio de 2017, quando a negociadora de arte deu a sua primeira entrevista ao Negócios. Bruno Simão
10 de Agosto de 2018 às 12:00
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Quando, em Maio de 2017, a negociadora de arte Angela Gulbenkian deu uma entrevista ao Negócios, recusou ter qualquer vontade de interferir no funcionamento da fundação com que partilha o nome. Contudo, a mulher de Duarte Gulbenkian, sobrinho-bisneto de Calouste Gulbenkian, não deixava de ter planos para o local: entre as suas ideias estava colocar uma escultura da japonesa Yayoi Kusama nos jardins da fundação.
Angela Gulbenkian nega as acusações de fraude. Num esclarecimento enviado pelos seus advogados, a 'marchand' explica que existiram falhas de comunicação no negócio que envolve a obra de Kusama.
Angela Gulbenkian nega as acusações de fraude. Num esclarecimento enviado pelos seus advogados, a "marchand" explica que existiram falhas de comunicação no negócio que envolve a obra de Kusama.
Uma abóbora amarela gigante, com pintas, como a que está agora no cerne das acusações de fraude de que Angela Gulbenkian é alvo. O caso chegou ao Negócios em Março de 2018, quando Christopher Marinello, especialista na recuperação de obras de arte e com experiência de negociação inclusive com o próprio Estado português, procura saber mais informações sobre a "marchand" de arte. Marinello conta que foi contratado para um novo caso e que está, há alguns meses, a tentar recuperar a escultura pela qual o seu cliente pagou 1,4 milhões de dólares [1,2 milhões de euros]. Angela Gulbenkian tinha sido a intermediária nesse negócio. "Tenho medo de que seja uma fraude", disse na altura.

O cliente em causa é Mathieu Ticolat, "art advisor" e sócio da Art Incorporated, empresa criada em 2012, com sede em Hong Kong. É nessa cidade asiática que apresenta, aconselhado por Christopher Marinello, queixa contra Angela Gulbenkian a 29 de Janeiro deste ano. No documento, a que o Negócios teve acesso, Ticolat explica que Angela Gulbenkian lhe foi referenciada em 2016, assim como a sua empresa, a FAPS-NET (acrónimo de Fine Art Private Sales, como explicou na entrevista em Maio de 2017 ao Negócios), com sede em Southwark Bridge Road, em Londres.

Na origem da queixa estava a referida abóbora de Kusama: uma obra de 2012, com 175x180x190 centímetros e 81 quilos. Segundo o documento, a obra estaria guardada num armazém em Genebra. A 10 de Abril de 2017, Ticolat faz a primeira transferência de 100 mil dólares [pouco mais de 86 mil euros] para uma conta de Angela Gulbenkian, no HSBC Bank, onde a negociadora de arte tinha uma morada associada em Munique, sua cidade natal. O restante valor, 1,275 milhões de dólares [cerca de um milhão de euros], é transferido a 8 de Maio, mostram os anexos da queixa. Neles surge também o contrato assinado entre as duas partes. Contudo, e passados vários meses, Ticolat continuava sem receber a obra.

Trocas de correspondência

Já antes da queixa em Hong Kong se trocavam cartas entre advogados sobre este negócio. A 14 de Novembro de 2017, o advogado da Artseen Pte Ltd, empresa que representa o vendedor da escultura, contacta o representante legal de Angela Gulbenkian, Julien Tron. A missiva dava conta de que a negociadora de arte não estaria a cumprir o acordo para o pagamento da obra de Kusama e referia falsos comprovativos de pagamento entregues por Angela Gulbenkian. Por isso, a Artseen decide "terminar a relação contratual", o que impede Angela de continuar a mostrar a referida obra.

No mesmo mês, no dia 27, a Artseen volta a contactar Angela Gulbenkian, através dos seus advogados. Na carta, a que o Negócios teve acesso, é lembrado que não foram cumpridas as obrigações acordadas. "O meu cliente não recebeu o dinheiro", "isto não é aceitável", pode ler-se. A Artseen decide assim terminar o acordo e informa que irá reter os 100 mil dólares que lhes foram entregues por Angela Gulbenkian como caução.

Nestas cartas, surge um outro nome associado a Angela Gulbenkian: Florentine Rosemeyer. Quando o Negócios escreveu o perfil da negociadora de arte, em Maio de 2017, uma das referências que encontrou durante a pesquisa foi a sua ligação à Rosemeyer Art Advisory (RAA), empresa de aconselhamento na compra de obras de arte.
A obra de arte que protagoniza este caso é assinada por Yayoi Kusama, uma conhecida artista japonesa. Um dos traços identificadores do seu trabalho é o uso exagerado de bolas e pontos.
A obra de arte que protagoniza este caso é assinada por Yayoi Kusama, uma conhecida artista japonesa. Um dos traços identificadores do seu trabalho é o uso exagerado de bolas e pontos.
À altura, no site da empresa, Angela Gulbenkian era descrita como uma antiga especialista em marketing e relações públicas que, em 2013, se mudou para o sector da arte. Era também destacada uma ligação à Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). Actualmente, no site da RAA, surge apenas o nome de Florentine Rosemeyer.

