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Portugal quer ser líder mundial na produção de insetos

Santarém está a posicionar-se para ser o centro gravitacional de uma bioeconomia que dá resposta à escassez de proteína para alimentação animal e humana. E ao utilizar insetos como ferramentas de transformação de resíduos, promove-se também a economia circular.

03 de Janeiro de 2024 às 13:30
Há cada vez mais fábricas de produção de insetos para alimentação humana. Portugal não é exceção. Kevin Frayer/Getty Images
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Santarém está a mobilizar-se para reunir um ecossistema centralizador da indústria de produção de insetos a nível nacional e com aspirações a ser líder mundial. No próximo ano letivo, arrancará o primeiro curso superior a nível mundial para produção bioindustrial de insetos, no Instituto Politécnico de Santarém, que será liderado pela Egas Moniz School of Health & Science.

A formação vem dar suporte aos investimentos previstos para a região. "Até ao final de 2025, a região contará com mais uma fábrica de produtos derivados de mosca-soldado-negro, destinados à alimentação animal, uma de produtos derivados de tenebrio molitor, e uma de grilos, estas duas últimas ambas destinadas à alimentação humana. Serão ainda feitos outros investimentos como a criação de uma unidade de transformação de quitina em quitosano e um centro logístico", explica Daniel Murta, presidente da comissão executiva da Agenda Mobilizadora InsectERA, consórcio nacional de 42 parceiros para promover a produção industrial e comercialização de produtos com base em insetos.

Trata-se de um novo setor que se está a desenvolver com base em investigação e desenvolvimento (I&D), onde são testados e criados novos produtos para alimentação animal, humana, para uso em fertilizantes orgânicos, em bioplásticos ou na cosmética e indústria farmacêutica, abrindo desta forma novas oportunidades de negócio. Uma área emergente onde Portugal "já deu passos sólidos", que podem colocar o país "numa posição de vanguarda", salienta Daniel Murta. "Ao cimentarmos a posição de liderança em I&D poderemos certamente liderar este novo setor, uma oportunidade que o país não pode perder", destaca.

Mas o país não vai começar do zero. Em Portugal este novo setor já conta com diversas empresas e com uma unidade em escala completa instalada capaz de produzir vários milhares de toneladas de produtos derivados de inseto por ano, numa média de um camião de fertilizante produzido por dia, um de proteína a cada três dias e um camião de óleo de inseto por mês. "Uma escala que, apesar de ainda modesta, demonstra já uma capacidade industrial assente em tecnologia e inovação nacionais", de acordo com o CEO da InsectERA.

A InsectERA foi precisamente criada "para tornar Portugal líder mundial deste novo setor bioindustrial", tendo Santarém sido a zona do país escolhida para criar um "cluster" que agregue os diferentes "stakeholders". "É possivelmente a cidade europeia que mais se diferencia no setor, quer através do número de empresas e trabalhadores, quer através da estratégia aplicada", assinala o responsável. Daniel Murta refere mesmo que "Santarém será a capital do setor bioindustrial dos insetos e possivelmente a primeira do mundo a contar com uma zona económica circular, na qual não entram matérias-primas, mas sim subprodutos de outras agroindústrias e são gerados produtos de valor acrescentado".

Para além de fonte para alimentação e outros produtos, os insetos também podem ser usados como "ferramentas" ao serviço da economia circular. Como? "O facto de consumirem poucos recursos no seu processo produtivo , como água ou energia, e poderem ser alimentados recorrendo a subprodutos agrícolas, sendo alguns até um problema ambiental como o bagaço de azeitona, torna-os verdadeiras ferramentas de economia circular, transformando subprodutos que seriam desperdiçados em novas matérias-primas para incorporação em produtos como rações, fertilizantes ou cosméticos", explica Carlos Magalhães e Silva, gestor de projetos da P-Bio - Associação Portuguesa de Bioindústria.

Carlos Magalhães e Silva destaca a mais-valia de Portugal estar já a investir nesta área. "Dado que é um setor emergente na Europa e praticamente em todo o mundo, e no qual Portugal tem sido um dos países do pelotão da frente, é um dos poucos setores nos quais o país se pode tornar referência mundial pela aposta atempada", adianta o responsável da P-Bio.

Barreiras a ultrapassar

Embora os insetos sejam usados numa panóplia alargada de produtos e serviços, existem barreiras culturais no caso da alimentação humana.

Ainda assim, com o aumento da população global os insetos têm vindo a ser referidos como uma fonte de proteína alternativa para satisfazer as necessidades crescentes de alimentação, ao mesmo tempo que têm um baixo impacto ambiental. "Em comparação com a pecuária, a produção de insetos é muito menos exigente em termos de recursos ecológicos", até porque exige "menor consumo de água, menor emissão de gases com efeito de estufa, menor área de produção, baixa contaminação ambiental e maior eficiência alimentar por parte dos insetos", explica a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Liliana Sousa. Relativamente ao valor nutricional dos insetos, "são considerados uma boa fonte de proteínas (aparentemente de boa qualidade, mas sem grandes dados ainda), gorduras e minerais, no entanto, os teores nutricionais variam em função do tipo de inseto", assinala a bastonária.

E como se ultrapassam as barreiras culturais de forma a introduzir este alimento na dieta humana? "A estratégia passa sobretudo pela incorporação de insetos em alimentos na sua forma processada, pois esta afastará muita da resistência que os consumidores possam ter e que advém maioritariamente da visualização do inseto inteiro", assinala Carlos Magalhães e Silva. "À medida que produtos contendo, por exemplo, farinha de inseto, cheguem ao mercado em formatos saborosos, saudáveis e sustentáveis, espera-se uma mudança na atitude dos consumidores", acrescenta.

Segundo a Ordem dos Nutricionistas, os insetos são consumidos em todo o mundo por mais de dois mil milhões de pessoas. No caso de Portugal, já é possível tipificar o consumidor destes produtos: tem entre 40 a 50 anos, algum poder de compra e preocupa-se com o impacto ambiental das suas escolhas alimentares.

À semelhança do que ocorre noutros países, "a aceitação do consumo de alimentos com insetos não se revela fácil". Por isso, para ultrapassar as barreiras culturais, "é importante a definição de uma estratégia concertada, que conjugue sensibilização, educação do consumidor e estratégias de marketing", salienta Liliana Sousa. Para além disso, "é importante a informação de que estes insetos são criados em ambientes controlados e são exclusivos para consumo humano", lembra. Ainda assim, "poderá demorar pelo menos mais uma geração a enraizar o consumo de insetos nos nossos hábitos alimentares", assume.

Informar e formar é, por isso mesmo, um dos desafios da agenda mobilizadora InsectERA, que reconhece as inúmeras barreiras que um novo setor tem de ultrapassar. "Será necessário ultrapassar barreiras que vão desde a tecnologia e industrialização, à validação de processos, produtos e serviços até à aceitação dos mesmos, e do próprio setor, pelo público e pelo mercado", sublinha Daniel Murta.
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