O T0 foi construído com portas e janelas encontradas nos terrenos da antiga fábrica da Mundet, no Seixal, e mobilado com colchões e objetos encontrados na rua. Ainda assim, o "agente imobiliário" alicia quem passa para a oportunidade de ter um apartamento "de luxo", com uma renda que começa nos 300 euros e rapidamente escala até aos 1.800. Num registo trágico-cómico, a instalação do artista visual Ticiano Rottenstein, que esteve no Rossio nestes últimos dias, é um alerta e uma das múltiplas iniciativas artísticas que têm abordado a crise da habitação. Da dança à fotografia, até à ficção televisiva, a arte dá voz a um problema global.
Ticiano Rottenstein sabe do que fala. Chegou a Portugal há quatro anos, para fazer o mestrado (está agora a meio do doutoramento) e começou por viver na Graça, num T1 de um amigo. Quando chegou a pandemia, a gravidez da companheira coincidiu com a perda de rendimentos e com a necessidade de uma casa maior, já então impossível em Lisboa. "Hoje temos um bom apartamento no Seixal, mas, se por algum motivo tivéssemos de sair, não iríamos conseguir pagar uma casa na margem sul", afirma.
"Arrenda-se T0 300€ 600€ 1.800€" foi desenvolvido ao longo do último ano e pretende agitar consciências. "Uma das principais missões do artista é retratar o seu quotidiano, as dificuldades e a sociedade atual. Quanto mais a arte estiver envolvida nesta causa, mais debate vai gerar", sublinha.
Bordallo II foi outro dos artistas a juntar-se ao protesto nacional contra os preços da habitação no seu projeto intitulado "Desalojamento Local", com quatro obras espalhadas por Lisboa: a primeira surgiu no Miradouro de São Pedro de Alcântara, onde quatro tendas, instaladas na "Rua da Angústia", replicam a arquitetura do centro histórico da cidade.
Esta não é a primeira vez que a arte sai para a rua com a crise habitacional como pano de fundo. Por exemplo, em 2019, o Festival HabitACÇÃO levou a Lisboa vários espetáculos, conversas e filmes. Ao longo dos anos, vários os artistas alertaram para a necessidade de refletir sobre o assunto.
New Lisbon
A coreógrafa e bailarina Elizabete Francisca criou em 2017 o espetáculo "Os Dias Contados". "Na mesma altura em que o Rumo do Fumo (estrutura de criação) me pediu para criar um novo espetáculo, recebi uma carta da minha senhoria a anunciar a não renovação do contrato", recorda Elizabete, que teve maior consciência da dimensão do problema quando contactou as associações Habita! e Stop Despejos. "Não me tinha apercebido da gravidade da situação. Entre a população mais pobre, há cada vez mais pessoas forçadas a dormir na rua, incluindo algumas mulheres com filhos", alerta a bailarina, e lembra ainda as situações de "bullying" imobiliário por que passam vários idosos.
Até então o seu trabalho não tinha um cunho ativista, mas para Elizabete era importante criar um espetáculo à volta do tema para que mais pessoas falassem dele. A vantagem da abordagem artística de temas como a crise da habitação prende-se com a maior liberdade de linguagem, que não é possível "no jornalismo ou no discurso político", defende. Ao longo de "Os Dias Contados" - que estreou no Festival GuiDance, em Guimarães -, assiste-se a uma alteração da paisagem, que Elizabete também sente no dia a dia. "Existe uma diminuição silenciosa do nosso património, associada ao turismo e ao mercado do imobiliário de luxo. Além disso, as pessoas têm cada vez menos acesso às suas próprias cidades, e isso afeta as relações de vizinhança" refere. Não se trata de um discurso saudosista mas de recusar a mudança forçada, diz a coreógrafa que, mais do que explicar os motivos que levaram à atual situação, quis que o espetáculo traduzisse "a sensação de falta de alternativas" vivida por quem não consegue encontrar casa.