A separação dá-se também na FAPS-NET, onde Angela Gulbenkian e Florentine Rosemeyer eram sócias. De acordo com as informações cedidas por Christopher Marinello, assim como nos registos que se encontram disponíveis online, iniciaram ambas a actividade a 10 de Fevereiro de 2016. Rosemeyer saiu a 2 de Abril de 2018. Gulbenkian continua como CEO. O Negócios contactou, por e-mail, esta antiga sócia, não recebendo nenhuma resposta. Quando a Bloomberg publicou um artigo sobre este caso, a 27 de Julho, Rosemeyer dizia-se "chocada" com as acusações de que a antiga colega está a ser alvo.

Junho, mês decisivo

Os desenvolvimentos nesta investigação do Negócios tornam-se mais constantes em Junho. No dia 4 desse mês, a sociedade de advogados Jacquemoud Stanislas, que representa o vendedor da escultura de Kusama em forma de abóbora, a Artseen, entra em contacto com Christopher Marinello. O especialista em recuperação de obras de arte tinha dado conta de que Angela Gulbenkian informara o seu cliente que o dono da escultura não a queria entregar. A Artseen admite assim processar a "marchand" se ela "continuar a divulgar informação difamatória" e recorda que o acordo entre ambos terminou a 14 de Novembro.

A 7 de Junho, o Negócios recebe um contacto telefónico vindo de Nova Iorque: um "art dealer", que pede anonimato, para dar conta de um negócio falhado com Angela Gulbenkian. Em causa estaria uma obra em papel no valor de 750 mil dólares [646 mil euros], num negócio feito no final de Maio através de um intermediário, mas em que - tal como na escultura de Kusama - a obra nunca chegaria ao comprador. Através da interferência dos bancos, foi possível recuperar o dinheiro, informou. "Ela está a usar o nome da Fundação [Calouste Gulbenkian]", acrescentou.

Como frisou na entrevista ao Negócios, Angela Gulbenkian não tem qualquer ligação à FCG. Isso mesmo confirma a instituição quando, em Julho, é questionada pelo Negócios, para perceber se existiram contactos de eventuais lesados de transacções com Angela Gulbenkian. "Não conhecemos Angela Gulbenkian, nem ela faz parte de qualquer órgão de gestão ou se encontra ligada à FCG", respondeu fonte oficial.

Contudo, não seria essa sensação que o mercado da arte contemporânea teria. Num e-mail enviado a Christopher Marinello pelo fundador de um serviço de subscrição de conteúdos de arte, são referidas as várias "desculpas" que Angela Gulbenkian utilizaria para não ter em dia o pagamento do serviço. Há ainda a referência a um contacto de e-mail de um assistente da "Gulbenkian Foundation" que estaria a trabalhar com Angela: Macário Castro - mc@gulbenkian.foundation. O Negócios ligou para a FCG e pediu para falar com Macário Castro, confirmando assim que não havia nenhum trabalhador registado com esse nome. Depois, surge o e-mail da própria "marchand": angela@gulbenkianart.com. São domínios online que nada têm que ver com a Fundação Calouste Gulbenkian, cujos e-mails dos colaboradores terminam em gulbenkian.pt, tal como o site oficial da instituição.
Nas redes sociais, em particular no Instagram, Angela Maria Gulbenkian tem mostrado a sua ligação ao mundo da arte contemporânea, sugerindo uma ligação à fundação.
Nas redes sociais, em particular no Instagram, Angela Maria Gulbenkian tem mostrado a sua ligação ao mundo da arte contemporânea, sugerindo uma ligação à fundação.
No Instagram, Angela Gulbenkian apresenta-se como "Fine Art Collector | Gulbenkian Art Collection". Nesta rede social apresenta a sua ligação a artistas de renome, como o alemão Gerhard Richter, e comprova a sua presença em feiras de arte, como em Art Basel, em Basileia, considerado o evento mais importante do género para a arte contemporânea. Em algumas das publicações utiliza o "hashtag" #wethegulbenkian [nós, os Gulbenkian]. Um apelido que, na entrevista ao Negócios, reconhecia não trazer só facilidades: "No mundo da arte, este nome abre portas, mas não fecha negócios."

