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Sandrine Dixson-Declève: “A extrema-direita está a semear dúvidas sobre a transição climática”

Reconhece que há países e empresas a agir a favor da descarbonização do planeta, mas a visão de Sandrine Dixson-Declève, copresidente do Clube de Roma, sobre o caminho para a neutralidade carbónica é tudo menos positiva. Garante que estamos “atrasados” e que vamos seguramente “ultrapassar a temperatura global em mais do que 1,5 °C”. Pior do que isso, deixa um alerta muito sério: “Na Europa, estamos numa situação que reflete a década de 1930. Se não tivermos uma liderança corajosa, podemos encaminhar-nos para a terceira guerra mundial.”

11 de Maio de 2024 às 14:00
Sandrine Dixson-Declève, presidente do Clube de Roma
Sandrine Dixson-Declève, presidente do Clube de Roma
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Ao lado da sul-africana Mamphela Ramphele, Sandrine Dixson-Declève foi uma das primeiras mulheres a liderar o Clube de Roma, em mais de meio século. Desde 2018 à frente da organização não governamental – fundada em 1968 por um grupo de cientistas, académicos, diplomatas e líderes –, não hesita em fazer ouvir a sua voz e usar palavras duras para criticar quem não age a favor da transição climática e energética. Diz que as Conferências do Clima da Organização das Nações Unidas (COP) se transformaram num "circo" e, juntamente com outros especialistas mundiais, escreveu uma carta ao secretário-geral da ONU, António Guterres, a pedir negociações pelo clima mais frequentes, mais "humanas" e sem influências externas.

 

Como vê a atual trajetória rumo à descarbonização global? Estamos no caminho certo ou profundamente atrasados?

Estamos definitivamente atrasados. Já sabemos que vamos ultrapassar a meta de 1,5 °C. E precisamos de começar a pensar em como nos vamos preparar para um mundo que está acima dos seus limites. Já no ano passado, em novembro, superámos os 2 °C de aumento na temperatura mundial em vários dias. O problema é quando esse aumento for constante. Há previsões de que isso pode acontecer já em 2030. Neste momento estamos já 1,2 °C acima e isso é motivo de grande preocupação, tendo em conta os impactos que já estamos a sentir em termos de secas, inundações e incêndios. Ficou bem claro que países como Portugal, Itália, Espanha, Grécia, no Sul da Europa, terão cada vez mais restrições em termos agrícolas, do que podem ou não produzir por causa da falta de água. No Norte da Europa, vemos cada vez mais inundações. Isto tem impactos sociais para as pessoas que vivem nesses países, mas também em termos de fluxos migratórios. Já não falamos apenas dos refugiados vindos de África, mas de potenciais migrações do Sul para o Norte da Europa, o que criará ainda mais tensão social e conflitos.

 

Precisamos de atualizar o Acordo de Paris e de metas novas mais realistas?

Ultrapassar o aumento de 1,5 °C na temperatura mundial não é só um conceito abstrato, é algo muito real. Sabemos que há impactos diretos dos aumentos da temperatura, não apenas em termos de eventos climáticos mas também nos meios de subsistência dos cidadãos. Portanto, é extremamente importante que levemos isso a sério.

 

É preciso que o cenário se torne realmente dantesco para que empresas e governos comecem a agir para travar o aquecimento global?

A Europa, através do Green Deal e das suas metas para a neutralidade carbónica, já criou um horizonte de mudança, o que tem sido muito importante. Mas agora estamos a viver um período muito difícil, com múltiplas crises ao mesmo tempo, que me deixam muito preocupada. Além da crise económica, temos de lidar também com a ascensão de movimentos políticos de extrema-direita na Europa, que estão a semear dúvidas no caminho para a descarbonização, mesmo com os piores impactos climáticos a que já assistimos. Isso levanta questões sobre a capacidade humana e dos líderes mundiais para enfrentar as mudanças. Não estamos a saber aproveitar as oportunidades para agir no momento certo.

"Este é o momento perfeito para a evolução na Europa. A começar pelo excesso de regulamentação e burocracia, e pela necessidade de simplificação. Claro que com 27 países a UE tem dificuldade em fazer o mesmo que os EUA com o Inflation Reduction Act." Sandrine Dixson-Declève

Qual teria sido o momento certo?

Já o devíamos ter feito depois da crise pandémica, mas logo a seguir veio a guerra da Ucrânia, que trouxe uma crise energética, inflação, juros altos, e depois ainda o conflito armado entre Israel e o Hamas em Gaza. Existem muitas soluções que podiam ser adotadas já neste momento e que resolveriam alguns dos problemas sociais e ambientais. A questão é que a extrema-direita e, em particular, aquela que já está no poder, e também as empresas que não querem mudar, encontram agora a oportunidade perfeita para travar e questionar a mudança para uma economia descarbonizada. E é aqui que faço o meu apelo para que os líderes mundiais não retrocedam.