O mercado da arte contemporânea seria avisado, pela primeira vez a 19 de Junho, para os potenciais esquemas de "fraude" - assim os descreviam - de Angela Gulbenkian através de uma "newsletter" do Baer Faxt. "Os subscritores são aconselhados a seguir por sua conta e risco", podia ler-se.

Nas mãos da justiça

O caso da escultura em forma de abóbora, avaliada precisamente em 1,375 milhões de dólares, está já nos tribunais. A 22 de Junho de 2018, dá entrada no High Court of Justice em Londres uma "freezing order" [ordem de congelamento] dos bens de Angela Gulbenkian, movida pelos representantes legais da Art Incorporated, de Mathieu Ticolat. A ordem integra também a FAPS-NET. É marcada uma audição para 6 de Julho.

Perante a investigação, o Negócios contacta Angela Gulbenkian através de e-mail, para obter o seu testemunho. Menos de 20 minutos depois, Angela responde, dizendo estar disponível para falar nesse mesmo dia ou no dia seguinte. A negociadora de arte acaba por ligar para o Negócios nessa tarde, confirmando que as transacções de Hong Kong e Nova Iorque, de facto, existiram. Angela Gulbenkian informa então que tem já um advogado para lidar com as acusações de que é alvo, reencaminhando mais esclarecimentos para o seu representante legal. O Negócios compromete-se a enviar-lhe questões por escrito, para que tudo ficasse registado. Fazemo-lo no dia seguinte, a 27 de Junho.

Na lista de questões, entre outros, o Negócios procurava esclarecer porque Angela Gulbenkian via o seu nome envolvido nestas acusações e pedia provas de negócios realizados, com sucesso, pela FAPS-NET. Era ainda pedida uma clarificação da relação com Florentine Rosemeyer, sua antiga sócia.

A 2 de Julho, por não ter recebido respostas nem de Angela Gulbenkian nem do seu representante legal, o Negócios questionou a "marchand" sobre se existiria alguma novidade em relação ao esclarecimento pedido. Gulbenkian respondeu que gostaria de marcar um encontro na semana seguinte, presencialmente, em Lisboa. Esse encontro nunca chegou a ter lugar.

Só no final de Julho, no dia 23, é que o Negócios é contactado pela primeira vez por representantes legais de Angela Gulbenkian, uma outra sociedade com sede em Londres. À mesma sociedade é reencaminhada a lista de questões que estavam pendentes. A 26 de Julho, depois de publicado um artigo na agência Bloomberg dando conta deste caso, o Negócios acaba por receber a posição oficial.

"A Sra. Gulbenkian recebeu montantes de um comprador, através de outro intermediário, para adquirir uma escultura de Kusama pertencente a um terceiro. Esse dinheiro foi enviado directamente para o vendedor (e um agente). O vendedor decidiu, então, não vender a escultura, porque não queria que a obra fosse enviada para uma galeria em Hong Kong. O facto de a escultura ser enviada para uma galeria em Hong Kong foi ocultado da Sra. Gulbenkian e do vendedor quando o acordo foi feito inicialmente", explicou a porta-voz da "marchand".

O esclarecimento adianta ainda que "a Sra. Gulbenkian, finalmente, convenceu o vendedor a transferir a escultura para o comprador, após meses de negociações. Contudo, o comprador recusou-se a assinar um acordo para a sua transferência. Em vez disso, o comprador (e o seu intermediário) ameaçaram usar os meios de comunicação social para prejudicar a reputação da Sra. Gulbenkian. As ameaças concretizaram-se. Tal foi incrivelmente angustiante para ela". Será a Justiça a decidir quem, afinal, tem razão. 

Perfil

Uma alemã que cresceu rodeada de arte 

Angela só se tornou Gulbenkian há oito anos, quando casou com Duarte. O marido, agente de futebol e dono da LXG Sports, é sobrinho-bisneto de Calouste Gulbenkian.

Nascida em Munique, Alemanha, Angela veio viver com o marido para Lisboa em 2016. "Depois da morte do meu pai, decidi que queria ver o mundo do Duarte", contou ao Negócios em Maio de 2017. Agora com 36 anos, Angela Gulbenkian dizia-se inspirada por artistas como Gerhard Richter, Claes Oldenburg, Ai Weiwei ou Jean-Michel Basquiat. A ligação ao mundo da arte começou com os pais, também coleccionadores. "Cresci nesse negócio, o que é muito difícil", explicou nessa entrevista. A "marchand" dizia preferir pintura e escultura, porque o vídeo não lhe conquistava tanto o olhar. Angela estudou Política e História em Londres, onde abriu uma empresa de marketing que acabaria por vender para se dedicar à paixão de sempre: a arte contemporânea. 

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