 

A extrema-direita é mais um entrave de peso na luta contra as alterações climáticas?

Está a proliferar por toda a Europa. Não é só num país ou noutro. É uma ameaça nos dias de hoje. E é uma ameaça que surge sempre que há instabilidade económica. É só olhar para a década de 30 do século XX, quando a extrema-direita também usou a oportunidade que surgiu nessa altura para semear dúvidas. Agora fazem o mesmo com a transição energética e climática. A questão é que a mudança é boa para as pessoas e para as empresas, porque estamos a inovar e a apostar em novas tecnologias, em vez de ficarmos agarrados ao passado. Quanto mais nos apegamos às práticas antigas, mais difícil é evoluir. Portanto, este é o momento perfeito para a evolução na Europa. A começar pelo excesso de regulamentação e burocracia, e pela necessidade de simplificação. Claro que com 27 países a UE tem dificuldade em fazer o mesmo que os EUA com o Inflation Reduction Act.

 

Como é que essa diferença entre a Europa e os EUA pode ser ultrapassada?

Temos de nos questionar: como é que a Europa pode unificar-se na transição para a descarbonização? Como podemos garantir que temos linhas elétricas com capacidade para absorver as renováveis em Portugal, Espanha e França? Como podemos garantir que os tempos de licenciamento sejam muito mais curtos? Os caminhos que existem para otimizar as nossas economias são absolutamente viáveis, incluindo a eliminação de fatores perversos, como os subsídios à indústria petrolífera e do gás e à agricultura industrial, que vão contra as práticas de descarbonização. Temos muitos instrumentos, ferramentas e mecanismos no nosso leque de soluções. A questão é se estamos prontos neste momento para usá-los. Esse é o meu apelo aos líderes: esta é a hora de mostrarem uma liderança inteligente e corajosa. E não ser como um animal encadeado pelos faróis de um carro e não fazer nada, ou então seguir a narrativa da direita radical.

"Temos muitos instrumentos, ferramentas e mecanismos no nosso leque de soluções. A questão é se estamos prontos neste momento para usá-los." Sandrine Dixson-Declève

A descarbonização deve ser um objetivo global ou é mais bem alcançada com uma soma de esforços locais?

Todos estão a contribuir de alguma forma para a ação global. Não podemos subestimar a importância do Inflation Reduction Act, nem o facto de os chineses estarem a investir em força nas renováveis e a migrar para a eletrificação. Há mudança e vê-se, mesmo que não seja rápida o suficiente. O maior bloqueio está nas negociações políticas, em que vemos ainda uma grande dose de hipocrisia. Os 100 mil milhões decididos na COP, que deviam ter sido dados aos países do Sul, ainda não estão devidamente distribuídos. Muitos dos fundos acordados, por exemplo, em termos de proteção da floresta, ainda não chegaram ao Brasil e, em particular, aos povos indígenas. Há países profundamente endividados que não conseguem investir em tecnologias de transição. Em vez de mais empréstimos do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional, podia pensar-se (com ressalvas, claro) em cancelar as dívidas de alguns destes países. Temos de pensar numa nova arquitetura financeira para permitir que os países do Sul e as economias mais pobres também façam a transição, como a Europa e os EUA.

 

Grandes fóruns mundiais como Davos ou as COP ainda fazem sentido existir?

Temos de voltar a humanizar as negociações novamente. Eu estive em Davos e fiquei a pensar que nada daquilo devia existir, e muito menos ali, naquele local. Estamos sempre a pensar que temos de estar na sala certa, para ter uma voz. Predomina um sentimento de "fear of missing out", que é promovido por todos. Se não estivermos no palco principal, então somos demasiado pequenos e não importamos. Essa arrogância e hipocrisia só vai perpetuar os problemas. Este é o melhor momento para mostrar que podemos ser sábios e humanos, como aconteceu com a COP de Paris.

 

O que fez dessa COP mais especial?

Nesse ano, a capital francesa estava sob ameaça de um ataque terrorista, mas mesmo assim os líderes de todo o mundo estiveram presentes. Decidimos não permitir que o medo dominasse e continuámos com as negociações. Isso criou muita solidariedade e foi possível chegar a um acordo no final. Nunca mais vi isso acontecer da mesma forma. Agora estamos a fazer reuniões em países que têm interesses na produção de petróleo e gás, como o Dubai, ou que não são 100% democráticos, como o Azerbaijão. Eu e outros responsáveis escrevemos uma carta à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) a pedir que parem as COP, tal como elas estão pensadas atualmente, e que se repensem as negociações do clima. Não podem ser meros fóruns e feiras comerciais, com espaço para os lóbis que querem impedir qualquer progresso. As COP transformaram-se num circo. Mas agora, finalmente, fomos ouvidos. Demorou um ano, mas já foi criado um conselho consultivo para introduzir reformas nas negociações com reuniões de menor escala e mais humanas.

 

Onde vê a descarbonização mais e menos avançada: da energia aos transportes, aos edifícios e à indústria?

A maior culpada neste momento é a indústria dos combustíveis fósseis. Estou completamente furiosa. Passei grande parte da minha carreira nessa indústria nos anos 90 e 2000. Nessa altura, as empresas de petróleo e gás estavam a falar e a fazer mais pela promoção das renováveis, e queriam realmente fazer parte da solução. Muito mais do que hoje. Agora estão só voltados para os seus lucros extraordinários. É um escândalo absoluto. Estamos a falar de lucros de 2,8 mil milhões por dia. Deviam ser presos. Ninguém disse que a transição energética seria fácil, mas lucrar desta forma às custas da pobreza energética de muitos é desprezível. Já não estão interessados na mudança e tentam empatar ao máximo a transição para fontes energéticas limpas.

"As COP transformaram-se num circo. Mas agora, finalmente, fomos ouvidos. Demorou um ano, mas já foi criado um conselho consultivo para introduzir reformas nas negociações com reuniões de menor escala e mais humanas." Sandrine Dixson-Declève

Há bons exemplos?

Existem outros setores a avançar e empresas mais progressistas. Por exemplo, vemos a mudança a acontecer na Suécia, em torno do aço verde. Vemos a Noruega a investir em alumínio verde também. O mesmo para a indústria cimenteira. São setores muito difíceis de descarbonizar, que dependem muito da energia fóssil, mas estão a  mexer-se. Já os fabricantes de automóveis estão a recuar um pouco nas promessas de eletrificação e a opor-se à decisão da UE de proibir os carros com motor de combustão interna. Por outro lado, as grandes elétricas europeias estão a ir na direção certa. Em Portugal, a EDP é um bom exemplo. Fiz parte do conselho da empresa até muito recentemente e pude assistir a isso em primeira mão. Querem ser verdes e já começaram a transição, com o fim do carvão no país.

 

Como vê a transição energética e climática em Portugal?

Não acredito que os portugueses vejam as energias renováveis como uma ameaça. A principal ameaça é que há muito tempo as pessoas não recebem salários justos e isso é um problema. Quando há desigualdade económica prolongada, proliferam as tensões sociais e os partidos políticos extremistas ganham espaço, seja à direita ou à esquerda. Portugal devia ter previsto isso. É preciso um contexto económico que permita que os cidadãos prosperem e não apenas sobrevivam. E mesmo que os vistos gold e a chegada de muitos estrangeiros a Portugal tenham sido uma boa ideia do ponto de vista económico, não se pode fazer isso sem garantir que o povo está bem. Foi aqui que começaram os problemas e a crise imobiliária, especialmente em Lisboa, com as pessoas a não conseguirem pagar as suas casas porque os salários são muito baixos. Faz-me lembrar uma cidade com uma ponte parecida: São Francisco. Não vamos fazer de Lisboa a nova São Francisco, que tem hoje uma das maiores crises de sem-abrigo e de dependência de drogas. Tudo porque o milagre de Silicon Valley e das dot.com não chegou às pessoas. Isso criou instabilidade e uma mudança em direção a governos mais radicais.

 

Que mensagem deixa aos líderes de todo o mundo?

Gostava que os governos entendessem que a instabilidade e a desigualdade são más para todos. A minha mensagem para os cidadãos é: cuidado com o que desejam. Podem eleger um governo mais radical (seja ele de esquerda ou de direita, mas isso não significa que vão promover uma mudança económica real que permitirá que os cidadãos prosperem. Por norma usam narrativas que capturam a emoção do cidadão, mas não investem necessariamente onde é absolutamente fundamental. Neste momento, na Europa, estamos numa situação que reflete muito a década de 1930. Se não tivermos uma liderança corajosa para fazer a transição para a descarbonização e entender a importância dos efeitos desta policrise, podemos encaminhar-nos para uma terceira guerra mundial. A radicalização não é boa para a estabilidade. E muitas vezes vem com líderes muito arrogantes que pensam que têm soluções, mas estas são mais para si mesmos do que para as pessoas.
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